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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

A montanha que estava cheia de sede

     

Foto de Lara Rocha 
    

           Era uma vez uma misteriosa montanha não muito grande, que se mexia, e parecia seca, abandonada. 
          Quem a via pensava que se tratava de um pedacinho de outra montanha maior, de quem se tinha soltado.
          Percorria quilómetros, umas vezes voltava ao mesmo sítio, outras vezes encostava noutros lugares para ver as paisagens. 
         Um dia, estava um calor que se abafava, o céu cheio de nuvens de fumo, quase não se via o sol, havia incêndios por todo o lado. 
         A montanha movia-se muito lentamente, mas naquele dia pareceu mexer- mais rápido, aflita para se proteger daquele ambiente. 
        Encostou-se a um lago artificial, e bebeu toda a água que tinha, por isso, ficou tão pesada que não se conseguiu mexer mais nesse dia, e adormeceu. Acordou de repente muito assustada com gritos e correrias.
- A água desapareceu, a água...? Água, precisamos de água...não há água... 
 Abriu os olhos para perceber o que se passava, e todos gritavam perdidos a correr sem saber para onde iam. 
        Quando olhou para a sua frente, quase não via um palmo. Soltou um valente e estrondoso espirro, e do seu interior saíram enormes jatos de água, uma boa parte da que ela tinha bebido, e com isso conseguiu apagar os incêndios. 
        Quando bocejou, o seu vento foi tão forte que limpou todo o fumo do ar, o sol voltou a brilhar, o céu ficou muito mais claro. Mas continuava a faltar água em muitos tanques, fontes, lagos que tinham usado. A montanha indicou aos habitantes onde havia água limpa e pura, baixou-se até ao nível do chão, e convidou os habitantes que quisessem a subir para as suas costas. 
        Todos levaram baldes, garrafas, garrafões, mas ela percebeu que dessa maneira não iam conseguir. Mesmo assim, levou-os onde precisavam, bebeu mais água, e despejou-a nos sítios onde era preciso, juntamente com toda a que as pessoas recolheram. 
        De repente, a montanha desaparece, e no seu lugar aparece uma linda mulher, que afinal era uma feiticeira boa. 
        Ela contou que se transformava numa montanha para poder ver o que estava a acontecer, e quem precisava da sua ajuda! Disse que teve de fugir da sua aldeia com a sua família, há muito tempo atrás, porque achavam que ela era uma bruxa, e que fazia mal. 
        Os habitantes da aldeia, ficaram-lhe muito gratos, e convidaram-na, a ela e à sua família para visitar a aldeia. 
        Ela assim fez, uns dias depois apareceu na aldeia com a sua família, todos os levaram a conhecer as maravilhas da aldeia, as casinhas, as pessoas, e fizeram uma grande festa, com um banquete cheio de música, alegria, muitos petiscos. 

                              FIM 
                          Lara Rocha 
                     29/Janeiro/2021 


O mosaico da aldeia



   Era uma vez numa aldeia pequenina, com poucos habitantes, uma parede enorme, muito branca, que nem sabiam muito bem quem a tinha posto lá. 
     Todos os dias, um senhor olhava para aquela parede e sentia uma grande tristeza, um enorme vazio. Não sabia explicar porque sentia isso, mas não gostava daquela parede branca. 
     Um dia, um pintor sentou-se à janela da sua casa e olhou para a parede. Rabiscou uma tela, para tentar inspirar-se, mas não lhe saiu nada de ideias. Passou esse senhor que não gostava da parede branca, e comentou: 

- Não gosto nada desta parede branca! Provoca-me uma grande tristeza e um enorme vazio. 

- Óh, estou a ver. Sabe que eu também não gosto muito desta parede tão branca, mas às vezes quando olho para ela, consigo imaginar umas imagens. E que tal se experimentarmos desenhar aí alguma coisa...? Sem se preocupar se está bem desenhado ou não... 

- Hummm...eu não sei desenhar, mas se diz que não interessa se sei ou não desenhar...acho que consigo riscar ali qualquer coisa. 

- Isso. Força! 

- Vai fazer o mesmo? 

