Número total de visualizações de páginas

sábado, 7 de março de 2020

O cubo de gelo e a glaciar

         

Era uma vez um planeta gelado, onde às vezes havia sol, mas o gelo era tanto que não se sentia calor. Lá viviam grandes famílias, de gelo, em casas de gelo. Todos eram frios uns com os outros, mas diziam que era assim que demonstravam o seu amor uns pelos outros, com silêncio e frieza. 
       Um dia receberam a visita de um cubo de gelo gigante que vinha da terra, e foi passear para um sítio diferente, sem rumo. Era um ser que estava dominado pela igual frieza da terra, onde não havia tempo para nada, todos corriam, era casa, trabalho, trabalho casa, tantos afazeres, computadores, barulhos, guerras, imagens violentas, discussões, gritos, indiferença, solidão. 
         Já mal de abraçavam, tocavam ou sorriam. Tudo tomava comprimidos, andavam como se fossem robôs. Tudo era impaciência, revolta, raiva. As crianças já não tinham liberdade para brincar, sufocavam-nas com atividades, escola, com a obrigação de estudarem, serem os melhores, mas eram muito frios uns com os outros, competiam, não conversavam, só trocavam mensagens, por telemóveis e computadores. 
         O cubo de gelo estava em estado de exaustão, e quis parar. Encontrou essa cidade, silenciosa, cheia de gelo. Só se ouvia o som de alguma água. Os habitantes estavam todos recolhidos àquela hora. 
- Não está aqui ninguém? Mas que lugar tão estranho. As casas são de gelo...se calhar não vive aqui ninguém. Pelo menos está tudo silencioso. 

         De repente aparece a Glaciar. Uma linda mulher, de uma beleza incrivelmente gelada, que tratou o cubo de gelo, de forma fria, como trata todos os seus semelhantes:

- Quem és tu? 

         O cubo de gelo estremece: 

- Desculpa, já estavas aí há muito? 

         Cai uma bolinha de gelo da Glaciar. 

- Ui, caiu-te uma bolinha... 

- E depois? O que tens a ver com isso? - pergunta a Glaciar brusca 

- Desculpa, tens razão...parece que estou aqui a mais. Vou-me embora. Eu vim da terra, mas parece que nem saí dela. - murmura - Que gelo, esta mulher...

- Não. Espera... ! Disseste que vieste da Terra? 

- Sim. 

- O que vieste cá fazer? 

- Vim, descansar a minha alma. Lá em baixo está tudo muito gelado! 

- Então porque vieste para outro sítio, gelado? - pergunta a Glaciar 

- Porque pensei que ia ter a um lugar diferente. Mas também não tinha nenhum lugar definido. Só queria sair de lá. Mas, não te preocupes, vou-te deixar sossegada. Desculpa, não sabia que aqui viviam pessoas...? Parecem pessoas. 

          Cai outra bolinha de gelo da Glaciar. 

- Senta-te. - ordena a Glaciar. 

- Óh, não, não quero incomodar. 

- Mas sou eu que te estou a mandar sentar. - Reforça a Glaciar 

- Ok. Com licença... 

         Os dois sentam-se, e cai outra bolinha do Glaciar. 

- Queres beber ou comer alguma coisa? - pergunta a Glaciar 

- Não, obrigada. 

- Então, tu vens da terra...! - diz a Glaciar 

- Sim, sabes onde é? 

- Sei. Chega aqui muito gelo de lá. 

- A sério? Gelo? Como é que vocês sabem que é de lá? 

- Lá existe muito gelo, certo?

- Sim. E não é pouco. Dizem que não há tempo para nada, todos correm, casa, trabalho, trabalho casa, tantos afazeres, computadores, barulhos, guerras, imagens violentas, discussões, gritos, indiferença, solidão. Já mal nos abraçamos, tocamos ou sorrimos. Tudo é para ontem ou anteontem, toma-se comprimidos, andamos como se fossemos robôs. Tudo é impaciência, raiva. As crianças já não têm liberdade para brincar,  nem para respirar, ver a paisagem ou expressarem-se! Sufocam-nas com atividades, escola, com a obrigação de estudarem, serem os melhores, mas estão muito frios uns com os outros, competem, não conversam, só trocam mensagens, por telemóveis e computadores. Eu cansei de tanto gelo e tanta indiferença.

- Entendo o que dizes. É muito mau. Por isso é que és um cubo de gelo. 

- Sim. 

- Eu sou uma Glaciar. Aqui também somos todos gelados. Vivemos em casas de gelo, somos feitos de gelo, e somos frios uns com os outros. Aqui tudo é gelado, mas pelo menos é mais silencioso, e não tem solidão nem indiferença. Também não temos essas coisas de comprimidos, nem competição, temos tempo para tudo, convivemos bastante, à nossa maneira gelada. 

- Pois. Vocês são gelados, mas na terra, não éramos assim, quando eu era mais pequeno, havia mais calor, mais conversa, mais brincadeira, mais abraços e carinhos, sorrisos. Não houve sempre esta loucura que há agora. 

- Porquê? 

- Não sei. 

- Tu gostas de viver nesse caos todo? 

- Não, fico muitas vezes triste, desanimado, desiludido. Foi por isso, cansei, quis vir à procura de um pouco de sossego. 

