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sexta-feira, 25 de março de 2016

A vingança dos agricultores (Adultos)

NARRADORA - O sol ainda nem nasceu…o dia está a clarear e eles lá vão para o campo. Os lavradores com as suas famílias, as crianças, e os utensílios de trabalho. Os mais pequeninos arrastam os pés, e andam amuados; coitadinhos…ainda estão a dormir em pé. 
CARACOL 1 – Que crueldade! Pôr estas crianças tão pequenas a trabalhar.
CARACOL 2 – Realmente…as criaturas mal podem com os instrumentos.
FLOR 1 – Eu acho muito bem que trabalhem desde pequeninos, em vez de andarem a fazer asneiras.
FLOR 2 – Também acho. Principalmente a arrancar flores. O raio da canalha só pensa em fazer mal.
PASSARINHO – Claro. Ao menos não passam os dias de papo para o ar, a rastejar…
CARACOL 1 (ofendido) – Essa piada foi para nós?
FLOR 1 - Mas claro que foi. Está aqui mais alguém que rasteja e que não faz nada?
Todos riem. 
CARACOL 2 – Olha, flor convencida…sabes qual é a tua sorte? É que como me dás de beber e às vezes serves de abrigo para mim, não te vou mal tratar, porque se não, arrancava – te logo as pétalas todas.
FLOR 1 – Ai, que palerma. Hás – de ver se te deixarei subir mais e abrigar – te…
CARACOL 2 – Mázona.
FLORES –  Cala-te.
PASSARINHO 2 – Estou totalmente de acordo com as flores, e com a minha amiga. É que estando ocupados estão a fazer bem à sua saúde, porque respiram ar puro e arejam a cabeça. Além disso, ajudam as famílias e outras pessoas, e deixam – nos em paz. Não andam a dar água sem caneco.
CARACOL 1 (irónico) – Quem é que anda a dar água?
CARACOL 2 (irónico) – E é preciso caneco para beber?
CARACOL 1 – Eu se tenho sede, bebo directamente, por uma palhinha ou da bica…preciso lá de algum caneco…
As flores riem, os passarinhos abanam as cabeças.  
PASSARINHO 1 – Estas crianças vão dar gente!
CARACOL 1 – E elas são o quê? Calhaus ou flores…?
Os caracóis riem – se.
PASSARINHOS – Ai, que ignorância…
CARACOL 1 – Amigos, vou indo.
CARACOL 2 – Onde vais?
CARACOL 1 – Vou visitar uma amiga.
CARACOL 2 – Eu conheço essa amiga?
CARACOL 1 – Conheces…é a Didas.
CARACOL 2 – Será que posso ir contigo?
CARACOL 1 – Sim. Anda daí.
PASSARINHO 1 (IRÓNICO) – Olhem que trabalho duro…visitar amigas.
PASSARINHO 2 (IRÓNICO) – Se tivessem que procurar comida para os filhos preocupavam – se menos com as visitas a amigas.
PASSARINHO 1 – Também acho.
PASSARINHO 2 – Coitadinhas das crianças.
FLOR 1 – Eu acho muito bem que trabalhem, mas realmente é muito cedo para estarem acordadas…o sol ainda mal nasceu.
FLOR 2 – Sim, isso é verdade.
PASSARINHO 1 – É que eles têm escola de tarde.
FLORES – Ááááhhh…
NARRADORA - Pois é. Nesta aldeia e em muitas outras, há muitos meninos da vossa idade, e mais pequeninos que tem de sair do quentinho e conforto das caminhas e dos pijaminhas para ajudar os papás. É duro!  Perguntem aos vossos avós…no tempo deles também era assim. Vocês têm mais sorte.  Enquanto o casal de lavradores começa a trabalhar com os instrumentos, passam as lavadeiras com baldes cheios de roupa, e outras com baldes e cestos à cabeça, a cantarolar e a falar alegremente umas com as outras.  Pousam as coisas no chão e começam a lavar a roupa.  São muito coscuvilheiras.  A claridade do dia aumenta ligeiramente.