- Sim. Faça primeiro. 

- Com o quê? 

        O pintor dá-lhe um pincel e algumas tintas. O senhor fica a olhar para aquilo, sem saber o que pintar. 

- Arrisque! Não tenha medo, nem pense muito. Olhe para a cor que lhe chamar mais a atenção, ou misture algumas... 

        O senhor sorri. Molha o pincel um bocadinho em cada cor e salpica um cantinho da parede. 

- Que bonito! Deu-me uma ideia... 

          O pintor vai ter com ele, molha o pincel, com as mesmas cores, e faz uns traços soltos. 

- Áh! Parece o arco-íris. 

- Isso. Vamos dizendo palavras, e vemos se surge alguma coisa. 

     Os dois disparam palavras, as mais bonitas que conhecem, que transmitem boas mensagens, e vão desenhando sobre essas palavras, com cores, formas, pintas. 

    À medida que outros habitantes vão passando por lá, apreciam a parede, e o pintor convida-os a participar, dizendo as palavras mais bonitas que conhecem, e a desenhar alguma coisa que gostassem, onde quisessem ao longo da parede. 

      Este desafio é do agrado de todos, participam com entusiasmo, vontade e alegria. Uns fazem desenhos maravilhosamente perfeitos, lindos, outros coisas mais simples de que gostam. 

       Entre salpicos, pintas, riscos, vão nascendo: nuvens, flores, ondas, linhas, pássaros, casas, árvores, casais, crianças, peixes, fontes, cascatas, montanhas, avós, sol, chuva, e outros animais. 

        O pintor completa com a sua perfeição e com novas imagens que lhe surgem ao ver o que está lá. 

        Num instante, a parede fica completa. Uma verdadeira obra de arte, cheia de cor e vida, luz, amor. 

- Como está maravilhosa esta parede! Que orgulho! - suspira o pintor com um grande sorriso 

           Decidem fazer uma festa para inaugurar e apreciar a parede. Todos concordam, reúnem-se com petiscos, o pintor faz um discurso de agradecimento a todos os habitantes, dá os parabéns a todos, chovem fotografias para a parede, palmas, atá vai para o jornal das outras terras, que invadem a aldeia para ver ao vivo e de perto. A aldeia ganhou uma nova vida, e a parede ficou conhecida como o mosaico da aldeia. 

                                                   FIM 

                                             Lara Rocha 

                                                                                                                                 29/Janeiro/2021 

                    

                                                        

O elefante, as borboletas, a savana e a cidade

          

~
foto de Lara Rocha 

        Era uma vez um elefante enorme, muito pesado, de andar vagaroso que vivia numa savana, mas um dia quis experimentar passear pela cidade. Saiu da savana sem pressa, a apreciar a paisagem, e viu uma borboleta tão bonita a esvoaçar rapidamente à frente dos seus olhos. 

        Ele seguiu-a atentamente com os seus olhos enormes, enquanto a borboleta estava cheia de medo do elefante, e voava aos solavancos, como se estivesse a tremer. Pousou muito próximo dos olhos do elefante, e viu o seu reflexo. O elefante parece que ficou congelado, não se mexeu e ficou a ver o que é que a borboleta ia fazer. 

- Áh...! Já percebi. Olá elefante! - diz a simpática borboleta 

- Olá! - diz o elefante

- O que fazes por aqui? 

- Vou visitar a cidade! 

- Mas tu és gigante, toda a gente da cidade vai assustar-se contigo. 

- Óh, a sério...? O que estavas a ver em mim? 

- É que...eu também tinha muito medo de elefantes, mas quando olhei para os teus olhos, vi que não és mau, como eu pensava. 

- Achas que não? 

- Não. Só és... gigante, mas eu sou pequena, e daí...? Podemos ser amigos na mesma, certo? 

- Áhhhh....ahhh... acho que sim! 

- Mas vejo que estás triste, o que se passa? 

- Óh...deixa lá, não te preocupes comigo. 

- Está bem, não queres partilhar comigo, não faz mal. Anda, vamos passear, queres vir? 

- Sim, vamos. 

