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quarta-feira, 24 de junho de 2020

monólogo/ diálogo para adolescentes e adultos sobre suicídio (psicólogos, estudantes de psicologia, e população em geral)

       
                                                 Foto de Lara Rocha 

       Ela ouviu uma voz doce que a chamava...sentiu uma presença sem rosto, sem cor, sem sombra nem tamanho, mas com um cantar arrepiantemente belo e melodioso. Uma outra voz humana gritou-lhe, mas ela não a ouviu. 
      Estava encantada com aquela voz. Seguiu-a e num abrir e fechar de olhos, fundiu-se naquela voz, e cantou a paz que a sua alma não encontrou, com a sereia no silêncio daquela, onde o mar chorou! 
      Aquela sombra sedutora, que só ela via, conquistou o seu coração até então vazio...falava com ela e dizia-lhe as coisas mais maravilhosas que mais desejava ter ouvido daquele que amou! 
      A sombra que só ela via, jurou-lhe amor eterno...para além da terra e da vida, estava esfomeada de amor, e seguiu a sombra. Ambos fizeram a viagem das vidas deles. Sim, foi mesmo uma viagem para toda a eternidade naquela linha de comboio. 
      Ela dizia que o seu corpo era habitado por corvos. Ela sentia as garras dos corvos negros apertarem-lhe a garganta e tomarem conta do seu corpo. 
      Queria livrar-se deles, mas quanto mais ela tentava, mais eles a apertavam...parecia que ia sufocar. Então, a maneira que ela encontrou de deixar voar os corvos que habitavam o seu corpo, foi cortar-se em várias partes. 
      Pensou que tinha conseguido correr com eles, sentiu alívio, e esqueceu por momentos a dor, mas uma ave branca salvou-a. 
       O suicídio não tem raça, cor, género, idade ou profissão, família, riqueza ou pobreza. O suicídio é o grito ensurdecedor de uma alma vazia, ferida como uma gaivota que quer voar, quer ser mais forte que o vento, ela luta o mais que pode...enquanto pode...até que sucumbe ao cansaço. 
        Sente que não tem  nada a perder, e deixa que o vento a leve, na esperança de uma transformação...talvez...até tenha a ganhar! 
        Ganhar um novo fôlego, uma nova vida e deixa que o vento a leve para onde quer. Mesmo que para o fundo do mar, ou que se lance de um precipício. 
        Como tu, fizeste isso. Pensaste que eras gaivota? Ou invejaste a vida dela? E como uma lança disparada do infinito, o teu grito de revolta ecoou pela encosta e fez tremer o mar onde se afundou no silêncio eterno e assustadoramente frio. 
        Ninguém sabe para onde foi a lança, ou o grito, o certo é que ninguém reparou que essa lança era um pedido de ajuda! Chamaram-te louca, como se isso resolvesse. 
        O suicídio é um grito ensurdecedor, cruel, que usa o corpo em vez da voz! Mas por muito má que seja a situação e por muito grande que seja a tristeza, enquanto estamos de olhos abertos podemos pensar, pedir ajuda, lutar...a morte pode parecer o caminho mas não é. 
        E quem está em sofrimento sabe-o, simplesmente o nevoeiro da sua floresta por onde vagueia não deixa ver a luz que a tirará das trevas. 
       Qualquer um de nós pode ser as asas de algum pássaro ferido, caído no chão que não consegue voar. Podemos alimentá-lo e devolvê-lo à liberdade quando estiver novamente forte e capaz de voar em todas as direções. Não te iludas...! Do lado de lá não podes resolver nada!  
       A morte pode parecer-te o caminho mais curto, mais fácil, ou simplesmente... o caminho! Não acredites! O caminho é na Terra onde tens os pés pousados...e há tantos! Procura uma luz! Segue os caminhos por onde vires luz, mesmo que haja nevoeiro, a luz da vida e o pulsar do teu coração guiar-te-ão. 
        Porquê? Se tudo parecia bem, tu sorrias, e rias, brincavas, e de repente...porquê? Se estávamos aqui? Porque não pediste ajuda? Porque não te abriste connosco? Os amigos não são só para a diversão, muito pelo contrário, estão aí para os piores momentos. E tinhas tantos... porque fizeste isso? 
        Não é justo! Tantos porquês...tantas dúvidas, tantas hipóteses que levantamos, mas só tu poderias dizer o que realmente te empurrou para o precipício! 
        Agora...nada podemos fazer. Descansa, vive a tua paz! Onde quer que estejas, e olha por nós. Protege outros que tentem fazer o mesmo que tu! 
       Descansa, e quando acordares conversamos...! Mas não te livras de uma tareia. Uma tareia já deste a todos. Acreditamos em ti, na tua força, e vais vencer, vais voltar. Coragem, estamos contigo, e cá te esperamos! 
       Não precisavas de fazer isso para nos chamar a atenção mas nós perdoamos-te, o que queremos é que fiques bem, e estamos aqui para te ajudar, quando acordares dessa overdose! 
       Queres gritar a tua dor, grita! Nós ouvimos. Queres explodir a tua raiva, explode, nós estamos aqui para recolher os estilhaços e colar o teu coração. 
       Liberta tudo o que te sufoca, nós estamos aqui para te ouvir, para te ler, para te fazer companhia, para chorar e rir contigo, para te abraçar. 
       Ainda tens muito para viver, muito para sofrer e crescer, e nós estamos sempre aqui. Pede ajuda. Não sejas teimosa. Não estás sozinha, ou sozinho! 
       Há sempre uma mão estendida, ouvidos para te ouvir, braços para te abraçar, e devolver-te à vida. Não te entregues à tristeza. Luta. É assim que te tornas pessoa, aqui na Terra, ao nosso lado! 