Elas esfregam as roupas no tanque, batem com a roupa na pedra…
GINA (suspira e boceja escandalosamente) – Aaaaiiii…
TODAS – O que foi mulher?
DIANA – Dói – te alguma coisa?
GINA – Ai, dói – me muita coisa…
TODAS – Uuuiiii…
ESTELA – O que te dói?
GINA (suspira e boceja) - Aiiii…é melhor não saberes o que me dói. Só te digo que me dói muita coisa.
ARLETE - Óh, mulher, diz lá…o que te dói e porque é que te dói?!
GINA – Tive uma noite muito agitada.
TODAS – Ááááhhh…dormiste mal?
GINA – Sim.
JOANA – Porquê? Estás doente?
GINA – É. Mais ou menos. (p.c) Fui atacada…
        Todas estremecem e dizem em coro:
TODAS (assustadas) - Ai…que horror… (benzem – se) por quem?
GINA – Pelo meu homem.
TODAS – O quê? Ele bateu – te?
GINA (sorri) – É…bateu – me…com uma certa coisa…na alma…!
Benzem – se, estremecem e todas riem maliciosamente:
TODAS – Áhhh…
    Teresa sorri e responde maliciosa:
TERESA – Essas batidas são boas…
JOANA (INGÉNUA) – Mas, ele bateu – te e tu ainda gostas?
    Márcia e Teresa comentam maliciosas e risonhas:
MÁRCIA (sorri) – Estas batidas são especiais…
TERESA – Ai, eu já não tenho destas tareias há muito.
JOANA – Não sei como é que permitem que o vosso marido vos bata.
Todas riem e respondem em coro:
TODAS – Santa ignorância.
DIANA (risos maliciosos) – Quando chegar a tua vez vais ver como é bom.
   Todas se abanam a rir e comentam:
TODAS – Uh…se é…!
GINA – É melhor ficarmos por aqui…só vos digo…ele estava assanhado…Uuuiiii…arrepio – me toda só de me lembrar.
ESTELA – É por isso que já tens uma ninhada…sempre que ele fica assanhado, tu também ficas…
Riem, Joana continua na sua inocência, e todas gozam de fininho
JOANA – Ááááhhh…isso é uma doença?
TODAS (a rir) - É…
JOANA – E pega – se?
TODAS (a rir) - Pega – se.
DIANA - Olha, às vezes até faz crescer certas coisas…!
   Todas riem e confirmam. Joana não entende as piadas e leva muito a sério o que dizem:
JOANA - Mas…o que é que faz crescer…? Se é uma doença, e ainda por cima que se pega não quero ter nenhum homem…! Vocês têm essa doença…Uuuiiii…que nojo…
    Todas riem.  
ARLETE – É tão inocente…coitadinha…é melhor não desenvolvermos mais esta conversa, se não, ainda desencaminhamos a rapariga.
Benzem – se, e riem. Diana faz um convite, porque ficou a arder em curiosidade:
DIANA – Olha…hoje apareçam na minha casa, para um chazinho, e assim contas – nos como foi, está bem Gina?
   Todas concordam, e todas estão muito curiosas, e respondem em coro:
TODAS – Combinado.
JOANA – E eu?
DIANA – Tu…? Vais com o gado para o campo.
TERESA - Ou vais rezar o tercinho…
JOANA - Sim, ou então fazer os bordados da Avó…! Com todo o respeito, porque eu gosto muito dos bordados e da tua Avó…
DIANA - Pois, ou brincar com as tuas bonequinhas…!
JOANA – Que invejosa, nem me convidas para o chá.
DIANA – Essa agora… (riem) Tu és canalha. Este chá é para adultos.
ESTELA – Ai, até me dá calafrios.
GINA (ri-se) - Segura – te mulher! (p.c, cheira) Huummm…que cheirinho é este?
   Todas cheiram no ar e respondem em coro:
TODAS – Huummm… que bom!
   Estela tenta adivinhar a que cheira:
ESTELA – Parece que está alguém a fazer um bolo, ou um chá…
TODAS – Sim…!