            Pelo caminho, os dois conversam, até à cidade. Quando chegam à cidade, o elefante torna-se o centro das atenções de toda a gente, gritam, fogem, fotografam, tentam prendê-lo, ele fica tão nervoso que corre desorientado. 

            A borboleta transforma-o num elefante muito leve, tão leve como se fosse um balão, e voa com a borboleta para se livrar da perseguição das pessoas da cidade. 

- Áaaahhhhh... estou a voar! Não acredito...Mas como é possível? Se sou tão grande, tão pesado...- suspira o elefante 

- Eu soprei-te uma magia, que te pôs muito leve, tão leve como um balão, para poderes sair dali de baixo. Viste como eles são...? Aproveita agora para ver a cidade em segurança. 

- Eles são...muito... estranhos. 

- São, mas já estás a salvo. Agora, olha para ali que bonito..

A borboleta mostra a cidade toda ao elefante, do ar, que fica encantado, enquanto conversa com a sua nova amiga.

Depois de ver toda a cidade, o elefante vê na sua savana, uma enorme correria, gritos, guinchos, saltos.

Todos os animais parecem muito agitados. Muito assustado, pediu à borboleta que o pusesse outra vez como elefante,

e que o deixasse no solo. A borboleta assim fez, e ele aterra no solo. Ao ver todos agitados pergunta:

- O que se passa?

- Áh! Estás aqui!? - diz outro elefante aliviado

- Que susto que nos pregaste... - acrescenta a sua mãe

- Onde estavas? - ralha o pai

- Ficamos muito preocupados contigo, andamos à tua procura. - acrescenta uma tia elefante

- Óh, desculpem. É que fui passear pela cidade! - explica o elefante

- Pela cidade...? Seu irresponsável. - ralha um macaco aos saltinhos, nervoso

- Filho, mas que teimoso. Sempre te dissemos que o nosso lugar não é na cidade, é aqui, na savana.

- A cidade é um perigo para nós.

- Eu sei, desculpem, Pensei que não era assim tão perigosa!

            Os seus pais e outros animais ralham com o elefante, ele soluça, e fica triste. Olhou para cima, e em volta, à procura da sua amiga borboleta. Ela estava a olhar para ele, pousada numa flor bem à frente da sua pata. Ele não a viu. Quando todos os animais voltaram aos seus lugares, e o elefante deitou-se à sombra, olhou para a flor onde estava a borboleta. 

- Áh, estás aqui. - abre um grande sorriso 

- Sim, estou. 

- Pensei que não ia voltar a ver-te. Obrigada, por tudo de há bocado! Como és bonita... que pena não seres um elefante! 

- Áh! Pena porquê? Cada um é como é. 

- Se fosses como eu, poderia casar contigo, ter uma segunda família contigo. 

- Talvez...(ri) se eu fosse um elefante fêmea nem reparasses em mim. 

- Claro que ia reparar...és tão bonita. 

- Sou bonita como borboleta, mas há tantos iguais a ti, e iguais a mim...que...seria igual a ti. 

- Pois...e agora o que vou fazer? 

- Ora... tu ficas aqui, com os teus, e eu vou para os meus. 

- Mas já vais deixar-me? 

- Não...só vou para a minha casa. Mas volto, se quiseres. 

- Claro que quero. Da próxima vez que vieres, vou mostrar-te as coisas bonitas que há aqui. Tu és leve, podes ir a qualquer sítio. 

- Não gostas de ser como és? 

- Não. E sinto-me muito sozinho. Sou um bocado envergonhado, acho que é por isso que não gostam de mim. Eu tento falar com os da minha espécie, mas parece que não me ligam nenhuma. Fico triste, e só me apetece desaparecer. 

- Então foi por causa disso que foste para a cidade? 

- Queria conhecer a cidade, mas sim, também foi para ver se davam pela minha ausência. 

- Óh! Entendo, mas não devias ter feito isso! 

- Achas que fiz mal? 

