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sexta-feira, 25 de março de 2016

A rapariga e a voz (adolescentes e adultos)










Numa ala psiquiátrica, uma mulher recupera de uma depressão grave, e tenta reencontrar-se, redescobrir-se. Ainda sob o efeito da medicação, olha-se fixamente ao espelho da casa de banho. Olha-se fixamente.














RAPARIGA - Quem és tu…? (p.c) Sim, tu…essa que estás aí especada a olhar para mim.
VOZ – Sou tu.
RAPARIGA – O quê?
VOZ – Sim. Essa que está especada a olhar para ti, és tu mesma. Esta imagem e tu…somos a mesma pessoa.
RAPARIGA – Como?
VOZ – Claro. Estás a ver-te ao espelho.
RAPARIGA – E como é que te chamas, tu…que estás aí a olhar para mim…?
VOZ – Ai, como tu estás…! Chamo-me…chamas-te…Carla.
RAPARIGA – Carla?
VOZ – Sim. Chamamo-nos Carla.
RAPARIGA – Ai, tens o mesmo nome que eu?
VOZ – Sim. A imagem que vês no espelho, e tu…tem o mesmo nome.
RAPARIGA (sorri) – Que engraçado. (p.c) E também estás aqui?
VOZ – Sim, estou em todo o lado que tu estás.
RAPARIGA – Mau…isso já é perseguição.
VOZ – Não. Não percebes que estás a falar com o teu próprio reflexo?
RAPARIGA – O quê? Eu sou fantasma?
VOZ (ri) – Não. És de carne e osso.
RAPARIGA (passa a mão pela cara, e pelas mãos) - Áááhh…pois sou.
VOZ (ri) – Temos pele… temos cara… temos olhos… temos pernas… temos braços… temos…tudo! Somos seres humanos.
RAPARIGA – Temos?
VOZ – Sim…! Porquê? Achas que nos falta alguma coisa?
RAPARIGA – Sim, falta uma coisa.
VOZ – O quê? (p.c) Tens tudo no sítio. Não vês…? Tens os membros todos…cabeça…tronco…o que te falta?
RAPARIGA – Falta-me…tudo por dentro.
VOZ – Como assim?
RAPARIGA – Falta-me…não sei…além do coração…acho que me falta o resto…sinto-me tão vazia.
VOZ – Não digas disparates. Claro que não te falta nada, por dentro. Nem mesmo o coração…caso contrário, se isso te faltasse… não estarias sequer a falar.
RAPARIGA – Mas…então…porque estou tão oca?
VOZ – Porque estiveste doente.
RAPARIGA – E tu, também?
VOZ – Sim, claro.
RAPARIGA – O que é que eu tive?
VOZ – Tu, chegaste ao nível mais grave de depressão.
RAPARIGA – Depressão…?
VOZ – Sim. E das mais graves.
RAPARIGA – Mas…não me lembro de nada!
VOZ – Ainda bem.
RAPARIGA – Porquê?
VOZ – Não queiras lembrar. Foi muito mau.
RAPARIGA – Mas…conta-me…eu preciso de saber…tenho de me redescobrir…! (p.c) Não sei quem sou.
VOZ – Não te assustes…daqui a pouco vais lembrar-te.
RAPARIGA – Diz lá…porque é que eu fiquei doente?
VOZ – Queres mesmo saber?
RAPAIGA – Sim.
VOZ – Não, não te vai fazer bem.
RAPARIGA – Anda lá…diz-me.
VOZ – Não.
RAPARIGA – Onde é que eu estou?
VOZ – Estás numa casa de saúde.
RAPARIGA – Numa casa de saúde…?
VOZ – Sim.
RAPARIGA – E como é que eu vim aqui parar?
VOZ – Alguém te trouxe.
RAPARIGA – Quem?
VOZ – Os teus pais.
RAPARIGA – Os meus pais…? Mas eles também estão aqui?
VOZ – Não. Eles só vêm aqui visitar-te.
RAPARIGA – E porque é que eu vim cá parar e não me lembro?
VOZ – A tua tristeza era tão grande que não te deixava ver.
RAPARIGA – Tristeza?
VOZ – Sim. Ela bloqueou-te, e tu ficaste doente.
RAPARIGA – Mas quem é essa gaja?
VOZ – Não é gaja nenhuma…é a tristeza…um sentimento.
RAPARIGA – E porque é que eu a tive?
VOZ – Queres mesmo saber?
RAPARIGA – Sim.
VOZ – Porque…olha…porque foi muita coisa junta, e não conseguias exteriorizar…acumulaste…e ficaste doente.
