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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Os búzios ao nascer do sol

        

         Era uma vez uma praia, sossegada, selvagem, paradisíaca, muito limpa, de areias brancas e água quente, transparente, onde havia muitos tesouros no mar.                         Ouviam-se as gaivotas a piar, aflitas, numa grande correria atrás de peixe fresco, mas naquela praia nunca conseguiam pescar, porque os peixes eram todos enormes, e tão bonitos que nem elas queriam comer.
         Mesmo assim pousavam na areia e ficavam a apreciar a beleza do mar. Adoravam sentir a brisa nas suas penas e patas, em contraste com a areia fresca e quente, conforme a hora do dia.
         Se estava demasiado calor, as gaivotas encontravam um abrigo seguro debaixo das palmeiras rasteiras, e às vezes recebiam uns pequeninos peixinhos que os peixes grandes apanhavam e não gostavam, para agradecer o facto de não serem comidos.
        O vento também marcava a sua presença na praia. Umas vezes soprando levemente, outras vezes, mais forte, e mesmo demasiado forte. Tão forte que parecia que desfazia a praia toda, e claro, levantava a água.
        Os tesouros não eram moedas de ouro, nem pedras preciosas, ou outros objetos deixados por navegadores. Eram estrelas do mar gigantescas e pequenas, de todas as cores, que deixavam qualquer um hipnotizado, ainda por cima, dançavam devagar, ao sabor da maré, e apanhavam sol, ao mesmo tempo que boiavam nas águas. Peixes de todas as cores e tamanhos, aos milhares, pedras, conchas e búzios mais que perfeitos.
        Um dia, em conversa, os búzios descobriram que tinham um sonho comum: ver o nascer do sol. Ouviam outros peixes falar da beleza do nascer do sol, e ficavam muito curiosos. Quiseram muitas vezes viver essa experiência, mas nunca conseguiram, porque estavam a dormir à hora que o sol nascia.
       Certa noite, ficaram tão entusiasmados com a ideia que depois de uma noite de festança, finalmente conseguiram realizar esse desejo. Foram para a superfície, eram aos milhares, e festejavam, cantavam, dançavam, faziam de tudo para se manterem acordados.
        De repente, fez-se silêncio em toda a praia. Um búzio reparou que o céu estava diferente.
- Está a começar... - comenta um búzio
        Só se ouvia o zumbido das pequeninas ondas carneirinhos a acariciar a areia. Os búzios estavam ansiosos, e não tiravam os olhos do céu, onde viam milhões de estrelinhas a desaparecer por trás das lindas cores que iam mudando, à medida que o sol começava a aparecer. A cada mudança de cor, soltavam longas exclamações e sorrisos de encanto.
- Áááááááhhhhh... que coisa linda!
-Uuaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuuuuuuuu!
- Parece magia!
- Como conseguem?
- Que lindo!
- Ah, adoro aquelas cores.
        Comentam uns com os outros. O próprio mar mudava as suas cores com o reflexo.
- Áh!
        Tanta coisa bonita que queriam apanhar tudo, e não perder nada!
- O sol... - exclamam todos
        E tinham razão. O sol estava mesmo a aparecer, lindo, redondo, brilhante, cada vez mais alto.  Os búzios estavam tão felizes, que nem falavam, e muito cansados, depois de uma noite de festa, sem dormir. Queriam aspirar tudo o que estavam a ver de tão bonito. Apesar de cansados, tinham acabado de realizar um sonho antigo, e comum: ver o sol nascer. Aplaudem, sorriem, e adormecem no mesmo lugar onde ficaram para ver o sol a nascer. Mais nenhum falou, e cada um deles dormiu embalado pelas cores do amanhecer.
        Depois deste espetáculo que viram, fizeram o mesmo outras manhãs, e em todas as vezes a que assistiram ao nascer do sol, ficaram tão maravilhados como da primeira vez. De cada vez que viram, a horas diferentes, perceberam que as cores eram diferentes, mas todas, eram simplesmente mágicas.
                De certeza que os seus sonhos foram com aquelas cores, não acham?

