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segunda-feira, 30 de março de 2020

As estrelas da ursa menor (monólogo de reflexão e agradecimento, respeito pela terra)


Monólogo

     Fui à janela, enquanto descansava os olhos no vestido negro com brilhantes que cobria a cidade, percorri as estrelas da ursa menor, solitária, linda, que parecia mexer com o vento dessa noite!
      Cheguei à meia seta e os meus olhos  pararam numa silhueta que dava a entender pertencer a uma mulher, leve, escura, que flutuava.
     A lua estava proxima dela e quando a sua luz incidiu nela, pude confirmar que era mesmo uma mulher. Linda!
     Com um olhar triste, uma expressão sem sorriso, mas tinha qualquer coisa de muito especial. Eu não sabia explicar o que era, mas soava a mágico.
      Disse-lhe boa noite, ela retribui e disse que se chamava Terra. Contou-me que sofreu muito de violência, nas mãos dos homens,  a quem ela chamava filhos, e enchia de mimos.
     Foi queimada, esfaqueada, intoxocada de todas as maneiras. E mesmo assim suportou anos de maus tratos. 
     Senti o peso da sua raiva e dor, coberta de tristeza, mas via-se um rasto de brilho no seu rosto, que ela justificou como sendo um conjunto de coisas boas que a faziam creditar de novo no amor de alguns dos seus filhos.
      Já todos sabiam da sua triste história, mesmo assim, quando ela voltou a contar, a Lua e o Sol choraram, das suas lágrimas, com a luz dela, formou-se um lindo arco-íris cintilante. Fiquei maravilhada.
       A Terra mostrou-me o que a mantinha feliz. Pequenas coisas. Deu-me a mão, apontou para um fundo à nossa frente e comecei a ver e ouvir coisas que a faziam renascer do sofrimento.              Disse para eu despertar todos os meus sentidos. Se o fizesse, entenderia porque ainda existia luz em si.
       O bater das asas das águias, os imponentes falcões, com os seus piares profundos e estridentes, em conjunto com a brisa e as diferentes intensidades do vento, que passa pelas árvores, folhas e pinheiros, as carícias da brisa delicada sobre as flores, as gotas de orvalho a brilhar na relva e nas pétalas.
      Uma variedade de sons de pássaros, cada qual o mais bonito, parecia um coro. Águas de rios, cascatas, ribeirinhos e riachos a suspirar, a espirrar, a cantar e a dançar com as pedras e plantas aquáticas. 
      Era uma harmoniosa sinfonia, umas caricia para o nosso corpo e alma. Mostrou-me prados verdes, montes, montanhas que impunham respeito só de olhar, mas lindas, cheias de natureza. 
    Uma perfeição, árvores, campos intermináveis de encher o olhos. As praias, o mar, a areia, as rochas, as pedras.
     O uivo dos lobos, a fofura das focas, dos ursos, as raposas, os coelhos, os cães, gatos, linces, patos, ovelhas, porcos, vacas, bois, e muitos outros. 
     As cores dos frutos, das folhas das árvores, das flores, e tudo o que vemos. A neve, o gelo, a chuva, os trovões, os furacões, de que ela gostava particularmente nos seus momentos mais baixos, de maior raiva, dor ou tristeza.  
       Como foi lindo ver a sua expressão com um sorriso luminoso, de orgulho, terno, sereno, e a felicidade por tantas coisas boas que ainda tinha.
       Pensei que tudo aquilo já era suficiente para a fazer feliz, mas… surpresa das surpresas… ela mostrou algo que também adoro, no ser humano…
     um bebé, a sorrir, uma mãe com um rebento ao colo, uma criança a sorrir para a sua mãe, um sorriso apaixonado, de gratidão de um  filho pela mãe, e a mãe pelo filho. 
  Uma criança pequena que brinca, feliz e animada, uma criança a dar os seus primeiros passinhos, e uma mãe orgulhosa por isso. Pessoas felizes e sorridentes com gestos de carinho.
      A Terra disse-me que é tudo isto que a faz acreditar que amanhã é um novo dia, com novos começos, que no meio de tanta podridão, tanto filho que não presta, maldoso, ainda há pessoas com bons corações, que a amam, e que amam os outros. 
      São esses, a quem a Terra chama de filhos, pedaços dela, que a fazem sorrir mesmo depois de tanta dor, e acreditar que ainda existe o bem.
      Ela sentiu que eu era filha dela, agradeceu e sem dizer mais nada…desapareceu na imensidão do espaço. 
     Eu, recolhi à minha insignificância, sim, à beira das obras que a Terra faz por nós, qualquer um de nós, é maioritariamente, insignificante. 
     Recolhi à minha paz, fui dormir. Já deitada, relembrei todas aquelas imagens, e pensei que realmente não damos valor nenhum a esta maravilhosa mãe, à nossa casa...Terra! 
     Agradeci, todos os tesouros que ela nos dá, e alguns de nós, nem repara. Ela gosta de atenção. É mulher. 
      E vocês, agradecem à Natureza e à Terra tudo o que elas nos oferece de bom, e a paz que nos traz? Ela merece ser amada, respeitada e muito bem tratada, tal como ela faz connosco.