- Acho! Principalmente porque deixaste os teus pais e todos os teus amigos, muito preocupados. Tenta abrir-te mais um bocadinho, aprende a gostar deles. Talvez eles gostem de ti, mas como és envergonhado, não te obrigam a falar. Se calhar achas que por não gostares de ti, eles também não gostam, mas não é isso. Os teus pais e familiares fizeram-te com amor, tu és parte deles. Eu sou borboleta, mas podia ser outro animal qualquer. É melhor gostares de ti assim como és, porque se não, vais ficar triste. Eu gosto de ti, como elefante, vi nos teus olhos que posso confiar em ti, e que és generoso, posso ser tua amiga.

- Como viste isso? 

- Vi.  Eu tenho amigos de muitas espécies, e diferentes de mim, por isso, eu e tu podemos ser amigos, é muito divertido, e podemos brincar, aprender um com o outro, sorrir, e quando estiveres triste, eu trago outros amigos para brincarmos todos. Agora, tenho de voltar para a minha casa. Em breve voltamos a ver-nos, está bem? 

- Está bem! Obrigada. 

- Até já. 

            A borboleta pousa na bochecha do elefante e dá uns sonoros e repenicados beijos no elefante. O elefante ri, com vontade, e fica tão feliz que até salta, dança sem ter música, corre até ao lago, refresca-se, e convive alegremente com os outros, contando a sua aventura pela cidade com a borboleta. 

Todos ficaram muito surpresos com aquela mudança no comportamento do elefante, mas ao mesmo tempo, muito felizes. Foi uma tarde muito divertida, passada com os amigos. A borboleta ri às gargalhadas, e voa para casa. 

No dia seguinte, foi à savana com mais amigas borboletas, e o elefante sentiu-se tão feliz que aprendeu a gostar dele como era, grande, pesado. Mostra os lugares e recantos mais bonitos às borboletas que gostam tanto e prometeram voltar. 

O elefante percebeu que não era pelo seu tamanho e por ser de uma espécie diferente, que não tinha amigos e que na realidade os outros até gostavam da sua companhia. Viu como os da sua espécie adoravam ser como eram, e os seus amiguinhos sentiam orgulho na espécie, neles próprios. Nunca mais se separou das borboletas. 

                                                                            FIM 

                                                                        Lara Rocha 

                                                                         29/Janeiro/2021 

domingo, 17 de janeiro de 2021

A lenda do casal de dançarinos

          
 
 



