                                                                                                                  FIM
                                                                                                                 Lálá
                       
                    23/ Dezembro/ 2019 

                                             

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

monólogo Mulher deixa-te disso



Mulher...és perfeita! Deixa-te disso.... Disso... dessas coisas que fazes ao teu corpo que já é perfeito na sua imperfeição. Só para que os outros gostem, só para repararem que tens mamas grandes, ou rabo arrebitado e grande. Gosta do teu corpo assim como ele, imperfeito, perfeito! Para quê massacrá-lo com silicone, se és um ser humano e não uma boneca? As bonecas têm o seu corpo, tu tens o teu, em todo o seu esplendor!
Mulher, deixa-te de pensar no que os outros vão pensar. Deixa de pensar se os outros vão gostar de ti. Para de te torturar só porque achas que os outros vão gostar de ti assim, daquela ou de outra maneira, porque alguém que conheces, tem o que tu não tens, e toda a gente gosta. Toda a gente gosta.... Será?
Já pensaste que pode ser só para serem simpáticos e conquistar? Já pensaste alguma vez, que talvez essa mulher que tem o que tu achas que devias ter para gostarem de ti, pode sofrer muito, ou perceber que todos são falsos com ela?
Para quê essa coisa de a outra tem, todos gostam...se, o que ele tiver for de plástico, falso, só para os outros gostarem? Será que essa mulher que achas que é melhor que tu, só porque tem atributos que achas que todos gostam, não sofreu? Será que ela não perdeu a sua identidade? Acredita que sim!
Quando mudas o teu corpo com o qual nasceste, aquele corpo maravilhosamente imperfeito, perfeito, que os teus pais te deram, e o que trabalho que deu fazer-te...o que a tua mãe sofreu para que nascesses...não tiveste trabalho nenhum, deram-te tudo o que tens, o teu pai e a tua mãe, e todos os antepassados, marcaram a sua presença em ti, nesse corpo que tens.
Talvez um dia, ou brevemente sejas mãe. Imagina, teres de passar por tudo o que a tua mãe passou, e o ou a/os teus filhos quererem mudar tudo? Não ficarias triste por isso? Não ficarias magoada? Imagino que sim! As mães sofrem muito, o corpo delas muda completamente para nascermos, e depois de nascermos, e nós vamos dar-lhe como presente a mudança do corpo que ela e o nosso pai fizeram com tanto amor?
Vamos agradecer aos nossos antepassados toda a magia, toda a história, toda a continuidade de geração em geração de muito mais que um mero nome familiar, mudando o nosso corpo, só porque achamos que os outros vão gostar.
Mas, e quem muda coisas no corpo, será que gosta mesmo? Será que sacrificando o corpo perfeito, e tornando-o falso, imperfeito, vai mesmo conseguir conquistar os outros?
Não tenhas ilusões. Não. É claro que não vai. Se queres mudar alguma coisa em ti, muda se a tua saúde está em risco, ou muda o que achas menos bonito, mas para tu gostares!
Para agradar aos teus olhos, não aos olhos dos outros, não lhes faças a vontade, porque muitas mulheres mudam o corpo maravilhoso que sempre tiveram, para consolar olhos gulosos de homens e mulheres invejosos que acham que as relações só existem se houver beleza física, se tiverem um conjunto de características, que só as referenciam para satisfazer o seu ego, sem pensar se essas são mesmo as mais importantes para se construir uma relação!
Não te iludas, mulher, não faças isso, tudo não passa de uma fantasia. O que constrói uma relação verdadeira é o que levas no coração, aquilo que dás, a pessoa que és... e pessoa é corpo, mas é ainda mais alma! Para quê fazer-lhes a vontade... nada disso, tu é que tens as tuas vontades, tu é que tens valor, tu é que dás o teu melhor. Se não gosta, não gosta, paciência. É porque não é para ti, e mereces muito mais!
Quem gosta mesmo de ti, não vai ver se tens mamas e rabo grande, de plástico, de tens rugas, gordura a mais, ou se passas fome para parecer magra! Deixa-te disso! És perfeita assim como és...com todas as características que nasceram contigo! Dá o teu coração, e tudo fora de ti mudará.
O que és, o que dás, vai luzir em todo o teu corpo fantasticamente imperfeito, perfeito. Deixa-te disso, mulher. Disso de usares coisas que toda a gente usa, só porque todos usam, se não gostas, se não te identificas, esquece!
Não importa seres diferente...não é essa diferença de teres ou não teres o que os outros têm, se nem sequer combina contigo, nem te assenta bem, ou se não te traz conforto.
Tu tens os teus gostos, tu tens as tuas vontades, tu tens o teu corpo, com essas formas, diferentes, que te tornam única. A ti, e a todos, embora pensem que todos têm de ser iguais, para serem aceites!
Deixa-te disso, mulher! Ignora comentários. Cada um é como é! Tu és assim, mulher, linda à tua maneira, perfeita na tua imperfeição, guerreira, diferente.