                                                          Fim
                                                       Lara Rocha 
                                                   23/Junho/202o

                                             

                                        

                                                
 

terça-feira, 23 de junho de 2020

monólogo - Os segredos das lágrimas


Cada lágrima, conta um segredo nunca confessado, um desejo nunca realizado, um sonho, uma recordação ou várias recordações: felizes, tristes, doces, românticas. Cada lágrima revela ou desvenda um sentimento, uma emoção, um medo. Cada lágrima conta momentos de dor, de saudade de alguém, de algum lugar, de alguma coisa especial... um momento, um tempo feliz, e mesmo de alguns minutos inesquecíveis...Cada lágrima...conta mágoas...rancores, iras, frustrações, derrotas,vitórias...Cada lágrima...solta um grito, ou vários gritos silenciosos...profundos, que têm de ser calados, sufocados...Que emanam do oceano interior...Grito de aflição, dor, tristeza, raiva, ódio...
De amores não correspondidos, proibidos, que não saem dos sonhos...Cada lágrima, conta a solidão, canta a tristeza. Cada lágrima...varre a alma, limpa o coração, purifica, descongela-nos. Liberta o que está preso na alma...Cada lágrima...Mostra tudo o que temos dentro de nós...quando as máscaras caem...Cada lágrima...despe-nos, mostra o que somos realmente. Cada lágrima...Conta uma história de vida. O mar também tem lágrimas, e também elas guardam segredos. Nas suas águas revoltas, descanso os meus olhos, lavo a alma, nas tuas ondas, repouso os meus pensamentos, a ti entrego os  meus segredos e sonhos que não quero contar. Mas tu sabes quais são...Recebes cada um deles, como se fosse um tesouro, e embalas num barco seguro. Em ti posso confiar, óh mar...Silencioso! Guarda bem os meus lamentos, os meus pensamentos, os meus desejos...Só em ti posso confiar.