               
             Era uma vez uma jovem menina que vivia com a sua família, numa pequena vila, com poucos habitantes, onde todos se conheciam, e onde às vezes aconteciam coisas misteriosas. A vila estava repleta de lendas. Uma delas tinha a ver com um casal de dançarinos, que nem todos conseguiam ver, e traziam uma mensagem de amor. 
          Quem visse esse casal de dançarinos, poderia ter a certeza que seria amado de verdade, não aquele amor sexual, que também fazia parte, mas mais do que isso, um sinal de amor puro, amizade, companheirismo, compreensão, simpatia, apoio. Só apareciam quando estivessem preparados e preparadas para saber o que ia acontecer com os seus corações. 
          Com os seus pais, os seus Avós e tios, a lenda estava certa. Uns casaram, outros ficaram solteiros, outros tiveram desilusões e depois foram correspondidos, mas todos conseguiram ver o casal e percebiam a sua mensagem. 
          Mas o casal de dançarinos nem sempre trazia boas novidades. Se este se separasse, ou se transformasse em pedra, saberiam que encontrariam um amor não correspondido, se o casal fosse de gelo, era um aviso de ilusão, tanto para homens como mulheres. E outros, os que não viam, segundo a lenda, ficariam solteiros. 
          Ninguém sabia a origem desse lenda, uns achavam que era verdade, outros não acreditavam. 
A jovem conhecia a lenda, e como estavam na adolescência, ela e as amigas quando passeavam pela vila estavam sempre atentas para ver se encontravam o casal. Quando estavam apaixonadas, lá iam elas procurar. 
          Algumas das suas amigas depois de tanto entusiasmo, desatavam num pranto, quando viam o casal de pedra, e o casal de gelo, consolavam-se umas às outras, e faziam por esquecer essa paixoneta. Outras não viam o casal, e estavam entretidas com outras coisas, porque eram mais tímidas. 
          Esta jovem, era das que tinha medo de encontrar o casal. Ainda não tinha sido correspondida, e já conhecia três amores não correspondidos, e uma ilusão. No seu caso, aconteceu mesmo, e no caso das amigas também. 
          Num dos dias, viu o casal de dançarinos imóvel e não sabia o que era aquilo. Viu várias vezes o casal imóvel, enquanto as amigas festejavam porque tinham visto o casal a dançar, e souberam que iam ser correspondidas. 
          Ela não disse às amigas que tinha visto o casal imóvel, e perguntou à sua avó. A avó disse-lhe que se o casal estava imóvel, é porque ela ainda não estava preparada para amar, mas haveria algum rapaz interessado nela. Só iria mostrar-se, e ela só saberia quem era, quando estivesse preparada para esse amor. 
          A jovem sorriu, e perguntou o que tinha de fazer. A Avó respondeu que tinha de curar as feridas do coração partido, e dançar, livre, como o casal. Ela veria o casal quando deixasse de ter medo de amar, logo, quando não tivesse medo de ver o casal. 
         Ainda disse à sua neta que não se esquecem os amores, porque existe a memória, e fizeram parte da nossa vida, de nós, mudaram-nos, ensinaram-nos, fizeram-nos sentir, mas podem ficar apenas aí! Nas recordações de momentos felizes, ternurentos, românticos, eróticos, ciumentos, e a dor do fim desse amor, o ódio, a raiva, a vontade de vingança, ou...fogo de vista, alguma coisa parecida com amor. 
         Pensou que já estava curada, mas se ainda não tinha aparecido, era porque ainda não estava. Então, deixou sair a dor das desilusões, através da música, da poesia, da dança, do desenho, fazendo obras fantásticas, chorando algumas vezes, e sorrindo pelas boas lembranças. 
         Demorou muito tempo a libertar-se, a esquecer cada um dos amores, a quem ela se tinha entregado, mas quando viu o casal a dançar, finalmente, soube nesse momento que estava pronta para amar. Não fazia ideia quem seria o seu pretendente, nem como iria aparecer, mas a certeza que ia acontecer, fê-la abrir um grande sorriso, enquanto se deliciava com a dança do casal. 
         Uns dias depois, naquele mesmo sítio, estava um rapaz, desconhecido para a jovem, bonito, a apreciar o casal a dançar, os dois ficaram lado a lado, e trocaram olhares. Os olhos um do outro, pararam, e um luminoso sorriso saiu dos lábios de ambos. 
- Estás a ver o casal a dançar? - pergunta ele 
- Sim! E tu? - pergunta ela 
- Também! 
- Como são lindos, e que bem que dançam! - diz ela 
         Os dois ficam em silêncio, a ver o casal a dançar. Olham-se fixamente. Ela sentiu algo que nunca tinha sentido... e ele também. Os dois souberam naquele momento, em silêncio, que estavam ali um para o outro, que a lenda estava a acontecer! 
         Sorriem, e conversam um com o outro, longas horas, com muita gargalhada, enquanto caminhavam pela vila. Falaram dos amores não correspondidos, das desilusões, e os dois acreditavam que iria aparecer alguém, porque tinham visto o casal a dançar. 
         Desde esse dia, falavam-se todos os dias, saiam juntos, e ele pediu-a em namoro. Continuaram a ver o casal a dançar, por isso estavam seguros do amor que os unia...para sempre! Aquele amor mais espiritual, amor de amizade, companheirismo, compreensão, simpatia, apoio, e liberdade. Tinham os seus amigos, e amigas, saiam na mesma com eles, saiam só um com o outro, conviviam, brincavam, namoravam, conversavam e ás vezes zangavam-se, mas logo estava tudo bem. 
         Esta era a lenda do casal de dançarinos, mas na vida real, existem os dançarinos em diferentes formatos, de acordo com  o que cada um de nós sente, no acreditar, ou não, no conseguir voltar a amar ou não, conforme as ilusões e desilusões, que nos vão tornando pessoas diferentes.  E o amor tem muitas formas, não tem raça, nem cor, nem género. 
        E vocês, que casal de dançarinos já viram? 
        Qual gostavam de ver? 

