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quinta-feira, 18 de junho de 2020

Na linha de comboio (psicólogos, estudantes de psicologia; e população em geral)

Na linha do comboio 

foto de Lara Rocha 

          Moro perto da estação de comboios, e há mais ou menos seis meses, fui passear o meu cão. Até aqui tudo normal, eu e o meu cão adoramos passear. Ele é geralmente calmo, exceto quando pressente alguma coisa, quando tem medo, ou em situações que o stressam. 
         Acho que nessa tarde, apanhei o maior susto da vida, que tenho memória. Ao chegar perto da estação o meu cão mudou o seu comportamento, ao contrário do que costuma acontecer. Ficou muito agitado, a ladrar virado para a estação, uma parte em que vê a linha de comboio de fora, e a rodar sobre si próprio. 
        De repente, sai disparado da minha beira e mete no túnel de acesso à estação, a esse espaço visível a ladrar completamente possuído. Fui atrás deles, e qual não é o meu espanto, ao ver uma pessoa sentada na encruzilhada das linhas, vestido de preto, parecia um rapaz. 
       O meu cão saltou quase em voo para a linha de comboio, e empurrou o rapaz para o chão, espetou-lhe os dentes na camisola e arrastou-o para um lugar seguro onde a linha estava em manutenção. 
      O rapaz parecia anestesiado, porque deixou que o meu cão o arrastasse, que continuava a ladrar. Ouvi a voz da estação a anunciar a linha em manutenção onde estava o meu cão, a saída de um comboio e a entrada de outro. 
      Fiquei ansiosa, meti pelo túnel de acesso á outra linha e o meu cão ladrava para o rapaz, começou a lambê-lo, e o rapaz estava lavado em lágrimas, completamente entregue à tristeza. 
      Acariciei o meu cão, e o rapaz tinha uma respiração ofegante, inclinou-se num impulso para a linha de comboio outra vez, mas desta vez, eu consegui reagir, ainda não sei como. O meu cão agarrou-o pelas calças e eu disse-lhe: 
- Mas o que é que tu vais fazer? É muito perigoso! 
- Eu não quero estar aqui, não quero viver, não posso. Quero desfazer-me...para ver se nasço de novo, diferente. 
- O quê? Senta-te aqui, à minha beira, vamos conversar um pouco. Eu estou aqui, o meu cão também. Já percebi que não estás nada bem, mas não estás sozinho. 
      Passam os dois comboios, num grande barulho. 
- Ninguém quer que eu esteja aqui. Nem eu quero! O teu cão não tinha nada que me empurrar, nem trazer-me para aqui. Era agora que eu ia ter paz! 
- Ainda bem que o meu cão te empurrou! Ele sabe o que faz. A tua vida é preciosa. Sou psicóloga, se quiseres podes conversar comigo. 
O rapaz olhou para mim, com um olhar como nunca tinha visto, vazio, cheio de lágrimas. 
Sentou-se ao meu lado. 
- Tens uma cara tão bonita! 
- Achas? Também não me serve de nada ter uma cara bonita, ninguém quer saber. 
- Porque é que queres morrer e nascer diferente? 
- Porque sou homossexual. 
- Sou humilhado, rejeitado, gozado, a minha mãe juntou-se com um homem de quem não gosto, e expulsou-me. Estou a vier na casa de um primo, que vive sozinho, o meu pai nem me conhece. Eu não quero ser homossexual, não gosto, não posso. Se continuar a ser homossexual, vou ficar sozinho. Disse à minha mãe que sou homossexual, ela reagiu muito mal, insultou-me, bateu-me, mandou-me rezar. Sinto a falta dela, e de amigos. 
      Deixei que ele exteriorizasse tudo o que sentia. O meu cão parecia estar a perceber tudo, e sensibilizado com a história dele. Ouvi-o atentamente, e acho que ele também sentiu que estava a ouvi-lo. Depois de me contar vários episódios de agressão, humilhação por parte dos colegas, insultos, rejeições e abandonos por parte de amigos, disse-lhe: 
- Ninguém tem nada a ver com a tua escolha sexual. É a ti que diz respeito. Tens direito a ter a tua privacidade, tu é que escolhes quem queres amar, com quem queres ter prazer, ser feliz e partilhar a tua vida, os outros não têm direito de se pronunciar, só tem de respeitar a tua escolha. E com certeza vais encontrar muitos e muitas outras pessoas com a mesma escolha, que te vão aceitar como és. Eu tenho muitos amigos e amigas homossexuais! Respeito-os e eles a mim, temos uma amizade fraterna, muito especial, muito bonita, sincera, dedicada. Não tens de acabar com a tua vida, nem mudar a tua escolha e ser infeliz, só por causa dos outros, do que os outros acham que devias ou tinhas que ser. Era só o que faltava! E se gostares de mim, tenho a certeza que vais ganhar várias dezenas de amigos, e parceiros. Só tens de te sentir orgulhoso pela tua escolha, e vivê-la. Ele olhou-me, a soluçar. Limpa as lágrimas. 
- Fogo...nunca me tinham dito uma coisa dessas...! Posso pedir-te uma coisa? 
- Só se forem duas ou mais! - Disse-lhe eu.
Ele sorri timidamente. 
- Posso...dar-te um abraço? 
Abri-lhe um grande sorriso. 
- Claro que sim! Dois... 
Trocamos um longo abraço, ele desatou num choro, e eu quis passar vida para ele, através do abraço. Acho que consegui, porque abraçou-me com muita força, e chorou encostado a mim, eu sentia o coração dele a bater rapidamente, e acariciei-lhe as costas e a cabeça. O meu cão lambeu-o e deitou a sua cabeça nas pernas dele. Ele sorriu, fez festas ao meu cão. Abraçou-me novamente. 
- Não consigo largar-te! Desculpa. - diz ele 
Eu ri-me. 
- Eu não me queixei, pois não...? 
Rimo-nos. 
- Nem nos conhecemos, e eu já estou aqui cheio de coisas contigo... 
- Mas podemos conhecer-nos, e podes ter a certeza que tens em mim uma amiga para o resto da tua vida! Que grande asneira que tu ias fazer. 
        Ele sorri. 
- Acho que tens razão! J+a gosto de ti. És linda, és um anjo, não? 
- Não, sou uma pessoa como tu, boa e às vezes má. 
Rimo-nos. 
- Vens comigo, passear mais um pouco o meu cão, e conversamos mais? - convidei-o 
- Ok... se queres que te faça companhia. 
- Com certeza! 
- Devo-te a vida. Obrigada. 
      Abraça-me novamente. Dei-lhe um beijo na cara e ele retribui. Fez mais festas ao meu cão, e disse-lhe: 
- Obrigado, bicho. Foste o maior.  
     O meu cão ladra-lhe, e lambe-o. Rimos. 
- Este cão é demais... - diz ele 
- É. 
     Levantamo-nos, o meu cão ladrou e acompanhou-nos, sempre ao lado dele. Eu e ele fomos abraçados, e conversamos bastante, fora da estação, rimos, e percebemos que vivíamos muito perto um do outro. Trocamos contactos, e combinamos falar-nos nesse mesmo dia pelo facebook. No fim de jantar lá estava ele, conversamos quase três horas, e ele quis ver-me pela câmara. O sorriso dele já era outro. 
      Depois desse dia, sugeri-lhe que tivesse acompanhamento psicológico, e encaminhei-o para outro amigo, psicólogo, que trabalhava na área da sexualidade. Comecei a apresentar-lhe vários amigos homossexuais, com quem passou a conviver, a sair, a conversar, a divertir-se. 
       Sempre que eu e ele nos encontramos, trocamos aqueles abraços sinceros, fortes, fraternos, disse-me desde logo que eu era a família dele, e falamo-nos todos os dias, várias vezes por dia, pelas redes sociais, por telefone, e mensagens. O meu amigo psicólogo deu-lhe uma preciosa ajuda, a melhorar a sua auto-estima, e a viver bem com a sua escolha sexual. 
       Depois do susto, ganhei um amigo para o resto da vida, um irmão como ele às vezes diz, carinhoso, atencioso, dedicado. Ele agradece-me constantemente de o ter salvo, e de vez em quando oferece-me flores, chocolates, postais. Há respeito entre nós. 