- Aqui, sossego não te falta! Como é que são essas coisas...que tu falaste... de... abraços ou sorrisos...? - pergunta Glaciar 

- São uma coisa maravilhosa. Não sei explicar por palavras, mas derrete o gelo, cura, aquece, protege, envolve, aproxima, conforta, preenche, faz bem. Abraços, é... quando cada um de nós passa a ter quatro braços, dois corações e sorrisos. - explica o cubo de gelo

- Que seres assustadores. Como assim? Então, não é bom! Transformam-se? E voltam ao normal?

- É bom, é. Eu tenho dois braços, e tu também, eu tenho um coração, e tu também, que não era de gelo, mas agora é. Quando abraçamos alguém, ganhamos quatro braços, porque são os nossos, e os dois da outra pessoa. Quando abraçamos alguém, o nosso corpo também se junta, o nosso coração bate, e o coração da outra pessoa também! Por isso dizemos que ganhamos dois corações. E sorrisos, porque gostamos de trocar abraços.

- Áh! Acho que estou a perceber! 

- Vocês não fazem isso? 

- Fazemos, mas não sentimos nada disso, para nós, só temos um coração em cada corpo.

- Mas o nosso gelo é tanto... deve ser por isso! 

- Agora na minha terra também estamos assim, como vocês, aqui. 

- A sério? 

- Sim! Infelizmente. 

        E caem uma série de bolinhas e cristais da Glaciar. 

- Desculpa a minha pergunta: mas, porque é que te estão a cair essas bolinhas? 

- É que estou triste! - diz Glaciar

- Vocês aqui também ficam tristes? 

- Claro. É uma maneira de nos mantermos gelados. 

- Mas, então para ti não faz mal estar triste...? 

- Para vocês, faz? 

- Sim, muito mal. Há muita gente doente por causa da tristeza. Porque é que estás triste?

- Fiquei triste com o que me disseste! 

- Porquê? 

- Não sei! Acho que derreteste um bocadinho do meu gelo. 

- Óh, desculpa. 

- Não faz mal. 

        E caem mais bolinhas e cristais da Glaciar. 

- Queres conhecer os meus abraços, é? 

- Achas que não me faz mal? 

- Espero que não. 

- Como é que eu faço? 

         O Cubo de gelo pega delicadamente nos braços da glaciar, e abraça-a. A glaciar soluça, e começam a cair muitas pedrinhas de gelo. 

- Está tudo bem? - pergunta o cubo de gelo 

- Sim. Não me largues já... por favor! Óh... como é bom! Adoro...como é possível na tua terra não darem abraços...? Não admira que andem tão tristes. 

- Sim, tens razão, eu também sinto falta de abraços.Também adoro, mas na minha terra, não há tempo para abraços. 

- Mas isso é tão mau! 

- Pois é. Mas não posso fazer nada. 

           A Glaciar abre um enorme sorriso, e olha para o cubo de gelo. Os olhos dos dois estão brilhantes e com as cores do arco-íris, refletido em todo o seu rosto. 

- Mas que linda que estás! - diz o cubo de gelo a sorrir 

- Obrigada, tu também! - diz a Glaciar 

            Ouve-se uma voz a chamar pela Glaciar. 

- Óh, não! Desculpa, já tenho de ir embora. Mas prometo que voltaremos a encontrar-nos, para me dares mais abraços, pode ser? - diz Glaciar 

- Claro que sim! Mas, como é que eu vou saber que és tu? 

- Não contes nada lá em baixo, mas em breve, toda a tua terra vai ficar gelada, com muito frio, neve, vento... vou ser eu! Depois encontramo-nos num sítio quentinho, pode ser? 

- Claro. Com todo o gosto. 

- Encontramo-nos lá em baixo. Adorei transformar-me, ficar com quatro braços, e dois corações a bater. Adorei os teus abraços! Boa viagem. Até já...- ri a Glaciar 

          O cubo de gelo, volta feliz para a sua terra. Como prometido, rapidamente, a Glaciar vai visitar a terra do cubo de gelo. Por onde passa fica tudo cheio de neve, gelo, vento e nuvens carregadas, granizo e chuva. O cubo de gelo soube logo que era ela. 
Ela viu-o e foi ter consigo. O gelo dos dois derreteu, enquanto deram um longo abraço. A Glaciar transformou-se numa linda mulher, e ele num homem encantador. 
          Os dois conversaram horas e horas, riram, tornaram-se inseparáveis. 

Uma voz soa a gritar: 

- Huuuuuuuuuuugooooo...anda comer! 

Hugo acorda sobressaltado e percebe que foi só um sonho criado a partir da sua realidade, o viver numa sociedade indiferente, gelada, que vive cada um só para si, onde não há tempo para nada, onde há caos, e onde faltam realmente abraços. Pelo menos no seu sonho, Hugo sentiu a liberdade de concretizar um desejo e satisfazer uma necessidade de sentir afeto, abraços, comunicar, brincar, ter tempo para o outro, e para apreciar a natureza. Vivemos num mundo em que somos cada vez mais glaciares e cubos de gelo uns com os outros. 

                                                             FIM 
                                                         Lara Rocha
                                                        7/Março/2020    
               


   

Sem comentários:

Enviar um comentário

Muito obrigada pela visita, e leitura! Voltem sempre, e votem na (s) vossa (s) história (s) preferida (s). Boas leituras