                                                                    Fim 
                                                                Lara Rocha 
                                                                16/Janeiro/2021

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O (des) orgulho dos meus pais (monólogo para adolescentes e adultos)

desenhado por Lara Rocha a pastel giz 

Pertenço a uma família de médicos, são pessoas maravilhosas, os meus pais, os meus avós, e sempre fizeram tudo para cuidar de nós, dão-nos tudo o que precisamos, a mim e aos meus irmãos.

Sendo filho de médicos, toda a família dizia, achavam que tínhamos de ser médicos, como eles. Pintavam-nos a profissão de cor de rosa, adorávamos ouvir falar em salvar vidas, em cuidar, em ser corajosos, e ganhar um bom dinheiro, ter um título.

Só que...à medida que vamos crescendo, e tomando consciência da realidade do que somos, do que nos rodeia, e do que queremos ser...as coisas ficam diferentes. Durante muitos anos, até à faculdade, eu queria seguir medicina, achava que sim, e que iria ser o orgulho dos meus pai.

Estudava que me matava, até ao limite, até não poder mais, os meus pais eram muito exigentes, porque sabiam como era preciso grandes notas para esse curso, tinha que conseguir, desse por onde desse.

Não tinha vida de adolescente, praticamente! Não saía, não ia a festas, porque tinha que estudar. Explicações, mais apoios, mais estudo, mais isto, mais aquilo, fui para a faculdade, entrei em medicina.

Fiquei tão feliz, e os meus pais ainda mais. Aqui, sim, aproveitei ao máximo farras, namoros, saídas, jantaradas, copos, e claro, estudo. Estava a viver a adolescência com os meus colegas.

Comecei a perceber que...sentia-me estranho! Aquilo não era bem o que eu imaginava, manifestei várias reações estranhas no corpo, fiquei doente várias vezes, sem razão aparente, perdi a vontade de estudar, senti muitas vezes nojo do que via.

Os meus pais gostavam de conversar sobre o que estava a aprender, diziam que era normal, eu sentir nojo de algumas coisas,..mas comecei a não conseguir comer, nem dormir.

Na minha cabeça, era como se vivessem dois pequenos seres irritantes… um a dizer que eu tinha que continuar, não podia desistir, porque ia magoar os meus pais, ia ser a vergonha deles, ia desiludi-los… outro... dizia...pensa bem, talvez não seja isto que tu queres, os teus pais gostam, mas tu não gostas...desiste e pensa noutras alternativas. Isto está a dar cabo de ti.

A qual é que eu ia dar resposta? Os dois tinham razão! Como ia resolver? Não encontrei outra saída a não ser...liquidar-me! Apagar, e recomeçar se conseguisse. Num impulso, fui para a praia, e não me recordo de absolutamente mais nada!

Nem do antes, nem do momento seguinte, só tenho a sensação de que estava num grande sofrimento, completamente perdido, desorientado, desanimado, parecia que um ser estranho estava a comandar-me, e eu só obedecia, sem questionar se era o correto ou não.

Não conseguia pensar nem decidir nada, só ouvia essas duas vozes, e de repente… não sei o que me fizeram, trouxeram-me para aqui, nem sei há quanto tempo. Os meus pais quiseram saber porque tinha feito aquilo.

Muito envergonhado e com medo da reação deles, contei-lhes que estava desiludido com o curso, era a pouca coisa que me lembrava...que achava que não era o que eu imaginava, nem o que eu queria realmente.

Pedi-lhes desculpa. Percebi na expressão deles que ficaram tristes, mas disseram-me que compreendiam e se não gostava do que estava a estudar, podia mudar de curso, para alguma coisa que me preenchesse realmente!

Prometeram ajudar-me, e apoiar-me na escolha do curso, no financiamento. Perguntei-lhes se estavam desiludidos ou magoados comigo, responderam que não, mas acho que sim.