ARLETE – Não, esperem, é o meu sabonete novo.
TODAS – Ááááhhh…
ESTELA – E onde arranjaste?
ARLETE – Foram os meus primos de França que trouxeram.
TODAS – Ááááhhh…
        Diana lembra-se que viu um homem à porta de casa da Arlete e associa: 
DIANA – Ááááhhh…então o homem que vi à tua porta era teu primo?
        Todas benzem-se, sorriem:
TODAS – Um homem…?!
Benzem – se outra vez maliciosas. Arlete ainda incendeia mais a conversa, maliciosa:
ARLETE – Sim, ela tinha um homem à porta… (abana – se, suspira) …é daqueles homens que nos fazem ter pensamentos…
TODAS – Pensamentos…?
        Joana muito enojada, com a sua inocência pergunta:
– Ai, isso é uma doença…?
        Elas não entenderam a pergunta de Joana e formulam outra pergunta: 
JOANA – Uma doença?
GINA – O que é que é uma doença…?
JOANA (inocente) – Isso…pensamentos…
TODAS – Não, mulher.  
TERESA – Pensamentos, …é aquilo que temos na cabeça…
JOANA – Mas…então a que é que chamam cabelos…afinal penteamos… pensamentos…?
TODAS – Santa ignorância…!
Benzem – se, Márcia está a gostar tanto da conversa que quer saber mais:
MÁRCIA – Mas, conta filha, que pensamentos é que ele te faz ter…?
   Arlete suspira, abana-se com calores e responde:
ARLETE – Aiiii…pensamentos…pecaminosos…
   Todas sorriem, abanam-se com calor e dizem em coro:
– Aaaaaaaiiiiiii….
Benzem – se, estremecem e Arlete acrescenta sorridente e maliciosa:
ARLETE – Uuuuuuiiii….que pedaço de mau caminho…
    Ficam todas entusiasmadas com a conversa, riem, suspiram, abanam-se.  
GINA – Ai, mulher, afasta – te dele…não olhes mais para ele…
MÁRCIA – E ele é casado?
    Arlete ri-se 
ARLETE – Não. Tenho que admitir que ele é bem jeitoso. Mas é meu primo…
    Estela responde lamentando-se:
ESTELA – Há gente com sorte! Eu não tenho nenhum primo jeitoso...
MÁRCIA - Ai mulher, tu és muito estranha…olha que os teus primos que conheço são bem jeitosos…!
TODAS – Eu quero conhece – lo.
    Teresa sorri maliciosa e pergunta a Arlete:
TERESA – Tu não lhe lavas a roupa?
    Arlete responde a rir:
ARLETE – Não faltava mais nada…
DIANA – Ai, até tu já estás com pensamentos pecaminosos.
ARLETE – Então quando o vires mesmo…vai – te subir assim umas febres…até te vai faltar o ar…
Todas estremecem, riem.  
DIANA – Estou toda arrepiada.
    Joana está preocupada e na sua inocência pergunta:
JOANA – Essas febres pegam – se?
TODAS – Pegam – se.
ESTELA – É melhor não te aproximares desse homem, se não também ficas com febre.
Todas riem da ignorância de Joana.  
GINA – Olha que o outro dia andavam aqui uns homens…rapazes novos…que eu…se não fosse casada, e se não amasse o meu marido…chamava – lhes um figo…!
Ri maliciosa, as outras também riem.  
DIANA – Podias - nos ter chamado!
JOANA – É melhor irmos todas à igreja…
TODAS – Vai tu.
JOANA – Eu vou só ao Domingo, mas rezo todos os dias…para que precisamos de ir agora à igreja? Mas devíamos ir para se confessarem.
ESTELA – Eu não tenho nenhum pecado…
TODAS – Nem eu.
   Estela, Gina, Teresa e Arlete brincam com a situação mas falam muito sérias aproveitando-se da inocência de Joana:
ESTELA – É melhor não irmos, se não ainda pomos o padre tolinho da cabeça.
GINA - Ele é homem…
TERESA – Mas não pode ter mulheres…
ARLETE – Ele é padre…mas não é santo com certeza!