                                                                      FIM
                                                                 Lara Rocha
                                                             31/Março/2'020

sexta-feira, 27 de março de 2020

monólogo - máscaras


desenhada por Lara Rocha



MÁSCARAS 


          Máscaras… O Carnaval é só uma vez por ano…Mas todos os dias, cada um de nós, crianças e adultos, usamos máscaras «invisíveis» aos outros, mas nós...temos plena consciência delas! Às vezes usamos uma só máscara, outras vezes usamos várias de acordo com os contextos por onde passamos ao longo do dia, e das pessoas com quem lidamos! 
         Essas máscaras... variam entre o sorriso...aberto, para darmos a entender aos outros que estamos felizes, que estamos bem, que somos fortes, e para cativarmos os outros, mas se tirarmos essa máscara, existe outra por baixo... a verdadeira. Que mostra sorriso amarelo, ou sorriso cínico, forçado, que depois de revela em comentários nas costas. 
         Outras máscaras não são tão atraentes, mas aproximam-se mais da verdadeira máscara por trás dessa. Quando mostramos um ar mais sério, mas aparentemente sereno, e até sorrimos ligeiramente, falamos docemente, transmitimos palavras positivas, simpáticas, bonitas, agradáveis, doces, meigas, mas essa máscara cai...nas palavras ditas em sordina com alguém que sente o mesmo, ou nas expressões de raiva, de inveja, de ciumes, nas caras pesadas, nas frustrações. 

         Usamos máscaras de anjos que quando caem, mostram diabos. Outras vezes usamos máscaras de maus, mas no fundo, deixamo-la cair e mostramos máscaras de bonzinhos. Umas vezes fingimos tão bem, que está tudo bem, quando na verdade, se nos tirassem a máscara, veriam lágrimas de tristeza, de dor, de rancor, de raiva.
         Essa máscara, serve para os outros, mas na nossa privacidade, em família ou sozinhos, tiramos as máscaras. Todas caem, ou deixamos cair, e somos apenas nós. A nu… com as nossas qualidades, os nossos defeitos, e os nossos medos, as nossas frustrações, os nossos desejos, os nossos medos, as nossas maldades, pensamentos, sentimentos, asneiras, indecisões.
         E caem as máscaras porque… somos humanos, de carne e osso, e não de ferro. Tentámos e fingimos com as máscaras...ser de ferro, ou de pedra, fingimos que somos fortes, só para não perder os outros...para que os outros nos apreciem. Fingimos que estamos bem! Fingimos que somos felizes. Para os outros. Pois...os outros, mas esquecemo-nos que os outros também usam máscaras.
        E também as máscaras deles caem. Na claridade, ou na escuridão, à nossa vista ou longe de nós. Se caem à nossa vista, muitas vezes, a desilusão é imensa. E a dor, as chatices. Outras vezes, quando caem, à nossa vista, ou longe de nós…se caem à nossa frente, experimentamos e conhecemos descobertas inacreditáveis, revelações incríveis, surpresas impensáveis. Se  não as vemos cair...às vezes «engolimos» as máscaras que nos mostram, outras vezes, quando a máscara é falsa, denuncia algo da máscara verdadeira, fingimos que acreditamos.
        Por mais transparentes que sejamos...ou que queiramos ou tentemos ser, por vezes, as máscaras caem sem querermos, e as verdadeiras máscaras mostram-se. É aqui que muitas relações começam a correr mal, pois ninguém tem capacidade de segurar a mesma máscara falsa, muito tempo e sempre.
        Os olhos, as verdadeiras máscaras, cansam-se, sentem-se sufocados, e denunciam a verdadeira máscara. Há máscaras e máscaras. Umas bonitas, outras feias, mas todas servem para alguma coisa, quanto mais não seja, para cobrir a verdadeira máscara. E não é preciso ser Carnaval para usarmos máscaras. Todos as usamos, no trabalho, em casa, no lazer...com família, com amigos íntimos, com colegas. Apenas connosco...usamos as verdadeiras máscaras, quando não temos de mostrar aos outros.

