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quinta-feira, 24 de março de 2016

um sonho caro


RAPARIGA - Eu tinha um sonho...como muitas outras raparigas da minha idade: ser bailarina e dançarina. Achava tão bonito aquele bailado, a sensualidade dos corpos magrinhos, voar nos braços dos bailarinos jeitosos, e deixar-me levar pela magia da música. Esse era o grande problema! Ser magrinha para caber naqueles vestidos de fadas que rodopiam e que brilhava que dava gosto. Eu estava decidida a perseguir o meu sonho! E jurei a mim mesma, que ia conseguir. Nessa altura senti-me uma verdadeira mulher poderosa. Achava que tinha o poder de mandar na minha fome, no meu corpo e na minha mente. Na minha inocência, e na fantasia, até poderia ser...Aliás sempre tinha ouvido dizer para lutarmos pelos nossos sonhos, e nunca desistir. Sonho, pois claro! Sonho que eu acreditava com toda a força que ia conseguir realizar...sonho que eu achava ser fácil de realizar. Sonho...que se transformou em pesadelo, e quase custou a vida. É! Sonho...claro. Para o concretizar, fui-me inscrever no balé, feliz e ansiosa por começar. Quando chego lá, uma senhora muito simpática olha-me de cima a baixo e diz-me:

MULHER - Não percas tempo...nunca vais conseguir ser bailarina, com essa gordura, podes fazer de leão-marinho no jardim zoológico...ou de foca no circo...ou lontra...Nunca vais ter corpo de bailarina, nem que passes fome! As tuas medidas estão a léguas das que se pretende...Vai, gorduchinha...vai brincar para o circo.

RAPARIGA - Aquelas palavras pareceram facas a espetar-me por todo o corpo. Cresceu-me uma enorme revolta...sai porta fora, chorei sem parar, até quase ficar sem ar...parei...e decidi que aquela vagabunda ia engolir tudo o que me disse. Eu era capaz...sim, tinha a certeza absoluta disso. Eu tinha poder. Poder...pois claro...se tudo dependesse simplesmente do poder...eu nunca tinha chegado a ser gorda. Nunca antes tinha pensado que era gorda, aliás...quando parei para pensar e apreciar as outras raparigas bailarinas, mentalizei-me que ia ser como elas. Esqueci-me que era tão roliça! Que horror. A partir desse dia, a minha vida deu uma cambalhota...foi o meu salto para o inferno, para as trevas! E para os meus pais, que não faziam a mais pequena ideia do que se passava comigo. Pensavam que era a idade da parvalheira...e por isso, as trombas, como eles diziam, eram normais...não se devia dar muita importância. Eu também não queria contar-lhes, quer dizer, até queria, mas não conseguia. Não queria estar a incomodá-los com as minhas coisas. A tristeza venceu-me! Alimentava-me de tristeza, bebia as lágrimas, às vezes, sorria, mas forçada...só para fingir que tudo estava bem. Menti algumas vezes aos meus pais, quando dizia que tinha comido. Não conseguia comer. A minha garganta dava um nó, e o meu estômago estava vazio, mas recusava comida. Embrulhava-se só de pensar em comida. O tempo foi passando, eu continuava sem conseguir comer...só a tristeza me atormentava, e comandava todos os dias. Não conseguia dormir, pois sempre que fechava os olhos, vinham aquelas palavras à mente. E crescia a revolta, o nojo de mim mesma, o nojo de olhar para o espelho. O meu corpo começava a dar sinais que estava a conseguir realizar o meu sonho...emagrecer...mas os quilos que já tinha perdido, ainda não eram suficientes. As calças já estavam a ficar largas, e a minha carne a diminuir...aí, senti-me poderosa, realizada, feliz. Afinal sou mesmo poderosa...pensava eu...estou a emagrecer...Uau! Aquela miserável vai engolir um sapo. Mais uns dias, sem comer...e a vomitar, a beber para não desidratar, e a carne a desaparecer...as calças quase me caiam. Os meus pais começaram a notar a minha palidez, e o meu ar triste...as minhas olheiras...a minha magreza. Acharam estranho, e mandaram-me ao médico, mas eu não fui. Em vez disso, fui inscrever-me outra vez na escola de balé. Quase a arrastar-me, com a fome, mas eu não podia pensar na fome...só podia concentrar-me na realização do meu sonho. Isso deu-me alguma força para chegar lá.
A maldita mulher olhou para mim, e disse:

MULHER - Áh, agora sim...tens entrada directa.