JOANA – Pois é homem, e não pode ter mulheres, porque os padres não podem casar.
GINA – Acorda mulher…! Tu não sabes o que eles fazem por trás. É claro que também pecam.
MÁRCIA – As carnes masculinas são fracas…
JOANA – Carnes masculinas…o que é isso…? É algum animal…?
TODAS – Éé… (p.c) Santa Ignorância.
JOANA – Eu não conheço…a imagem da Santa Ignorância, nem a carne masculina…!
Todas riem, e continuam a lavar roupa, e a falar, e todas pedem o sabão emprestado:
TODAS – Empresta – me esse sabão…!
Escurece o palco. Acende-se luz amarela no palco, para dar a entender que é de dia.
NARRADORA - O dia nasceu.  Esta aldeia costuma receber muitos visitantes, todos os dias, mas os seus habitantes não se deixam intimidar. Cada um tem a sua vida, e trata das suas tarefas.  Os pastorinhos vão a caminho da escola, a falar alegremente, e cruzam – se com os lenhadores e outros homens desconhecidos. Os lenhadores cumprimentam os meninos:
LENHADORES – Bom dia meninos.
TODOS – Bom dia!  
LENHADOR 1 – Vão para a escola?
TODOS – Sim.
AFONSINHO (apressado) – Até logo.
TODOS – Até logo.
LENHADOR 3 – Vão com juízo.
NARRADORA - Os meninos seguem para a escola. Os lenhadores fazem o seu trabalho, que é ver árvores e rachar troncos para construções dos anões.  Os homens desconhecidos que estão com eles têm um ar estranho. Olham para todo o lado, fazem uns registos, e quando os lenhadores se desviam deles…Umas ovelhinhas estão a pastar, uns cogumelos repousam nuns troncos de árvore, e uma águia sobrevoa a área. Eles ouvem tudo.
HOMEM 1 – Hum, aqui temos muita coisa para queimar!
HOMEM 2 – Vamos ficar milionários com tanto que vamos queimar. Vai ser fabuloso.
HOMEM 3 – Por mim, isto ia já tudo pelos ares.
HOMEM 4 – Nem penses. Temos de esperar ordens superiores.
HOMEM 1 – Já estou em pulgas…
HOMEM 2 – Por onde vamos começar?
HOMEM 3 – Eu começava já por aqui.
HOMEM 4 – Estás mesmo ansioso.
HOMEM 1 – Vamos passear por aí…e depois estudamos a coisa.
HOMEM 2 – De hoje não passa com certeza.
NARRADORA - Todos batem palmas, e andam pela floresta.  Grandes malvados. Estão a tramar alguma.  Os cogumelos estão em pânico e confusos. Chamam a águia. A águia aterra junto deles.  
ÁGUIA – Então amigos? Precisam de mim?
COGUMELOS – Estamos muito preocupados…
COGUMELO 1 – Ouviste a conversa deles?
ÁGUIA – Sim…o que é que tem? É uma conversa normal de homens que trabalham na floresta.
    Os cogumelos explicam e mostram grande inquietação e preocupação: 
COGUMELO 1 – Eu não achei nada normal…
ÁGUIA – Com certeza não ouviste bem!
COGUMELO 2 – Eles estavam a dizer que iam queimar isto tudo…
COGUMELO 3 – Sim, e que iam ser ricos…
COGUMELO 4 – Um deles disse que por ele queimava isto tudo naquele momento…há bocadinho.
     A Águia não percebeu perigo e tenta acalmar os cogumelos:
ÁGUIA – Claro, eles todos os dias cortam e queimam árvores para os seus trabalhos, e devem ganhar muito dinheiro, pelo que sei.
    Mas outros dois cogumelos não estão descansados e tentam alertar a Águia:
COGUMELO 5 – Eles disseram que não passava de hoje…
COGUMELO 6– E que estavam à espera de ordens superiores.
   A Águia continua sem perceber onde está o perigo:
ÁGUIA – Mas…vocês estão tão ansiosos…não percebo porquê. Não senti perigo.