Fica feliz e ainda mais vaidosa por seres quem és, assim, e por não mudares só porque os outros não gostam ou te dizem coisas desagradáveis. Deixa-os com a ignorância deles, tu é que és a inteligente, porque és o que és, és natural, não andas a esconder o que não gostas, só para agradar aos outros, não mudas nada em ti, só porque os outros...é exatamente isso que te torna perfeita!
És perfeita por seres diferente, és perfeita por não mudares o que te deram só porque os outros mudaram, ou querem que mudes, ou acham que devias mudar, ou que tens de ser assim, assado ou cozido... deixa-os falar.
Tu és assim, és o orgulho de ti própria, dos teus pais, de quem te ama, e de quem te valoriza assim! Como és, com o corpo que tens! E mantens a tua posição, fazes as tuas escolhas, tens os teus gostos, és autêntica, és única, assim, és o que és!
Mulher...não estragues o teu corpo, só porque tens rugas, cabelos brancos, peles caídas ou manchadas, peitos pendurados, dobras, pregas, o que for...para quê escondê-las? Para quê tirá-las? Elas também fazem parte de ti, e são igualmente maravilhosas, se o que trouxeres dentro for bonito, puro, sincero, de qualidade.
Tudo o que é natural é maravilhosamente bonito. Quando nasceste, já estavam reservadas para ti, todas essas transformações, se tiveste a felicidade de chegar a uma idade avançada. Muda porque tu queres, muda para ti, muda para tu gostares.
Nas mudanças, a única coisa que importa és mesmo tu! E unicamente tu, porque tu és mulher, tu és única, tu és diferente, e tu és perfeita, com todas as tuas belas imperfeições.
Tens dúvidas? Experimenta desenhar um corpo humano, feminino, ou parte dele, e verás como é difícil, porque é perfeito em toda a sua imperfeição. Até o que trazes dentro não é perfeito, mas só porque tudo funciona bem, já podes considerar perfeito e maravilhoso!
O que interessa é a tua felicidade, e tudo de mágico que podes com as imperfeições do teu corpo, pois quem gostar de ti, de verdade, vai conhecer-te em profundidade, e não em superficialidade, como acontece às amizades e ao que chamam de relações, aqueles encontros corporais fugazes, de olhos iludidos, que depois do fogo de vista, uma vez... ou algumas vezes, com sorte, perdem todo o encanto, porquê?
Porque não olham para lá da superfície. Porque valorizam tudo o que é falso, tudo o que chama a atenção por momentos. Não queiras esses encontros... exige mais, muito mais, e se for verdadeiro, ele vai ter de se esforçar, e vai gostar, mas não facilites o trabalho!
Tu és mulher, tu tens de ser respeitada, e não é só porque eles querem ou gostam que tu tens de ceder, e fazer-lhes as vontades. Desconfia de conquistas rápidas, isso não existe, é só o primeiro momento, e desaparece logo a seguir.
Pensas que se mudares algo, ele vai gostar? Esquece...se mudares o que quer que seja nem vai reparar, vai desfilar contigo, à frente dos outros, para lhes mostrar que conquistou uma gaja boa, gira, que ele é que é que é poderoso! Não lhes dês esse gosto, de exibicionismo...se é isso que ele quer, tu não fazes parte, ele não te merece!
 Mulher, gosta de ti assim. Na tua imperfeição, perfeita! E deixa os outros pensarem o que quiserem. Segue o que tu queres, segue o que gostas, segue o que achas que é o melhor para ti, independentemente do que os outros acham que tens de fazer, que tens de ser. 
Mulher, és tu que importas, não são os outros. És mulher, e só por isso já és perfeita, com todas as tuas imperfeições. A única coisa que é perfeito é o teu orgulho em ti, de seres como és, de seres diferentes, de pensares diferente, e de dares o melhor de ti. Dá-te ao respeito, tu mereces.
        És perfeita...na imperfeição! Aliás, a perfeição não existe. És mulher. O que quer que faças será bem e mal julgado. Se fazes és julgada, se não fazes és julgada, com o «devias», o «tinhas de», «porque fizeste isso», «se fosse eu...». 
         Por isso, faz o que faz sentido para ti, não importa o que digam! O que quer que faças, faz porque queres, faz por amor, faz por amizade, faz porque te faz bem. O que quer que faças de bom ou de mau pelos outros, será sempre bem ou injustamente julgado, por isso, faz o que tem sentido para ti, o que dá alívio, paz ou felicidade. 
         Faz para deixar brilhar a tua luz, haverá sempre alguém que não a suportará, mas não faz mal, não te faz falta! A tua luz é suficiente para ti e para quem gosta de ti. Como és! Deixa brilhar a tua luz, o melhor que há em ti, mesmo com a certeza de que uns vão criticar, e outros gozar ou ignorar, por isso faz o que achas melhor para ti, não porque vão falar de ti, ou ignorar-te. 
       Terás sempre alguém que te reconhecerá. e retribuirá, admirará, mesmo que não seja aquela pessoa a quem deste de ti, mesmo que te julguem, critiquem ou ignorem. Faz o que faz sentido para ti, o que deixa ser quem realmente és, sem máscaras. 
        Só tu e a tua essência importa, nada mais! Sê quem és no teu melhor e quando for preciso, no teu pior! Quem te julga ou ignora também não tem nada de perfeito! Só ainda não reparou como é imperfeito, mas um dia descobrirá, e pode ser que te ache perfeita. 
         