RAPARIGA - Mas que maravilha...fiquei tão feliz! Fiquei mesmo orgulhosa de mim, e vaidosa, com um sorriso de orelha a orelha...e entrei na sala, com aquele vestido fantástico para fazer a aula. Parecia que estava curada. Quando a professora reparou em mim, ficou com ar aterrado, e disse:

PROFESSORA - Filha, estás doente?

RAPARIGA - Eu assegurei-lhe que não, pois ainda não tinha noção de que era a mais magra de todas as meninas. A aula começou e a primeira volta que dei, estatelei-me no chão, redonda...parecia um molho de ossos de um esqueleto a desmontar-se. Vi tudo escuro...e quando acordei, estava no hospital com os meus pais ao lado, e rodeada de máquinas, coisas espetadas, numa sala só para mim, com várias batas brancas e barulhos. Não sabia onde estava, mas sentia-me toda dorida. Até os meus pais pareciam-me pouco familiares. Perguntei onde estava. Disseram-me que estava no hospital...tinha desmaiado com a fome e a fraqueza...que estava com...Anorexia, anemia, e outras coisas mais. Os meus pais estavam magoados comigo, porque não se tinham apercebido que eu não estava a comer, e que estava um pau de virar tripas. Eles nunca imaginaram que eu fosse capaz de chegar onde cheguei.

PAI - O que é que fizemos para merecer isto?

MÃE - Como é que nunca reparamos que ela estava a ficar um esqueleto?

PAI - Ultimamente andava meio desconfiado...Como é possível ela ter chegado até aqui?

MÃE - Como foi possível, ela sobreviver este tempo todo sem se alimentar?

PAI - Realmente...

MÃE - Filha, o que fizeste?

RAPARIGA - Perguntou a minha mãe com as lágrimas a escorrer-lhe pela cara abaixo. Fiquei com pena dela e chorei também. Só lhe respondi que fui atrás de um sonho...

MÃE - Um sonho? Que sonho? Acabar connosco?

RAPARIGA -É claro que não era acabar com eles, de maneira nenhuma...era acabar comigo. O meu pai quase me bateu nesse dia, e ele até tinha razão se o tivesse feito...

PAI - Que porcaria de sonho é que tu tinhas? Matar-te? Acabar connosco? Porquê? O que é que te falta? Sempre fizemos tudo por ti, nunca te faltou nada... Porque é que fizeste isto connosco? Porquê?

RAPARIGA - O meu sonho era ser bailarina e dançarina, mas gorda como eu era...nunca ia sê-lo.

OS DOIS - Bailarina?

MÃE - Bailarina...Louca...louca...era o que tu querias de ti, e fazer connosco...deixar-nos loucos.

PAI - Desde quando é que bailarina é profissão?

MÃE - O que é tinhas na cabeça?

RAPARIGA - Eu respondi-lhes a verdade. O que tinha na minha cabeça era o meu sonho de ser bailarina e dançarina...A minha mãe percebeu logo que eram coisas da minha cabeça...e respondeu-me:

MÃE - Isso é um sonho...sabias que era impossível. Minha palerma...sofri tanto para tu nasceres, a agora ias acabar comigo assim! Injusta!

RAPARIGA - Ela tinha razão. E foi aí que lhe contei a verdade. Aquela miserável da entrada da escola é que me arruinou...disse que eu nunca teria as medidas para ser bailarina nem dançarina...só conseguiria ser foca, ou leão-marinho num circo...eu queria provar-lhe que tinha poderes, e que ela ia engolir um sapo. Ontem fui lá, aceitou-me logo! A minha mãe ficou mesmo nervosa, e gritou-me:

MÃE - O quê? Ainda por cima, por causa de um comentário de uma parvalhona? Devias ter vergonha...alguma vez tiveste que provar alguma coisa a alguém? Louca...essa miserável tem mais valor que os teus pais? Não sabias ter falado connosco? Era preciso teres chegado a este ponto? Era? Pensa bem, se uma porcaria de um sonho, merece a tua vida...quase a ias perdendo...Como é que ias realizar o teu sonho, esse ou outro qualquer, sem te alimentares? Louca...Infantil...Vives no mundo da fantasia...Acorda...estás na Terra, com os teus pais que te amam...esses sim, são os únicos que te amam de verdade. Para que servem os pais, não é para apoiar os filhos nos bons e maus momentos? Precisavas de ter escondido isso de nós? Precisavas de ter chegado aqui, só por causa de uma besta?

RAPARIGA - E contei-lhe que também me metia nojo olhar para mim, que não queria comer, para emagrecer e realizar o meu sonho, e para provar que era capaz. Claro que os meus pais tinham toda a razão em estar magoados comigo...Eu não sabia o que dizer, nem o que pensar.