Passa o pastorinho Afonso, a assobiar e cumprimenta:
AFONSINHO – Bom dia.
TODOS – Bom dia.
Um cogumelo quer saber se são eles que estão a exagerar, uma vez que a Águia não sentiu perigo, ou se mais alguém se apercebeu de movimentações estranhas.  
COGUMELO 1 – Olha, óh rapaz…estás com pressa?
AFONSINHO – Não muita, as ovelhas estão aqui. Porquê?
COGUMELOS – Queremos falar contigo.
COGUMELO 2 – Estamos aqui com uma dúvida. Ouvimos umas coisas estranhas, de uns homens estranhos.
    Afonso fica espantado e não percebe do que estão a falar:
AFONSINHO – Ãhhh…?
    A Águia ri-se e assegura:
ÁGUIA – Eles estão a exagerar…hoje devem ter acordado de rabo para a lua.
A águia e o Afonsinho riem, mas os cogumelos reforçam a preocupação:
COGUMELO 3 – Isto é muito sério. 
COGUMELO 4 – Ouve – nos rapaz, por favor.
AFONSINHO – Está bem. Digam lá…
COGUMELO 5 – Uns homens estavam a dizer que vão queimar isto tudo hoje, e vão ficar milionários com isso.
   A Águia clarifica, o rapaz está do lado da Águia.  
ÁGUIA  – Eles referem – se aos lenhadores.
AFONSINHO – Mas isso faz parte do trabalho dos lenhadores.
ÁGUIA – Eu disse – lhes!
COGUMELO 6 – Mas estes eram muito estranhos.
COGUMELO 2 – Eu acho que deviam levar isto muito a sério.
COGUMELO 1 – Claro, nós conhecemos muitas histórias de outros cogumelos que vivem noutros sítios, onde andaram lá homens muito estranhos, com a mesma conversa e no fim, esses homens queimaram a floresta.
    O Afonso não compreende porque razão os lenhadores fariam tal crueldade e pergunta:
AFONSINHO – Mas…por que razão é que eles iam fazer isso?
COGUMELO 4 – Para ficar ricos como eles disseram…
A águia e o Afonsinho riem, Afonsinho assegura e tenta tranquilizar:
AFONSINHO (a rir) -  Não se preocupem, isso não vai acontecer.
Passa a pastorinha Luciana aos gritos, muito assustada, parece que ainda está a dormir:
LUCIANA - Áááááááááááhhhhhh…socorro…socorro…socorro…incêndio…ai, ai, ai…temos de fugir…caso contrário viramos churrasco.
Olham – se todos. O Afonsinho agarra – a, ela manda um grito, abre os olhos muito assustada e pergunta:
LUCIANA – Afonsinho…o que estás a fazer…eu estava contigo?
    O Afonsinho está a achar aquela reacção muito estranha e responde:
AFONSINHO – Não. Apareceste aqui aos gritos…a dizer que tínhamos de fugir porque havia um incêndio…se não virávamos churrasco.
    A Pastorinha lembra-se do seu pesadelo e explica:
LUCIANA – Ai…eu estava a dormir e tive um pesadelo horrível. Espero que nunca aconteça…
    A Águia ficou incomodada com os gritos, e sente-se estranha, como os Cogumelos:
ÁGUIA – Não sei porquê…arrepiei – me.
COGUMELOS – Eu também.
    Afonsinho tranquiliza a amiga:
AFONSINHO – Deixa lá…esquece o pesadelo. Já estás acordada e não há nenhum incêndio.
LUCIANA – Sim, ainda bem. Bem, vou voltar para as minhas ovelhas.
AFONSINHO – Eu vou contigo.
LUCIANA – Está bem.
OS DOIS – Até logo.
TODOS – Até logo.
As crianças seguem. A Águia partilha uma coisa que a incomoda:
ÁGUIA – Esta pastorinha é muito misteriosa. Eu tenho medo dos sonhos dela…quer dizer, pesadelos.
COGUMELOS – Porquê?