                        Lara Rocha
                     21 /Março/2018
        


quinta-feira, 26 de março de 2020

o ator e as palavras - poema





O ATOR E AS PALAVRAS

O ator tem o poder de transformar,
Um conjunto de palavras num espetáculo.
Brinca com elas,
Apanha-as no ar…
Recebe-as do vento,
Da chuva que cai lá fora,
Do riso e sorriso inocente das crianças,
Dos olhares brilhantes de felicidade,
Das lágrimas e do olhar vazio de tristeza,
Da solidão,
Do silêncio,
Das estações do ano,
Das estrelas,
Dos sonhos.
O ator colhe nas ondas do mar,
A energia e a força que precisa
Para transmitir o que sente.
Mergulha no seu interior
Para dar veracidade às cenas,
Colhe as melhores palavras,
Onde quer que seja…
Para provocar nos outros que o veem,
Alguma emoção.
Desperta
O que muitas vezes está
Adormecido
Em cada um de nós!
As palavras são como um interruptor.
Saltitam em cada batida do coração…
Sobem, ou perdem-se pelo caminho…
Como bolas de sabão que se desfazem
Ao chegar ao chão.
Surgem ao ritmo do respirar…
Umas vezes lento,
Calmo…sereno…suave…
Agradável…amável…
Outras vezes acelerado,
Ansioso, inquieto, agitado, nervoso…
Agressivo, violento…intenso…
O ator usa e procura
Palavras…
Muitas, ou poucas…
Umas simples, outras mais complicadas,
Mas com elas tudo ganha um novo sentido.
O ator
Dá vida às palavras,
Escritas a preto,
Frias,
Distantes,
Umas doces, outras amargas…
Umas que fazem rir…
Outras que fazem chorar…
As que despertam nos outros
Qualquer emoção…
As que fazem sonhar…
Outras que espelham a alma.
Umas palavras são como facadas,
Quando as ouvimos…
Gelam-nos,
Arrepiam-nos,
Assustam-nos,
Atravessam-nos,
Fazem-nos tremer,
Apertam-nos o coração.
Outras…
São canções de embalar,
Delicadas como flores…
Ou como gotas de chuva…
Suaves…meigas…derretem-nos!
Despertam todos os sentidos.
Com as palavras,
O ator
Faz nascer nos outros,
Mais palavras
Quando pensam no que ouviram.
As palavras voam de uns papéis
E repousam noutros…
Como borboletas…
Livres, soltas, desordenadas,
E juntam-se a outras palavras
Para formarem muitas outras…
Essas palavras…como borboletas…
Percorrem longos caminhos,
Voam
De cérebro em cérebro,
De papel em papel,
De livro em livro,
De boca em boca,
De alma em alma,
De ouvido em ouvido,
De mão em mão,
De sorriso em sorriso,
De lágrima em lágrima…
Deslizam
Do cérebro e da alma,
Pelo braço fora, até à mão…
Que as liberta.
Elas não param.
Essas palavras
Retribuem a quem as apanha,
E a quem as faz viver…
Dando vida
Ao ator,
Ao escritor,
Ao leitor…
A toda a gente…
Pois, através delas,
Das palavras,
Pensamos,
Sentimos,
Transmitimos,
Compartilhamos,
Rimos,
Choramos,
Vibramos,
Vivemos…
As palavras são mágicas…
São um dos instrumentos de trabalho
Do ator.
Têm muito poder!
 