RAPARIGA – E porque é que eu não me lembro de nada do que me deixou tão triste?
VOZ – Porque entretanto já melhoraste.
RAPARIGA – Como?
VOZ – Aqui, na casa de saúde.
RAPARIGA – E como é que eu melhorei?
VOZ – Aqui deram-te alguns medicamentos…dormiste muito tempo…pois precisavas de dormir…isso já não acontecia há muito tempo. E esses medicamentos deixaram-te melhor.
RAPARIGA – E porque é que eu não andava a dormir há muito tempo?
VOZ – Porque andavas muito triste, e não querias ajuda. A tristeza era tanta que não te deixava dormir.
RAPARIGA – Mas, conta-me de uma vez, o que me deixou tão triste…!
VOZ – Não. Isso faz-te mal.
RAPARIGA – Que chata. (Olha-se ao espelho outra vez fixamente).  
VOZ – Tu vais descobrir.
(A rapariga suspira chateada, olha-se fixamente).
RAPARIGA – Espera aí…acho que já sei o que me deixou tão triste…!
VOZ – Vês…? Mas não relembres, que isso faz-te muito mal.
RAPARIGA – E tu também sabes.
VOZ – Sei, mas acho que não é bom para ti falares disso.
RAPARIGA – Mas eu quero saber…e eu preciso de saber…para aprender.
VOZ – Agora não é o momento.
RAPARIGA – Teve a ver com um…homem certo?
VOZ – Certo. Mas não lembres isso.
RAPARIGA – E ele fez-me sofrer muito.
VOZ – Com certeza. Mas esquece isso…o que interessa é que agora estás a melhorar.
RAPARIGA – Porque é que eu não hei-de lembrar agora…? Se já estou melhor…?!
VOZ – Não te precipites. Esta melhoria não é verdadeira. Tu tens de ganhar força. (Olha-se fixamente, faz silêncio) Descansa. Não penses nisso agora, por favor.
RAPARIGA – Não posso descansar. Não quero…! (p.c) Eu não sei porque estou aqui, se não quero. 
VOZ – Neste momento não tens quereres…há pessoas à tua volta que te querem…que te amam…e foi por isso que te trouxeram para aqui.
RAPARIGA – Mas não me perguntaram se eu queria…!
VOZ – Se perguntassem, era claro que não querias. Mas tinhas de vir para aqui.
RAPARIGA – E o homem que eu amo…?
VOZ – Esquece-o.
RAPARIGA – Não. Não posso esquecê-lo.
VOZ – Foi por causa dele que tu vieste para aqui. Ele não merece outra coisa se não…que o esqueças. (p.c) Ele acabou contigo…não merece. (p.c) Olha bem o estado em que tu estás?
RAPARIGA – Se estive doente…!
VOZ – Sim, estiveste e ainda estás.
RAPARIGA – Não.
VOZ – Sim.
RAPARIGA – Mas eu não quero estar doente.
VOZ – Mas estás.
RAPARIGA – Mas eu quero estar na minha casa…que nem sei onde é…mas acho que não é aqui.
VOZ – Não, não é aqui. Mas ainda não podes ir para a tua casa.
RAPARIGA – Mas estou na cadeia é? (p.c) Aquele anormal é que devia estar na cadeia.
VOZ – E estará, não te preocupes.
RAPARIGA – Eu quero ir para a minha casa.
VOZ – E vais, mas antes trata de te pôr boa.
RAPARIGA - Tenho de sair daqui, para me vingar dele.
VOZ - Não penses nele, pensa em coisas boas para saíres mais depressa daqui.
RAPARIGA – Porque é que eu tenho tantas marcas?
VOZ – Esquece isso…descansa.
RAPARIGA – Mas eu tenho de saber…!
VOZ – Não é altura para saber.
RAPARIGA – Foi ele não foi…?
VOZ – Foi. Mas não penses nisso.
RAPARIGA – E que mais é que ele me levou?
VOZ – Quase te levou toda inteira.
RAPARIGA – Monstro.
VOZ – Sim, é verdade.
RAPARIGA – Espera…eu sou esta feiosa…?
VOZ – És, essa…! Estás a precisar de óculos.
RAPARIGA – Eu uso óculos?
VOZ – Não.
RAPARIGA – Estou a ver bem.
VOZ – Não me parece que estejas a ver muito bem.
RAPARIGA – Estou.
VOZ – Estás a dizer que és feiosa…?
RAPARIGA – É verdade…! (p.c) Se eu fosse bonita, ele não me tinha tratado assim, nem tinha deixado de gostar de mim.