ÁGUIA – Alguns já aconteceram mesmo.
Os cogumelos estremecem, e um Cogumelo arrepia-se com o que acabou de ouvir:
COGUMELO 5 – Agora quem ficou arrepiado fui eu.
    A Águia tenta acalmar-se:
ÁGUIA – Bem, esperemos que este não se concretize. Qualquer coisa estou por aqui. Até logo.
TODOS – Até logo.
NARRADORA - Está um dia abrasador. Tudo decorre com normalidade durante o dia, tudo está tranquilo. Infelizmente…a paz é interrompida quando é noite cerrada. A pastorinha e os cogumelos tinham razão. Aqueles malditos homens pegam fogo à mata. Os cogumelos acordam sobressaltados com a claridade, e com o calor à sua volta.
Um Cogumelo ensonado comenta:
COGUMELO 3 – O que é isto…? Está tanto calor…
NARRADORA - Abre bem os olhos, acorda os amigos, saem do tronco muito aflitos e assustadíssimos, gritam, começam a bater às portas das árvores onde vivem os anões, o fogo alastra rapidamente (aparece uma imagem de um incêndio).  A águia pia alto, os passarinhos fogem das árvores, os coelhos saem das tocas, as flores gritam, choram, encolhem – se, muito aflitas, tossem, sacodem – se, tentam sair da terra, os cães ladram desvairados, uivam, soltam – se das correias.  Todas as pessoas acordam sobressaltados, as mulheres pegam nos filhos e protegem – nos, em barracos de pedra pegados às casas, choram abraçadas aos filhos, rezam.  Os homens vão a correr para o monte com mangueiras, baldes, toda a água que encontram, gritam uns com os outros, abafam o fogo, e os malditos dos incendiários às gargalhadas, a brindar e a ver o fogo. Conseguem apagar o incêndio. Estão completamente exaustos. Homens, mulheres, filhos, os animais e as flores.  As mulheres batem palmas aliviadas e levam água para os homens beberem, e as lavadeiras levam água em baldes e toalhas para eles se limparem. Eles estão a arfar, a soar, uns encostados, outros deitados. As famílias abraçam – se, eles bebem e limpam – se. Estão todos em estado de choque. Nem querem acreditar no que aconteceu. Num sítio seguro estão os incendiários a festejar.  Uma lavradeira muito assustada procura explicações:
LAVRADEIRA 1 - O que é que aconteceu?
TODOS – Uma tragédia.
   Um lavrador nervoso, chora, ainda assustado.  
LAVRADOR 1 – O que fizemos para merecer isto?
TODOS – Nada.
JOANA – Sempre tratamos bem da natureza…não sei porque é que ela nos castigou desta maneira.
ESTELA – Não digas disparates. Não foi a natureza que nos castigou.
TODAS – Claro que não.   
ARLETE - Ela não pega fogo a ela própria só para nos castigar.
GINA – Pois não! Ela quando nos quer castigar, manda – nos tempestades, nunca fogo!
LAVRADOR 3 – A natureza não tem culpa nenhuma. Foi mão criminosa!
TODOS – Ãh?
LAVRADOR 4 – Claro, só pode ter sido alguém que pegou fogo.
TODOS – Mas quem?
    A Pastorinha Luciana lembra o seu pesadelo a chorar:
LUCIANA – O meu sonho…eu sonhei que tinha havido um incêndio.
        Outros lavradores prometem vingança:
LAVRADOR 5 – Isto não vai ficar assim.
 LAVRADOR 6 – Áh pois não. Eu vou agora mesmo ver se encontro alguém suspeito por aí…
TODOS – Nós vamos contigo!
TODAS – Nós também.
TODOS – Não.  
LAVRADOR 6 - Vocês ficam com os nossos filhos.  
LAVRADOR 1 - Isto não é trabalho para mulheres…é muito perigoso.
As mulheres ficam ofendidas, e os lavradores combinam entre si o plano:
LAVRADOR 1 – Nós vamos encontrá – los, com certeza.
LAVRADOR 2 – Não se preocupem connosco.