Lara Rocha 

monólogo Crise de identidade

      


    Quem sou eu? Não sei. Sei lá! Sou... um poeta sem nome! Poeta, ou poetiza, mistura dos dois, características de um e de outro. Não sei. Não conheço, nem reconheço aquela imagem aqui à minha frente! Estou confusa. Dizem tanta coisa de mim, mais más, do que boas. 
    Toda a gente fala de mim, sobre mim e acham que sabem exatamente quem eu sou! Sabem mais do que eu, ou acham que sabem? Se eu não sei, como é que eles sabem? E agora, quem tem razão? Eles, ou eu? 
    Devem ser eles. Se dizem que sabem bem quem sou...Talvez nem eles próprios saibam quem são, e estão agora armados em sabicholas, a pensar que me podem ajudar muito, e que só eles é que sabem quem sou. Não interessa! 
    Também, tanto faz, não interessa o que sou. Sou muitas coisas, muitas pessoas, muitas vozes, muitas almas, muitos sonhos, muitas desilusões.
Muito amor, muita dedicação, muito carinho...Sou principalmente uma porta 
aberta para deixar voar as palavras. 
    Aquelas palavras...As minhas, as tuas, as de muita gente que tem de as calar! Sou a voz das vozes, aquelas vozes que são caladas, aquelas vozes consideradas pecadoras, aquelas vozes que têm de ser sufocadas. 
    Sou os gritos calados, das dores não expressadas. Sou as transformações, sou as dores, sou os desgostos, sou as realizações. Sou as almas tristes, solitárias, dolorosas, incompreendidas. Sou às vezes a maldade, sou a revolta, mágoa, rancor...Sou eu! Sou tu, sou o Mundo. 
    Sou o amor, sou o riso, sou as lágrimas, sou a infância, sou a brincadeira, a dança, a alegria, a tristeza, a festa. Sou quem já não sou, sou quem já fui e que não sou agora, mas sou eu! 
    Sou corpo, sou alma, sou água, sou leveza, peso, sonho, realidade. Sou pureza, mistério, escuridão, luz, brilho. Sou caminho, e caminhos...Sou trilho, encruzilhada.     Sou lobo, sou mocho ou coruja, sou joaninha, borboleta, coelho, formiga, ave, Águia. Sou anjo, sou demónio, sou cavalo com asas, gato, e cão, tigre, raposa... Sou humana! Sou eu! Como tu! Sou, somos... Diferentes! 
    Sou raça, sou selvagem, sonhadora, guerreira, sábia. Sou silêncio e ruído, sou montanha, sou rio, riacho, praia, selva, floresta, cidade. Sou gaivota, pérola, fantasia, amizade, vaidade. Sou tudo o que tu és. 
    Sou eu! Sou humana! Sou, somos... Sou medo, sou sensível, sou meiga. Sou simpatia e antipatia, sou verdadeira, sou mel e fel. Sou doce e amarga, boa e má, Luz e escuridão, Serenidade e revolta. 
    Sou palco, palmas, risos, ilusões. Sou quem sou! Sou eu, sou humana. Sou! Sou paz. Somos! Sou as palavras soltas de um poeta sem nome! 
                                                                 