                                                                            Lara Rocha
                                                                          23/Junho/2020 


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Na linha de comboio (psicólogos, estudantes de psicologia; e população em geral)

Na linha do comboio 

foto de Lara Rocha 

          Moro perto da estação de comboios, e há mais ou menos seis meses, fui passear o meu cão. Até aqui tudo normal, eu e o meu cão adoramos passear. Ele é geralmente calmo, exceto quando pressente alguma coisa, quando tem medo, ou em situações que o stressam. 
         Acho que nessa tarde, apanhei o maior susto da vida, que tenho memória. Ao chegar perto da estação o meu cão mudou o seu comportamento, ao contrário do que costuma acontecer. Ficou muito agitado, a ladrar virado para a estação, uma parte em que vê a linha de comboio de fora, e a rodar sobre si próprio. 
        De repente, sai disparado da minha beira e mete no túnel de acesso à estação, a esse espaço visível a ladrar completamente possuído. Fui atrás deles, e qual não é o meu espanto, ao ver uma pessoa sentada na encruzilhada das linhas, vestido de preto, parecia um rapaz. 
       O meu cão saltou quase em voo para a linha de comboio, e empurrou o rapaz para o chão, espetou-lhe os dentes na camisola e arrastou-o para um lugar seguro onde a linha estava em manutenção. 
      O rapaz parecia anestesiado, porque deixou que o meu cão o arrastasse, que continuava a ladrar. Ouvi a voz da estação a anunciar a linha em manutenção onde estava o meu cão, a saída de um comboio e a entrada de outro. 
      Fiquei ansiosa, meti pelo túnel de acesso á outra linha e o meu cão ladrava para o rapaz, começou a lambê-lo, e o rapaz estava lavado em lágrimas, completamente entregue à tristeza. 
      Acariciei o meu cão, e o rapaz tinha uma respiração ofegante, inclinou-se num impulso para a linha de comboio outra vez, mas desta vez, eu consegui reagir, ainda não sei como. O meu cão agarrou-o pelas calças e eu disse-lhe: 
- Mas o que é que tu vais fazer? É muito perigoso! 
- Eu não quero estar aqui, não quero viver, não posso. Quero desfazer-me...para ver se nasço de novo, diferente. 
- O quê? Senta-te aqui, à minha beira, vamos conversar um pouco. Eu estou aqui, o meu cão também. Já percebi que não estás nada bem, mas não estás sozinho. 
      Passam os dois comboios, num grande barulho. 
- Ninguém quer que eu esteja aqui. Nem eu quero! O teu cão não tinha nada que me empurrar, nem trazer-me para aqui. Era agora que eu ia ter paz! 
- Ainda bem que o meu cão te empurrou! Ele sabe o que faz. A tua vida é preciosa. Sou psicóloga, se quiseres podes conversar comigo. 
O rapaz olhou para mim, com um olhar como nunca tinha visto, vazio, cheio de lágrimas. 
Sentou-se ao meu lado. 
- Tens uma cara tão bonita! 
- Achas? Também não me serve de nada ter uma cara bonita, ninguém quer saber. 
- Porque é que queres morrer e nascer diferente? 
- Porque sou homossexual. 
- Sou humilhado, rejeitado, gozado, a minha mãe juntou-se com um homem de quem não gosto, e expulsou-me. Estou a vier na casa de um primo, que vive sozinho, o meu pai nem me conhece. Eu não quero ser homossexual, não gosto, não posso. Se continuar a ser homossexual, vou ficar sozinho. Disse à minha mãe que sou homossexual, ela reagiu muito mal, insultou-me, bateu-me, mandou-me rezar. Sinto a falta dela, e de amigos. 
      Deixei que ele exteriorizasse tudo o que sentia. O meu cão parecia estar a perceber tudo, e sensibilizado com a história dele. Ouvi-o atentamente, e acho que ele também sentiu que estava a ouvi-lo. Depois de me contar vários episódios de agressão, humilhação por parte dos colegas, insultos, rejeições e abandonos por parte de amigos, disse-lhe: 