A minha mãe até acrescentou que os filhos não são a continuidade dos pais, não têm de ser iguais a eles, cada um tem os seus gostos, e está tudo bem! Foi um grande alívio para mim, agora estou a recuperar e a descobrir a minha verdadeira personalidade, os meus gostos.

Não temos que dar cabo da nossa vida para sabermos o que gostamos, o que queremos, e quem somos. Na realidade, eu nunca tinha feito isso antes, estava influenciado pelos meus pais, e é muito importante que conheçamos muito bem aquilo que somos capazes, o que faz sentido fazermos, o que nos faz feliz, o que gostamos, para o que temos jeito… tive muito medo, mais foi o melhor que fiz, porque não ia correr bem!

Pode demorar um pouco, mas é melhor sair do que não gostamos, de onde sentimos que não é o nosso lugar, do que estar num curso e ser eternamente frustrados, ou maus profissionais.

Há várias escolhas, para o próximo ano, e talvez agora tudo comece a fazer sentido!

Lara Rocha

29/Dezembro/2020


o sentido do amor (monólogo para adolescentes e adultos)

                  desenhada por Lara Rocha


Olá, sou a J., sobrevivente de uma tentativa de suicídio, uma não, várias! Mas esta última é a que me lembro mais porque é a mais recente, e...quase me fazia não estar aqui para contar.

Tenho um bebé, que amo com todo o meu ser, aliás, ele passou a ser a minha razão de viver, e o que dá sentido à minha existência. Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo, odeei e recusei, não desejei esse bebé, mais precisamente, desde que o pai dele me deixou.

Trocou-me por outro homem, que na verdade eu também conhecia mas nunca imaginei que tivessem tanta intimidade. Senti nojo dele, a pensar que ele me tinha dado um filho, e andado já com...outro!

A minha felicidade de ter um filho, o meu desejo e fantasias, ter um filho fazia parte do meu sentido de vida, de família, de mulher, tudo se apagou quando me revelou a sua homossexualidade.

Eu não tinha nada contra os homossexuais, mas nunca imaginei que lidasse com um tão de perto. Depois do nojo e da revolta, da vontade de tirar o bebé que ele me tinha dado, para ficar com um homem...conversamos os três, de forma civilizada, e percebi que ele queria esse filho, mas não fazia sentido para ele, estar comigo, sem me amar.

A minha feminilidade deixou de existir, senti-me...usada, vazia, como é que eu ia ter um filho de um homossexual? Como é que eu ia contar ao nosso filho que nasceu do amor falso, entre um homem e uma mulher, que eram mais amigos do que marido e mulher? Como é que ter uma relação de pai e mãe, com o nosso filho, se ele estaria com outro homem?

Nada parecia real, tudo parecia um pesadelo, um filme de terror...mas era bem real, existia, e estava diante dos meus olhos, do meu corpo, que foi usado para fabricar uma criança, que depois…não ia ter...um pai a viver com a mãe!

Surreal. Que vergonha seria para mim, e para o nosso filho, dizer aos outros que era filho de um homem, e tinha uma relação com outro homem. Foi um turbilhão de emoções, um sofrimento, uma angústia que nunca tinha vivido antes.

Porquê a mim? Que sonhava com uma família como a minha… um pai, uma mãe e o rebento! Não, uma mãe, um filho e um pai homossexual que estava com outro homem. Nem eu parecia real, acho que deixei de existir, de ser alguém quando ele me disse que escolheu esse caminho.

Queria desaparecer, e reaparecer numa forma normal. Então...achei que só conseguiria se desse cabo de mim. Não queria aquela realidade, tentei mudar. E mudei, nem me lembro como o fiz, mas sei que acordei no hospital, nos cuidados intensivos, cheia de máquinas, e buzininhas, luzinhas, tubos, batas brancas e verdes, máscaras, gente estranha, que nem sabia quem era, ou se era mesmo gente.

Nem me lembrei que estava grávida. Não era eu, era outra qualquer, que nem eu própria conhecia. Vi o pai do meu filho com o companheiro, nem os reconheci, estavam lavados em lágrimas.