                                                         Lara Rocha

                                                       
 

sei que me queres tocar - monólogo sobre homossexualidade II


desenhado por Lara Rocha 

Sei que me queres tocar, mas não me tocas. Sei que me tocas com o olhar, mas porque não me tocas com essas tuas mãos perfeitas, que anseio por sentir nas minhas? Tens medo? O que te impede de realizares o teu desejo, que eu sei ser o mesmo que o meu.
          Não podes. A sociedade falsa não deixa, vai julgar, vai humilhar, e agredir. Sei que me queres dar a mão, porque não me dás? Porque somos do mesmo género, e vão logo pensar que temos um caso.
          Deixa-os pensar…pelos menos nós assumimos, ao contrário deles que traem por trás. E tu deixas-te levar pelo que os outros cheios de falsos moralismos, dizem. Porque cedes aos comentários desumanos, cheios de máscaras, e a rótulos xenófobos? Porque te escondes? Porque me escondes de todos? Porque estamos a sofrer, e a tocar-nos apenas com o olhar?
          Não importa o olhar dos outros, são invejosos, falsos. Os outros são uma barreira ao nosso amor. Um amor sincero.
          Amor. Palavra que a maior parte não sabe o que significa, mas nós sabemos, somos do mesmo género, mas feitos da mesma coisa que eles. Somos eles, e elas, porque temos de nos esconder do que dizem ser pecado? Então, todos nascemos do pecado, porque somos filhos e filhas, frutos do amor entre os nossos pais.
          O amor não tem género, nem propriamente motivo. Amor é liberdade, porque nos obrigam a esconder só porque os outros acham que não é normal? Só queremos e merecemos ser respeitados pela nossa escolha. Só porque amamos alguém do mesmo género, o que muda em nós como seres humanos? Nada!
           Amar alguém do mesmo género não deixa de ser amor, porque o amor não tem rótulo, nem tem de acontecer sempre entre pessoas de géneros opostos.
           Amor, esquece o que os falsos pensam e toca-me com as tuas mãos no meu corpo, que é igual ao teu! Amor, amo-te, ama-me sem medo, esquecendo o mundo lá fora. Somos humanos, precisamos de amor, do toque, do afeto, abraços, beijos...nada disso tem género! É simplesmente amor na sua autenticidade, em todo o seu significado, e amplitude. Amor é o que queremos, amor, sem género!

- Monólogo sobre a homossexualidade para adolescentes e adultos - 
para pensar… 
palavras de um poeta sem nome!   

sábado, 7 de março de 2020

O cubo de gelo e a glaciar

         

Era uma vez um planeta gelado, onde às vezes havia sol, mas o gelo era tanto que não se sentia calor. Lá viviam grandes famílias, de gelo, em casas de gelo. Todos eram frios uns com os outros, mas diziam que era assim que demonstravam o seu amor uns pelos outros, com silêncio e frieza. 
       Um dia receberam a visita de um cubo de gelo gigante que vinha da terra, e foi passear para um sítio diferente, sem rumo. Era um ser que estava dominado pela igual frieza da terra, onde não havia tempo para nada, todos corriam, era casa, trabalho, trabalho casa, tantos afazeres, computadores, barulhos, guerras, imagens violentas, discussões, gritos, indiferença, solidão. 
         Já mal de abraçavam, tocavam ou sorriam. Tudo tomava comprimidos, andavam como se fossem robôs. Tudo era impaciência, revolta, raiva. As crianças já não tinham liberdade para brincar, sufocavam-nas com atividades, escola, com a obrigação de estudarem, serem os melhores, mas eram muito frios uns com os outros, competiam, não conversavam, só trocavam mensagens, por telemóveis e computadores. 
         O cubo de gelo estava em estado de exaustão, e quis parar. Encontrou essa cidade, silenciosa, cheia de gelo. Só se ouvia o som de alguma água. Os habitantes estavam todos recolhidos àquela hora. 
- Não está aqui ninguém? Mas que lugar tão estranho. As casas são de gelo...se calhar não vive aqui ninguém. Pelo menos está tudo silencioso. 

         De repente aparece a Glaciar. Uma linda mulher, de uma beleza incrivelmente gelada, que tratou o cubo de gelo, de forma fria, como trata todos os seus semelhantes:

- Quem és tu? 

         O cubo de gelo estremece: 

- Desculpa, já estavas aí há muito? 

         Cai uma bolinha de gelo da Glaciar. 

- Ui, caiu-te uma bolinha... 

- E depois? O que tens a ver com isso? - pergunta a Glaciar brusca 

- Desculpa, tens razão...parece que estou aqui a mais. Vou-me embora. Eu vim da terra, mas parece que nem saí dela. - murmura - Que gelo, esta mulher...