auto-estima e autoaceitação imperfeição monólogo - perfeição orgulho respeito unicidade


 Lara Rocha 
20/Agosto/2018


ANJOS DE ASAS VERDES (monólogo para adultos)


MONÓLOGO PARA ADULTOS

Anjos de asas verdes

março 18, 2018



(Sorriso) Anjos de asas verdes...é assim que trato, aqueles ferros que nos protegem de ti! A mim e a muitas outras mulheres. Nem sei se poderão chamar-nos mulheres! (aumenta a intensidade da raiva, à medida que o texto vai desenvolvendo)

Dizem-nos que...fomos mulheres, e talvez tenhamos sido, enquanto éramos livres. Porque já fomos livres, sim, antes de vocês predadores, abutres devoradores de carne podre, nos prenderam às vossas garras.

Primeiro fizeram-nos a dança da conquista, nupcial, sedutora, com as vossas penas negras, brilhantes, a balançar e a rodar de um lado para o outro, ao ritmo do bater do vosso coração apaixonado. (grita) Que nojo!

Ainda ouço as tuas palavras falsas, que guardavam o veneno da paixão e a anestesia da mesma. Anestesia, isso mesmo! Só podia ter sido anestesia.

Aquelas tuas palavras (sorri) áááááhhhhh…cheiravam-me a mel. Que delícia, tudo era um sonho, tu… irresistível, lindo, elegante, de roupa preta, sexy, de olhar penetrante. Agora tenho medo dessa tua imagem, que teima em aparecer nos meus sonhos. Talvez, por ser a memória mais feliz que tenho de ti. Abutre! Comeste-me tudo, e eu nem me apercebi.

Como foi possível, mas que idiota! (grita com ela própria) Que estupida. Parecia uma adolescente ingénua, apaixonada. Como é que isso foi acontecer? (irritada) Onde é que eu estava com a cabeça? Em ti, por isso é que não vi o que se escondia por trás daquela máscara cheia de veneno.

Monstro! O homem que eu amava, que era o meu príncipe encantado, o meu orgulho. Destruíste-me, com esse teu poder de ave necrófaga.

Nojento. Ááááááááááhhhhhhh… sinto nojo de ti e de mim ainda mais. Nojo é a palavra mais simpática que encontro, agora, neste momento em que não sei, não sabemos o que somos…Nem sabemos se somos! Alguma coisa seremos…. Com sorte!