VOZ – Que disparate! Ele nunca gostou de ti.
RAPARIGA – Ele dizia que sim.
VOZ – E achas que ele te tratou como alguém que gosta mesmo de ti?
RAPARIGA – Não sei.
VOZ – Não…nem de perto…é por isso que estás toda marcada, e aqui na casa de saúde.
RAPARIGA – Ai foi por causa dele?
VOZ – Sim.
RAPARIGA – Mas eu gostava tanto dele…!
VOZ – Como podias gostar de alguém que te tratava abaixo de cadela…?
RAPARIGA – Ao menos tinha alguém…!
VOZ – Francamente. Ter alguém…mesmo que seja um troglodita…só para ter alguém?
RAPARIGA – Ele dizia coisas tão bonitas…! (p.c) Mas no fim…devia andar nervoso…e eu é que paguei.
VOZ – Não. Ele nunca te disse coisas bonitas…até podia dizer, mas era da goela para fora…dentro não tinha nada para ti. (p.c) E ele não andava nervoso…tu não tinhas que aguentar o nervoso dele… (p.c) Isso não é justificação!
RAPARIGA – Mas ele dizia que me amava.
VOZ – E tu, feita estúpida acreditaste…? Palavras leva-as o vento…ele nunca te mostrou isso, e isso era o mais importante.
RAPARIGA – É…ele era muito ciumento.
VOZ – Possessivo…doente…! (p.c) Nunca tal coisa foi amor.
RAPARIGA – Achas?
VOZ – Claro.
RAPARIGA – Óóóhhhh…não me lembro de nada.
VOZ – Ainda bem, é sinal que a medicação está a fazer efeito. (p.c) Agora…descansa.
(Carla adormece. No dia seguinte, acorda, e olha para o espelho novamente).
RAPARIGA – Olha para ti…! (p.c) Como tu estás…!
VOZ – É verdade! Como tu estás…! (p.c) Eras uma rapariga tão interessante…bonita…inteligente…!
RAPARIGA – Pois era…Lembrei-me de tudo, no sonho desta noite. (p.c) Lembro-me…como eu era feliz, antes de conhecer aquele anormal. (p.c) Como eu era feliz por ter pessoas tão boas à minha volta, que me amavam mesmo…!
VOZ – É mesmo. Como…?
RAPARIGA – Eu queria ter alguém…sentia-me muito sozinha.
VOZ – Isso era coisa da tua cabeça.
RAPARIGA – Era a minha timidez.
VOZ – A tua inocência…!
RAPARIGA – A minha infantilidade…
VOZ – E fantasia em relação ao príncipe encantado, que não existe.
RAPARIGA – Eu…fui muito idiota.
VOZ – Imatura. (p.c) Deixaste-te levar pela conversa dele. 
RAPARIGA – Sim, pois foi.
VOZ – Mas as palavras não significavam nada.
RAPARIGA – Tinha medo de ficar sozinha.
VOZ – Nunca estarias sozinha, mesmo que não tivesses nunca na tua vida, um namorado.
RAPARIGA – Ele era bonito…e no inicio muito simpático, meigo, educado…depois…passou-se!
VOZ – Parece que ele te enfeitiçou, com a lábia dele…e a beleza…física…e depois…a máscara que ele usava caiu…mas já tu estavas totalmente envenenada.
RAPARIGA – Eu tive medo dele…!
VOZ – Medo…? Medo de quê? (p.c) Tu só estavas era a ver a beleza física dele.
RAPARIGA – Eu tinha medo que ele se tornasse ainda mais violento.
VOZ – Mas que disparate. (p.c) Com certeza preferiste aguentar as judiarias que ele te fez, mas pelo menos tinhas alguém…! (p.c) Sinceramente.
RAPARIGA – Eu estava apaixonada.
VOZ – Que desculpa esfarrapada. (p.c) Tu estavas presa no exterior dele.
RAPARIGA - Que palerma que eu fui… (p.c) Onde é que eu estava com a cabeça…? (p.c) Como é que eu fui capaz…de aguentar aquele monstro…? (p.c) Nunca devia ter permitido a primeira.
VOZ – Pois não. (p.c) Logo que ele te levantasse a mão a primeira vez, não devias ter permitido que ela se baixasse novamente…pelo menos inteira…!
RAPARIGA – Mas eu pensei que ele estava a brincar…!
VOZ – Desculpa lá…isso são brincadeiras que se tenham? (p.c) Tu não sabes o que estás a dizer…nem o que significa brincar…!
RAPARIGA – Ele tirou-me tudo! Tenho de me vingar dele.