- Não. Espera... ! Disseste que vieste da Terra? 

- Sim. 

- O que vieste cá fazer? 

- Vim, descansar a minha alma. Lá em baixo está tudo muito gelado! 

- Então porque vieste para outro sítio, gelado? - pergunta a Glaciar 

- Porque pensei que ia ter a um lugar diferente. Mas também não tinha nenhum lugar definido. Só queria sair de lá. Mas, não te preocupes, vou-te deixar sossegada. Desculpa, não sabia que aqui viviam pessoas...? Parecem pessoas. 

          Cai outra bolinha de gelo da Glaciar. 

- Senta-te. - ordena a Glaciar. 

- Óh, não, não quero incomodar. 

- Mas sou eu que te estou a mandar sentar. - Reforça a Glaciar 

- Ok. Com licença... 

         Os dois sentam-se, e cai outra bolinha do Glaciar. 

- Queres beber ou comer alguma coisa? - pergunta a Glaciar 

- Não, obrigada. 

- Então, tu vens da terra...! - diz a Glaciar 

- Sim, sabes onde é? 

- Sei. Chega aqui muito gelo de lá. 

- A sério? Gelo? Como é que vocês sabem que é de lá? 

- Lá existe muito gelo, certo?

- Sim. E não é pouco. Dizem que não há tempo para nada, todos correm, casa, trabalho, trabalho casa, tantos afazeres, computadores, barulhos, guerras, imagens violentas, discussões, gritos, indiferença, solidão. Já mal nos abraçamos, tocamos ou sorrimos. Tudo é para ontem ou anteontem, toma-se comprimidos, andamos como se fossemos robôs. Tudo é impaciência, raiva. As crianças já não têm liberdade para brincar,  nem para respirar, ver a paisagem ou expressarem-se! Sufocam-nas com atividades, escola, com a obrigação de estudarem, serem os melhores, mas estão muito frios uns com os outros, competem, não conversam, só trocam mensagens, por telemóveis e computadores. Eu cansei de tanto gelo e tanta indiferença.

- Entendo o que dizes. É muito mau. Por isso é que és um cubo de gelo. 

- Sim. 

- Eu sou uma Glaciar. Aqui também somos todos gelados. Vivemos em casas de gelo, somos feitos de gelo, e somos frios uns com os outros. Aqui tudo é gelado, mas pelo menos é mais silencioso, e não tem solidão nem indiferença. Também não temos essas coisas de comprimidos, nem competição, temos tempo para tudo, convivemos bastante, à nossa maneira gelada. 

- Pois. Vocês são gelados, mas na terra, não éramos assim, quando eu era mais pequeno, havia mais calor, mais conversa, mais brincadeira, mais abraços e carinhos, sorrisos. Não houve sempre esta loucura que há agora. 

- Porquê? 

- Não sei. 

- Tu gostas de viver nesse caos todo? 

- Não, fico muitas vezes triste, desanimado, desiludido. Foi por isso, cansei, quis vir à procura de um pouco de sossego. 

- Aqui, sossego não te falta! Como é que são essas coisas...que tu falaste... de... abraços ou sorrisos...? - pergunta Glaciar 

- São uma coisa maravilhosa. Não sei explicar por palavras, mas derrete o gelo, cura, aquece, protege, envolve, aproxima, conforta, preenche, faz bem. Abraços, é... quando cada um de nós passa a ter quatro braços, dois corações e sorrisos. - explica o cubo de gelo

- Que seres assustadores. Como assim? Então, não é bom! Transformam-se? E voltam ao normal?

- É bom, é. Eu tenho dois braços, e tu também, eu tenho um coração, e tu também, que não era de gelo, mas agora é. Quando abraçamos alguém, ganhamos quatro braços, porque são os nossos, e os dois da outra pessoa. Quando abraçamos alguém, o nosso corpo também se junta, o nosso coração bate, e o coração da outra pessoa também! Por isso dizemos que ganhamos dois corações. E sorrisos, porque gostamos de trocar abraços.

- Áh! Acho que estou a perceber! 

- Vocês não fazem isso? 