Anjos de asas verdes...estes que nos cercam, de cuidado, de amor, e de respeito, como pássaros na gaiola. Nestas asas temos tudo o que tu e todos os outros, não nos deram.

Mas antes pássaros na gaiola, do que objetos nessas tenazes que chamam de mãos...(revoltada) Não são mãos, não podem ser mãos...Depois de tanto mal que nos fizeram...! Nunca nos deram as mãos com que sempre sonhamos, aquelas mãos que seguravam as nossas, que nos acariciavam, que nos faziam ir à lua de prazer e explodir de felicidade. O sonho de qualquer mulher. As mãos com que sempre sonhamos, e desejamos, aquelas mãos que merecíamos, não fazem mal. Não magoam, são usadas para nos fazer sentir bem, para nos oferecer pequenos mimos, para nos colocar anéis ou alianças, para nos escreverem bilhetinhos românticos. As mãos que dávamos como garantidas, afinal, não eram mãos.

Porque as mãos não fazem mal, e o que é que vocês nos fizeram? Mal. Usaram essas malditas garras de abutres para nos rasgar inteiras e no maior número de pedaços que conseguiram. Mais outra ilusão, que conseguiram passar-nos com a vossa dança feiticeira, nupcial: mãos…pensávamos que tinham mãos, e víamos mãos, acreditávamos nas mãos que víamos.

Elas não passavam afinal de mais uma armadilha para nos caçar, e magoar. Na verdade, vocês não tinham mãos, nem tu, nem os outros, das outras que estamos aqui.  (grita enojada) Tinham outra porcaria qualquer. Sim, porcaria, porque o abutre tem aquelas garras com certeza infestadas de bactérias, fungos e vírus mortais. (respira ofegante e volta a acalmar, sorri).

Anjos de asas verdes...São os braços que deveriam ser teus, que pensei serem meus, aqueles braços...que me envolveram e depois… Que me espancaram até ficar sem fôlego, que apertaram o meu pescoço. (grita, agarrada ao próprio pescoço) Ainda sinto, não consigo esquecer, a dor e o sufoco de querer gritar e de tentar lutar com todo o meu corpo, ou gritar.

Ainda sinto os teus malditos alicates a apertar-me cada vez mais e com a outra mão a dar-me socos na cabeça. Quase sem respirar e sem força. E tu, ainda a carregar mais, a bater-me em tudo quanto era pedaço de corpo. (deita-se no chão, revoltada, grita, chora, dá socos no chão, agarrada ao pescoço, enrosca-se, e fala deitada, ofegante). Maldito! (grita cheia de ódio e raiva. Respira e acalma-se, sorri, estica-se e abre todo o corpo)

Que bom que é respirar agora livremente, áh! Como é indescritível este momento em que estou num quarto sozinha, a esfregar-me no chão, porque quero, a sentir o chão, porque quero! Como é bom sentir este espaço todo à minha volta. Áh! Não há dinheiro que o pague. Aqui não tenho braços que se transformaram noutra coisa qualquer. Sim, coisa! Foi como sempre nos trataram, enquanto estivemos convosco.

O que fomos? Não existem palavras para dizer o que fomos...se é que alguma vez fomos, o nosso cérebro apagou tudo, talvez com a porrada que nos deram. Tenho a sensação que eramos felizes! Como qualquer outra mulher, bem tratada, estávamos cheias de sonhos que pensávamos realizar, inspiradas nos desenhos animados e filmes de princesas. Quantas vezes quis ser como elas. E tínhamos direito a isso, a ser tratadas como princesas.

Quando passamos a ser vossas…o que fomos? Nem nós sabemos. Não fomos nada! (sorri) Anjos de asas verdes... Aqueles ferros verdes, frios, crus, que nos protegem das mãos que se deveriam juntar com as nossas, num ato de amor. Aquelas mãos que receberam a aliança, e agora recebem algemas!  (gargalhadas eufóricas de grande felicidade) Áh, áh, áh… nem imaginas a felicidade que senti quando me disseram que finalmente estavas na jaula (gargalhada) Que maravilha. Uma jaula para abutres. Deve ser lindo. (gargalhadas) E daí, deve ser uma visão dos infernos, tudo escuro. Estão numa jaula de luxo, porque vocês deviam estar numa fogueira…esse sim, era um grande prémio. Ou num buraco cheio de pregos ou picos, acorrentados…sei lá…!