- Ninguém tem nada a ver com a tua escolha sexual. É a ti que diz respeito. Tens direito a ter a tua privacidade, tu é que escolhes quem queres amar, com quem queres ter prazer, ser feliz e partilhar a tua vida, os outros não têm direito de se pronunciar, só tem de respeitar a tua escolha. E com certeza vais encontrar muitos e muitas outras pessoas com a mesma escolha, que te vão aceitar como és. Eu tenho muitos amigos e amigas homossexuais! Respeito-os e eles a mim, temos uma amizade fraterna, muito especial, muito bonita, sincera, dedicada. Não tens de acabar com a tua vida, nem mudar a tua escolha e ser infeliz, só por causa dos outros, do que os outros acham que devias ou tinhas que ser. Era só o que faltava! E se gostares de mim, tenho a certeza que vais ganhar várias dezenas de amigos, e parceiros. Só tens de te sentir orgulhoso pela tua escolha, e vivê-la. Ele olhou-me, a soluçar. Limpa as lágrimas. 
- Fogo...nunca me tinham dito uma coisa dessas...! Posso pedir-te uma coisa? 
- Só se forem duas ou mais! - Disse-lhe eu.
Ele sorri timidamente. 
- Posso...dar-te um abraço? 
Abri-lhe um grande sorriso. 
- Claro que sim! Dois... 
Trocamos um longo abraço, ele desatou num choro, e eu quis passar vida para ele, através do abraço. Acho que consegui, porque abraçou-me com muita força, e chorou encostado a mim, eu sentia o coração dele a bater rapidamente, e acariciei-lhe as costas e a cabeça. O meu cão lambeu-o e deitou a sua cabeça nas pernas dele. Ele sorriu, fez festas ao meu cão. Abraçou-me novamente. 
- Não consigo largar-te! Desculpa. - diz ele 
Eu ri-me. 
- Eu não me queixei, pois não...? 
Rimo-nos. 
- Nem nos conhecemos, e eu já estou aqui cheio de coisas contigo... 
- Mas podemos conhecer-nos, e podes ter a certeza que tens em mim uma amiga para o resto da tua vida! Que grande asneira que tu ias fazer. 
        Ele sorri. 
- Acho que tens razão! J+a gosto de ti. És linda, és um anjo, não? 
- Não, sou uma pessoa como tu, boa e às vezes má. 
Rimo-nos. 
- Vens comigo, passear mais um pouco o meu cão, e conversamos mais? - convidei-o 
- Ok... se queres que te faça companhia. 
- Com certeza! 
- Devo-te a vida. Obrigada. 
      Abraça-me novamente. Dei-lhe um beijo na cara e ele retribui. Fez mais festas ao meu cão, e disse-lhe: 
- Obrigado, bicho. Foste o maior.  
     O meu cão ladra-lhe, e lambe-o. Rimos. 
- Este cão é demais... - diz ele 
- É. 
     Levantamo-nos, o meu cão ladrou e acompanhou-nos, sempre ao lado dele. Eu e ele fomos abraçados, e conversamos bastante, fora da estação, rimos, e percebemos que vivíamos muito perto um do outro. Trocamos contactos, e combinamos falar-nos nesse mesmo dia pelo facebook. No fim de jantar lá estava ele, conversamos quase três horas, e ele quis ver-me pela câmara. O sorriso dele já era outro. 
      Depois desse dia, sugeri-lhe que tivesse acompanhamento psicológico, e encaminhei-o para outro amigo, psicólogo, que trabalhava na área da sexualidade. Comecei a apresentar-lhe vários amigos homossexuais, com quem passou a conviver, a sair, a conversar, a divertir-se. 
       Sempre que eu e ele nos encontramos, trocamos aqueles abraços sinceros, fortes, fraternos, disse-me desde logo que eu era a família dele, e falamo-nos todos os dias, várias vezes por dia, pelas redes sociais, por telefone, e mensagens. O meu amigo psicólogo deu-lhe uma preciosa ajuda, a melhorar a sua auto-estima, e a viver bem com a sua escolha sexual. 
       Depois do susto, ganhei um amigo para o resto da vida, um irmão como ele às vezes diz, carinhoso, atencioso, dedicado. Ele agradece-me constantemente de o ter salvo, e de vez em quando oferece-me flores, chocolates, postais. Há respeito entre nós. 

                                                           FIM 
                                                           Lara Rocha 
                                                           18/06/2020