                                                           FIM 
                                                           Lara Rocha 
                                                           18/06/2020 

                                   
 

2 comentários:

  1. Uauuu. Fiquei pregada ao ecrã.
    Carregou bem no caso, pai ausente, mãe xenófoba, padrasto indesejado, humilhação, rejeição, agressões por parte de pseudo amigos e colegas, sem dúvida uma saída do armário muito difícil para o seu novo amigo. Infelizmente nos dias de hoje ainda continua a existir muita discriminação para com a população LGBT e apesar da vasta informação ao dispor de um clique, o menino estava de todo perdido com a sua identidade.
    A Doutora Lara esteve muito bem no momento em que o tratou como ser humano e não como coisa, acção reforçada quando aceita o contacto físico através dos abraços e do beijo. Pela primeira vez (como ele verbalizou e bem) o menino sentiu-se uma criança/adolescente/jovem adulto/adulto com Voz.
    Como excelente profissional que é, e devido ao vínculo criado com o menino, direccionou-o para um colega seu de psicologia na especialidade mais adequada (sexualidade) e assim manteve a vossa amizade intacta. Com um bom acompanhamento e a integração num meio com que se identifica (que lhe era desconhecido até à data), o menino voltou a ter identidade.
    Obrigada pela partilha.

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  2. Muito obrigada! :) infelizmente é verdade. São fatores de risco e muito comuns
    ! Ainda há muita falta de respeito.

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