Foram eles que me trouxeram para aqui, onde ainda estou a recuperar, pelos vistos, há várias semanas, e no início não dava sinais de recuperação. Tiveram de me tirar o bebé que foi para a incubadora, fazer tratamentos, e já tinha bastante tempo de gestação, mas com o que fiz…ficou com sequelas.

Felizmente, estão a fazer de tudo, e ele tem melhorado. Sobrevivemos os dois, e quando peguei nele ao colo, pouco depois de recuperar...não sei o que senti! Mas parecia que não conhecia aquele ser, nem eu, nem ele.

Não sentia nada! Só aquele corpinho minúsculo, e magrinho, numa paz, encostado a mim. Olhei para o pais dele e para o companheiro, que choravam e sorriam do lado de fora.

Fiquei com raiva deles, pareciam dois idiotas, quando saí, olhamos os três para a incubadora...uns para os outros, conseguimos conversar, e chegamos a um acordo. Ele, o pai, assumiria o seu papel, o companheiro iria contribuir com tudo o que pudesse, seria o padrinho, a quem a criança também chamaria de tio, e...seríamos uma família.

Que bonito! Que coisa tão romântica e fácil. Não sei o que senti na hora...mas...quando olhei para o bebé…uma nova coisa estava a nascer em mim. Eu olhava-me ao espelho, não me reconhecia, nem me identificava.

Tinha medo de mim mesma, do meu reflexo! Achava que era outra a perseguir-me. Tive de me reconstruir, reinventar, aquela criatura precisava de mãe e de pai, e tinha! Recebi todo o apoio do pai do meu filho, do companheiro, decidi e consegui respeitar, aceitar a escolha dele, e a ajuda do pessoal de saúde.

Tem sido um processo muito difícil e longo, mas se sobrevivi...é porque tinha de ser… é porque… a criança queria ter-me como…mãe...não sei se sou! Hoje sinto raiva, medo, desconfiança e insegurança, mas já tenho alguma consciência do que sou, de quem sou!

Parece que perdi parte, ou a totalidade de quem era, e de quem sou agora, ainda desconheço de mim. Sinto raiva, por não ter aceitado logo a escolha do pai do meu filho, não compreendi que ele não era obrigado a ficar comigo, só porque aconteceu de engravidar!

Talvez eu até o tenho ajudado a descobrir e a assumir a sua escolha, a sua verdadeira identidade sexual. Desde que ele cumpra as suas funções de pai. Esse acontecimento destruiu toda a noção de família que me transmitiram.

Eu achava que família, era pai, mãe, juntos na mesma casa, que se amam, e os filhos! Mas fui-me apercebendo que muitos amigos, não viviam com os dois pais na mesma casa, o amor entre os pais acabava, mas continuavam a encontrar-se com os filhos.

Para mim, fazia-me confusão, mas hoje é cada vez mais comum, e não há problema, a não ser quando não assumem o divórcio, ou quando se vingam nos filhos da frustração.

Pelo menos, o pai do meu filho assumiu. Eu acreditava que por ser homossexual, o pai do meu filho não poderia, nem saberia amar o filho! Estava totalmente errada. Por causa daquele preconceito, sem sentido...porque...na verdade, ele e o companheiro provam-me todos os dias que me amam, à maneira deles, talvez...um amor mais puro, mais sincero.

Amam o meu...o nosso filho! Como um pai verdadeiro. Lá porque é homossexual, não deixa de ser pai. Temos medo, eu e eles, por causa do que vão dizer, quando a criança crescer...mas já combinamos que seremos uma família, o pai estará presente, o tio e padrinho também, e depois veremos!

Agora é aproveitar, lutar, ajudá-lo, respeitamo-nos os 3, temos uma relação maravilhosa, e o nosso filho, é amado! Agora sim, a minha vida faz sentido! Faz sentido eu continuar a existir, faz sentido o amor, faz sentido a união.

Faz sentido o pai não ter que ficar obrigatoriamente com a mãe, se para ele não faz sentido, nem é feliz, não é o que quer, só porque existe um filho! O amor é o que faz sentido, seja de que forma for!

E como é lindo, o resultado do nosso amor! Como é lindo este amor.

                                                        Lara Rocha

                                                    29/Dezembro/2020