- Fazemos, mas não sentimos nada disso, para nós, só temos um coração em cada corpo.

- Mas o nosso gelo é tanto... deve ser por isso! 

- Agora na minha terra também estamos assim, como vocês, aqui. 

- A sério? 

- Sim! Infelizmente. 

        E caem uma série de bolinhas e cristais da Glaciar. 

- Desculpa a minha pergunta: mas, porque é que te estão a cair essas bolinhas? 

- É que estou triste! - diz Glaciar

- Vocês aqui também ficam tristes? 

- Claro. É uma maneira de nos mantermos gelados. 

- Mas, então para ti não faz mal estar triste...? 

- Para vocês, faz? 

- Sim, muito mal. Há muita gente doente por causa da tristeza. Porque é que estás triste?

- Fiquei triste com o que me disseste! 

- Porquê? 

- Não sei! Acho que derreteste um bocadinho do meu gelo. 

- Óh, desculpa. 

- Não faz mal. 

        E caem mais bolinhas e cristais da Glaciar. 

- Queres conhecer os meus abraços, é? 

- Achas que não me faz mal? 

- Espero que não. 

- Como é que eu faço? 

         O Cubo de gelo pega delicadamente nos braços da glaciar, e abraça-a. A glaciar soluça, e começam a cair muitas pedrinhas de gelo. 

- Está tudo bem? - pergunta o cubo de gelo 

- Sim. Não me largues já... por favor! Óh... como é bom! Adoro...como é possível na tua terra não darem abraços...? Não admira que andem tão tristes. 

- Sim, tens razão, eu também sinto falta de abraços.Também adoro, mas na minha terra, não há tempo para abraços. 

- Mas isso é tão mau! 

- Pois é. Mas não posso fazer nada. 

           A Glaciar abre um enorme sorriso, e olha para o cubo de gelo. Os olhos dos dois estão brilhantes e com as cores do arco-íris, refletido em todo o seu rosto. 

- Mas que linda que estás! - diz o cubo de gelo a sorrir 

- Obrigada, tu também! - diz a Glaciar 

            Ouve-se uma voz a chamar pela Glaciar. 

- Óh, não! Desculpa, já tenho de ir embora. Mas prometo que voltaremos a encontrar-nos, para me dares mais abraços, pode ser? - diz Glaciar 

- Claro que sim! Mas, como é que eu vou saber que és tu? 

- Não contes nada lá em baixo, mas em breve, toda a tua terra vai ficar gelada, com muito frio, neve, vento... vou ser eu! Depois encontramo-nos num sítio quentinho, pode ser? 

- Claro. Com todo o gosto. 

- Encontramo-nos lá em baixo. Adorei transformar-me, ficar com quatro braços, e dois corações a bater. Adorei os teus abraços! Boa viagem. Até já...- ri a Glaciar 

          O cubo de gelo, volta feliz para a sua terra. Como prometido, rapidamente, a Glaciar vai visitar a terra do cubo de gelo. Por onde passa fica tudo cheio de neve, gelo, vento e nuvens carregadas, granizo e chuva. O cubo de gelo soube logo que era ela. 
Ela viu-o e foi ter consigo. O gelo dos dois derreteu, enquanto deram um longo abraço. A Glaciar transformou-se numa linda mulher, e ele num homem encantador. 
          Os dois conversaram horas e horas, riram, tornaram-se inseparáveis. 

Uma voz soa a gritar: 

- Huuuuuuuuuuugooooo...anda comer! 

Hugo acorda sobressaltado e percebe que foi só um sonho criado a partir da sua realidade, o viver numa sociedade indiferente, gelada, que vive cada um só para si, onde não há tempo para nada, onde há caos, e onde faltam realmente abraços. Pelo menos no seu sonho, Hugo sentiu a liberdade de concretizar um desejo e satisfazer uma necessidade de sentir afeto, abraços, comunicar, brincar, ter tempo para o outro, e para apreciar a natureza. Vivemos num mundo em que somos cada vez mais glaciares e cubos de gelo uns com os outros. 

                                                             FIM 
                                                         Lara Rocha
                                                        7/Março/2020