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sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

o sentido do amor (monólogo para adolescentes e adultos)

                  desenhada por Lara Rocha


Olá, sou a J., sobrevivente de uma tentativa de suicídio, uma não, várias! Mas esta última é a que me lembro mais porque é a mais recente, e...quase me fazia não estar aqui para contar.

Tenho um bebé, que amo com todo o meu ser, aliás, ele passou a ser a minha razão de viver, e o que dá sentido à minha existência. Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo, odeei e recusei, não desejei esse bebé, mais precisamente, desde que o pai dele me deixou.

Trocou-me por outro homem, que na verdade eu também conhecia mas nunca imaginei que tivessem tanta intimidade. Senti nojo dele, a pensar que ele me tinha dado um filho, e andado já com...outro!

A minha felicidade de ter um filho, o meu desejo e fantasias, ter um filho fazia parte do meu sentido de vida, de família, de mulher, tudo se apagou quando me revelou a sua homossexualidade.

Eu não tinha nada contra os homossexuais, mas nunca imaginei que lidasse com um tão de perto. Depois do nojo e da revolta, da vontade de tirar o bebé que ele me tinha dado, para ficar com um homem...conversamos os três, de forma civilizada, e percebi que ele queria esse filho, mas não fazia sentido para ele, estar comigo, sem me amar.

A minha feminilidade deixou de existir, senti-me...usada, vazia, como é que eu ia ter um filho de um homossexual? Como é que eu ia contar ao nosso filho que nasceu do amor falso, entre um homem e uma mulher, que eram mais amigos do que marido e mulher? Como é que ter uma relação de pai e mãe, com o nosso filho, se ele estaria com outro homem?

Nada parecia real, tudo parecia um pesadelo, um filme de terror...mas era bem real, existia, e estava diante dos meus olhos, do meu corpo, que foi usado para fabricar uma criança, que depois…não ia ter...um pai a viver com a mãe!

Surreal. Que vergonha seria para mim, e para o nosso filho, dizer aos outros que era filho de um homem, e tinha uma relação com outro homem. Foi um turbilhão de emoções, um sofrimento, uma angústia que nunca tinha vivido antes.

Porquê a mim? Que sonhava com uma família como a minha… um pai, uma mãe e o rebento! Não, uma mãe, um filho e um pai homossexual que estava com outro homem. Nem eu parecia real, acho que deixei de existir, de ser alguém quando ele me disse que escolheu esse caminho.

Queria desaparecer, e reaparecer numa forma normal. Então...achei que só conseguiria se desse cabo de mim. Não queria aquela realidade, tentei mudar. E mudei, nem me lembro como o fiz, mas sei que acordei no hospital, nos cuidados intensivos, cheia de máquinas, e buzininhas, luzinhas, tubos, batas brancas e verdes, máscaras, gente estranha, que nem sabia quem era, ou se era mesmo gente.

Nem me lembrei que estava grávida. Não era eu, era outra qualquer, que nem eu própria conhecia. Vi o pai do meu filho com o companheiro, nem os reconheci, estavam lavados em lágrimas.

Foram eles que me trouxeram para aqui, onde ainda estou a recuperar, pelos vistos, há várias semanas, e no início não dava sinais de recuperação. Tiveram de me tirar o bebé que foi para a incubadora, fazer tratamentos, e já tinha bastante tempo de gestação, mas com o que fiz…ficou com sequelas.

Felizmente, estão a fazer de tudo, e ele tem melhorado. Sobrevivemos os dois, e quando peguei nele ao colo, pouco depois de recuperar...não sei o que senti! Mas parecia que não conhecia aquele ser, nem eu, nem ele.

Não sentia nada! Só aquele corpinho minúsculo, e magrinho, numa paz, encostado a mim. Olhei para o pais dele e para o companheiro, que choravam e sorriam do lado de fora.

Fiquei com raiva deles, pareciam dois idiotas, quando saí, olhamos os três para a incubadora...uns para os outros, conseguimos conversar, e chegamos a um acordo. Ele, o pai, assumiria o seu papel, o companheiro iria contribuir com tudo o que pudesse, seria o padrinho, a quem a criança também chamaria de tio, e...seríamos uma família.

Que bonito! Que coisa tão romântica e fácil. Não sei o que senti na hora...mas...quando olhei para o bebé…uma nova coisa estava a nascer em mim. Eu olhava-me ao espelho, não me reconhecia, nem me identificava.

Tinha medo de mim mesma, do meu reflexo! Achava que era outra a perseguir-me. Tive de me reconstruir, reinventar, aquela criatura precisava de mãe e de pai, e tinha! Recebi todo o apoio do pai do meu filho, do companheiro, decidi e consegui respeitar, aceitar a escolha dele, e a ajuda do pessoal de saúde.

Tem sido um processo muito difícil e longo, mas se sobrevivi...é porque tinha de ser… é porque… a criança queria ter-me como…mãe...não sei se sou! Hoje sinto raiva, medo, desconfiança e insegurança, mas já tenho alguma consciência do que sou, de quem sou!

Parece que perdi parte, ou a totalidade de quem era, e de quem sou agora, ainda desconheço de mim. Sinto raiva, por não ter aceitado logo a escolha do pai do meu filho, não compreendi que ele não era obrigado a ficar comigo, só porque aconteceu de engravidar!

Talvez eu até o tenho ajudado a descobrir e a assumir a sua escolha, a sua verdadeira identidade sexual. Desde que ele cumpra as suas funções de pai. Esse acontecimento destruiu toda a noção de família que me transmitiram.

Eu achava que família, era pai, mãe, juntos na mesma casa, que se amam, e os filhos! Mas fui-me apercebendo que muitos amigos, não viviam com os dois pais na mesma casa, o amor entre os pais acabava, mas continuavam a encontrar-se com os filhos.

Para mim, fazia-me confusão, mas hoje é cada vez mais comum, e não há problema, a não ser quando não assumem o divórcio, ou quando se vingam nos filhos da frustração.

Pelo menos, o pai do meu filho assumiu. Eu acreditava que por ser homossexual, o pai do meu filho não poderia, nem saberia amar o filho! Estava totalmente errada. Por causa daquele preconceito, sem sentido...porque...na verdade, ele e o companheiro provam-me todos os dias que me amam, à maneira deles, talvez...um amor mais puro, mais sincero.

Amam o meu...o nosso filho! Como um pai verdadeiro. Lá porque é homossexual, não deixa de ser pai. Temos medo, eu e eles, por causa do que vão dizer, quando a criança crescer...mas já combinamos que seremos uma família, o pai estará presente, o tio e padrinho também, e depois veremos!

Agora é aproveitar, lutar, ajudá-lo, respeitamo-nos os 3, temos uma relação maravilhosa, e o nosso filho, é amado! Agora sim, a minha vida faz sentido! Faz sentido eu continuar a existir, faz sentido o amor, faz sentido a união.

Faz sentido o pai não ter que ficar obrigatoriamente com a mãe, se para ele não faz sentido, nem é feliz, não é o que quer, só porque existe um filho! O amor é o que faz sentido, seja de que forma for!

E como é lindo, o resultado do nosso amor! Como é lindo este amor.

                                                        Lara Rocha

                                                    29/Dezembro/2020


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