VOZ – Agora…? (p.c) Foi preso.
RAPARIGA (feliz) – A sério…?
VOZ – Sim. Felizmente.
RAPARIGA (feliz) – Ai, que maravilha.
VOZ – E vais lá depor contra ele.
RAPARIGA – Mas é claro que sim. Até pode ser já.
VOZ (sorri) – Eles devem vir cá.
RAPARIGA – Tem que pagar bem caro. (p.c) Quero fazer justiça pelas próprias mãos.
VOZ – A melhor justiça que podes fazer é amar-te a ti mesma…recuperar a tua auto-estima…dar valor a ti mesma, e não precisar de porcaria de homem nenhum.
RAPARIGA – Sim, vou fazer isso, mas não chega…! Eu quero que ele sinta toda a dor, mas a triplicar…que me provocou a mim.
VOZ – Não percas tempo com vinganças. Ele vai ter o que merece…fica descansada. E tu vais ser muito superior.
RAPARIGA – Servirei de exemplo para outras mulheres…para que não lhes aconteça nada...e o mesmo que a mim.
VOZ (sorri) – Excelente ideia. Mas quando estiveres boa.
RAPARIGA – Agora ficarei boa depressa.
VOZ (sorri) – Muito bem.
RAPARIGA – Chega de sofrer. (p.c) Cansei. Ainda por cima, depois de saber o que me trouxe para aqui. Mulheres, não se permitam ser usadas, nem pisadas, nem maltratadas. À primeira tentativa, soltem as alcateias e as matilhas de cadelas selvagens que há dentro de vocês, e defendam-se. Ataquem com tudo o que tiverem à mão, porque nós mulheres, não fomos criadas para sermos escravas deles…ou bonecas de palha…ou outro lixo qualquer. Se eles nos amam não nos maltratam, muito pelo contrário, respeitam-nos, e engrandecem-nos, elogiam-nos, dão-nos amor e carinho. Tudo o que passe daí, não é amor. E nada pode servir de desculpa para continuar do lado de um cérebro que parou na idade das cavernas. À primeira tentativa, ajam…denunciem…imponham-se…não permitam qualquer tipo de abuso seja de que espécie for. Não é isso que vocês merecem. Não é a crise…que tanto falam, ou os filhos, ou o dinheiro dele…que vos impede de se libertarem das garras deles. Nada pode servir de pretexto para serem magoadas, pisadas, humilhadas…usadas. Os vossos filhos também sofrerão…ou ainda mais, na presença dele. Não tenham vergonha. Denunciem. Porque uma mulher que morre nas mãos do marido…já era demasiado…mas 36 vítimas, só este ano…é inqualificável. Não pode continuar. Chega! Gritemos todas juntas…unamos as nossas mãos e as nossas forças, mulheres…para impedir que mais mulheres morram nestas circunstâncias. E sempre que tiverem conhecimento de maus tratos…denunciem! Nós temos muito poder, e todas juntas, somos capazes de tudo…portanto…vamos! Temos que ser umas para as outras… não podemos continuar a permitir que haja estas histórias das cavernas. O amor é qualquer coisa menos palavras bonitas…e maus tratos…! Não se iludam com palavras bonitas, e pacotes muito bem apresentados…! Debaixo desses com pele de cordeiro…há monstros…tenham muita atenção. Sejam feras, debaixo de corpos de sereias, sejam pedras de carvão incandescentes, debaixo de um lindo jardim, sejam tempestade, debaixo de um céu azul, e de um mar sereno… sejam amigas umas das outras. Sejam vaidosas, sejam poderosas, gostem de vocês mesmas, amem-se primeiro, respeitem-se primeiro, dêem a valor a vocês mesmas, primeiro. Apreciem-se a vocês mesmas, primeiro… e tudo será diferente. Mesmo que o amor não apareça, ou não dê certo, o mais importante é que vocês continuam com vocês mesmas, e continuam a existir por vocês mesmas…pelas pessoas que amam, e que vos amam verdadeiramente, protegem-se e protegem quem mais amam. O resto…ter um homem, ou não é completamente secundário. Não é o que mais precisam. Até porque se precisam…não amam…é pura satisfação de uma necessidade. Lembrem-se, e procurem coisas que vos preencham interiormente, coisas que gostem, que vos traga alegria e orgulhe…que vos valorize. Não esperem que sejam os homens a fazê-lo…porque isso, minhas queridas semelhantes…nunca vai acontecer! Eles não sabem nada de nós. E viva as mulheres!

FIM.
Lálá 
(28/NOVEMBRO/2012)



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