PAI - Vê se ganhas juízo nessa tola, mulher...tanta coisa boa à tua volta, e em ti, e só te fixaste no que era mau.

MÃE - Agora que estás aqui, pensa bem no que fizeste, e se precisavas mesmo de fazer isto!

RAPARIGA (a chorar) - Desculpem...eu não queria magoar-vos!

MÃE - Tens de pedir desculpa é a ti própria, isso sim...

RAPARIGA - A mim?

MÃE - Sim, pela destruição que causaste a ti mesma, por teres tirado a saúde ao teu corpo, e à tua mente...com a porcaria da loucura de um sonho sem pés nem cabeça!

RAPARIGA - Estava muito cansada, e não conseguia pensar...mas ao mesmo tempo sentia-me envergonhada e triste. Os meus pais estiveram sempre lá, eu nos primeiros dias só quase dormia...mal dava pela presença deles. Sei que eles estavam zangados mas já me tinham perdoado, e estavam muito carinhosos comigo. Eu precisava mesmo desse carinho deles, e da presença. Nesses momento, percebi o quanto eles eram importantes para mim, o quanto eles me amavam de verdade...e o quanto injusta eu tinha sido a fazer isto com eles. Talvez esse meu sonho de ser bailarina que acabou mal e não se realizou, tenha servido para me abrir os olhos...e ensinar-me muita coisa que ainda não tinha percebido, por estar tão centrada no que era impossível. O mais certo é que eu já tivesse a certeza do que os meus pais significam para mim, desde que nasci, e que eles me amam, mas...há ilusões que criamos na nossa cabeça, sonhos que sabemos que nos podem prejudicar e esquecemos tudo o resto que é mais importante. Aprendi que o meu corpo não foi feito para ser mostrado no balé...nem na dança...talvez eu seja rechonchuda para que vejam a minha luz interior...para que olhem através das minhas banhas. É...desapareceram mas vou recuperá-las, talvez. Isto ensinou-me a gostar de mim, como sou... Gorda! Mas saudável e feliz...Cheia de coisas boas e amor para dar. Porque o coração não está na gordura ou na magreza, muito menos a felicidade. Só seremos felizes, se tivermos saúde, gordos ou magros...Só seremos felizes, se olharmos nos espelhos, e gostarmos da imagem que vemos...gordos ou magros! Para quê, mudarmos características que fazem parte de nós, e todas têm o seu motivo, a sua razão para ter vindo ao nosso corpo...assim. E quanto às palavras que ouvimos...bem...talvez essas pessoas que as dizem, tenham na verdade inveja de não serem como nós! Coitadas! No fundo são pessoas que também não gostam delas...são assim com os outros...com quem gostavam de ser iguais...ou parecidos...porque...ninguém é igual a ninguém, só para se sentirem mais fortes...mais poderosas, como eu me queria sentir, e muitas outras raparigas que passam pelo menos...mas a verdade é que não temos que provar nada a ninguém...nem a nós mesmas, que somos poderosas...o nosso poder não está na gordura ou na magreza...está no coração e nos actos. Não vale a pena lutar por sonhos que nos podem custar a vida! E não esqueçamos...os nossos pais são os nossos melhores amigos, é com eles que podemos contar...para o bem e para o mal...são os únicos que nos amam incondicionalmente, e perdoam-nos. Quando tiverem algum problema como este, ou outro, é com eles que devem falar, ou então com um psicólogo, ou com quem quiserem. Não queiram ser mais fortes que o vosso corpo...respeitem-no! Ele merece ser respeitado. Se não é feito magro, é porque não tem que ser magro...haverá outras coisas em nós que chamam mais a atenção. Se tiverem de ser bailarinos, serão, sem prejudicar a vossa saúde. Peçam ajuda...não se armem em super poderosas que controlam tudo, até a fome...não há maior ilusão! O nosso verdadeiro tesouro, não está no corpo...está na alma...no interior...quem quiser ou quem merecer...que procure. Este foi um sonho que me custou muito caro...e afinal...não passou mesmo de um sonho. Agora que estou a ser alimentada artificialmente, já consigo pensar...que apesar de tudo...foi bom ter realizado o sonho por poucos segundos. Agora sei que não é isso que quero...o que eu quero mesmo, é ter saúde e ser feliz...O que serei...ao futuro pertence. Ainda falta muito! Meninas, aceitem-se como são, e não ponham a vossa vida em risco, só por causa de sonhos...

FIM

Lálá 
(5/JULHO/2014)






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