Agora…numa jaula com tudo…mesmo assim, já fiquei feliz. Se depender de nós, todas juntas, (irritada e com ódio) chegou a vossa vez de comerem carne podre, nojentos… a vossa própria carne, ou definhar e apodrecer de fome.

Vão pagar cêntimo, por cêntimo. Áh, áh, áh (gargalhadas) E nós, cá fora, seremos umas novas mulheres. Sim, depois de sermos restos, seremos mulheres completas.

É para isso que estes anjos de asas verdes estão a trabalhar com todo o amor. Nós, cá fora, a poder respirar o ar, a sentir calor e sol, vento e chuva, e vocês lá, naquela jaula a despedaçarem-se, ou a devorarem-se uns aos outros… (com ódio) É pouco!

Se depender de nós, todas as que aqui estamos, nunca mais na vossa vida vão sair dessa jaula chiquérrima! (respira ofegante, sorri) Anjos de asas verdes, eles são a nossa casa, não aquela casa de sonho, que ia ser minha e tua, e delas...Mas aquela casa, que me salva! Que nos salva! Anjos de asas verdes, são aqueles seres que nos fazem acreditar e trazem esperança de que somos alguém! 

Anjos de asas verdes, são aqueles ferros que nos mantém longe de ti, de vocês, de quem um dia sonhamos ficar ao lado, para sempre! Anjos de asas verdes, são aqueles seres que nos abrem os olhos todos os dias, que tentam tirar a dor que causaste, causaram...Mas a dor não sai! É uma dor que não tem cura. Pelo menos trazem-nos todos os dias, sorrisos doces, paz, abraços carinhosos e sinceros, enquanto a noite não chega.

Anjos de asas verdes, são aqueles seres, que partilham o mesmo sítio que eu, que nós.... Que abrem os seus braços para acolher os nossos.... Aqueles braços que te deviam envolver, mas tu partiste-os. Aqueles braços que te aconchegariam, mas tu destruíste!

Esses anjos de asas verdes, são os que nos fazem acreditar que ainda há pessoas...boas! Anjos de asas verdes, são aqueles que nos fazem acreditar num hoje bom, e num amanhã melhor! Longe de ti, com quem sonhei ser princesa amada!

Anjos de asas verdes...Almas boas que protegem, almas vagas, ou sem almas...Anjos de asas verdes, que transportam a esperança, de ser uma mulher...Aquela que dizias amar, e afinal destruíste...(raiva) Aquela a quem pedias desculpa, por cada maldade...E depois, voltavas a fazer o mesmo.

Como se as desculpas fossem concertar a destruição causada! (sorri) Esses anjos de asas verdes, trazem-nos a esperança de amanhã sermos mulheres, sempre protegidas por essas asas de anjo. Um dia destes serei gente...E quem sabe o que tu serás...?

(ódio, nojo e raiva) Nacos de carne podre para alimentar abutres. Talvez...Não quero saber! Um dia...saberei de ti.... Quem sabe!

Serei, seremos...umas novas mulheres. Aquela que conheceste, e que dizias amar...mataste-a. Destruíste-a. Já não existe! Aliás, talvez nunca tenha existido. Já não sei mais quem fui... Quem era...Sei mais ou menos quem sou, agora! Sou um ser em criação e em construção. Um dia.... Quem sabe...pode ser que a encontres longe, muito longe. Numa outra galáxia.

Até lá, quero aproveitar cada milímetro de mulher que serei, cada milésimo de segundo que desperdicei ao teu lado, agora em liberdade, sem ti. Juntas, mostraremos o que vocês perderam. Talvez nunca aprendam, desde que permaneçam nessa jaula de luxo, para nós já não nos interessa. Juntas, seremos o que nunca fomos convosco. (grita) Mulheres!



(Pelas mulheres vítimas de violência doméstica, para que encontrem sempre anjos de asas verdes, ou de outra cor qualquer, que as protejam e que as façam renascer fortes, independentes…mulheres!)



Lara Rocha

Dezembro/2019