LAVRADOR 3 – Aguardem aqui por nós.
LAVRADOR 4 – Podem ir para casa.  
LAVRADOR 5 - Não precisam de esperar por nós aqui…as crianças tem de dormir.
LAVRADEIRA 1 – Vão com cuidado.   
Eles viram costas, as mulheres olham – se.  
ESTELA – Vocês ouviram o que eles disseram?
TODAS – Sim.
        Arlete, Gina e Teresa descascam nos homens:
ARLETE – Convencidos.
GINA – Grandes ingratos.
TERESA – Têm a mania que são os melhores, e nós é que somos as fracas…
ARLETE – Alguém vai para casa?
ESTELA – Pois eu não fico aqui.  
GINA - Hei – de apanhar algum, tenho a certeza. E desgraçado do que me apanhar pela frente.
TERESA – Eu também não fico aqui.
JOANA – Eu vou para casa. Eles disseram que é perigoso…e que não é trabalho para nós.
MÁRCIA – Até parece que o que eles dizem é sagrado.
Riem, e respondem em coro:
TODAS – Vai.
JOANA – Até amanhã.
TODAS – Até amanhã.
Joana sai. As outras olham – se, Diana comenta, e Márcia quer ter a certeza que estão juntas nisto:
DIANA - Também esta, ir ou não é a mesma coisa.
MÁRCIA – Mais alguma vai para casa, ou vamos provar àqueles machistas que também temos os… vocês sabem… quer dizer…que também é trabalho para nós…apanhar aqueles malditos?
TODAS – Estamos contigo.
GINA – Eles ainda vão engolir um sapo…
TODAS - Pois com certeza!
ARLETE – E bem grande…! Talvez seja melhor dividirmo-nos não?  
TODAS – Sim.
DIANA – Umas por aqui, outras por ali.
TODAS – Certo.  
MÁRCIA – Encontramo-nos aqui.
TODAS – Combinado.
TERESA (ORGULHOSA) – Vamos ver quem é que apanha…
NARRADORA - Lá vão elas: as lavadeiras e as agricultoras, com os filhos, umas para um lado, outras para outro, procuram tudo, até que todas, sem combinar encontram – se no cimo do monte, onde estão os incendiários a festejar, a fazer um grande alarido, numa casota de guardar o gado.  Elas entreolham – se. Silenciosamente, pegam nos utensílios de trabalho, paus, vassouras, tábuas com pregos, pás, enxadas, engaços, foices, e tudo o que apanham e que possa servir para bater.  Elas estão a explodir de ódio.  Os maridos ainda não os encontraram.  A águia fica à porta da casota a tomar conta das crianças, que obedecem às mães e ficam caladinhos.  Elas batem à porta. Os homens estão todos meios bêbados. Um homem cumprimenta-as:
HOMEM 1 – Boas noites, belas damas…
GINA – Olhem só…o que é que estão aqui a fazer?
Os homens desatam à gargalhada. Outros dois homens esclarecem, mas elas não acham piada nenhuma e Gina vai tirando nabos da púcara:
HOMEM 2 – Estamos a festejar…querem fazer parte da festa?
GINA (riso forçado) - Sim, claro…mas, a festejar o quê?
HOMENS – Estamos milionários.
GINA – Ai sim? Saiu – vos a lutaria, foi?
        Os homens desatam à gargalhada e respondem em coro:
TODOS – Óóóhhh…muito melhor que isso.
        Um homem acrescenta a rir:
HOMEM 1 – Não tivemos que gastar dinheiro a comprar o boletim, e só tivemos que queimar ali umas coisas…
As mulheres olham – se. Outro homem do grupo acrescenta a rir:
HOMEM 2 – É emocionante ver tudo a arder…aquelas labaredas enormes…tudo aos gritos, de um lado para o outro, e nós aqui protegidinhos…! (gargalhadas dos homens).
TERESA (murmura) – Foram vocês canalhas…
        Outro homem muito admirado pergunta:
HOMEM 3 – Mas como é que nos apanharam aqui?
ARLETE – Nós temos faro…!
DIANA – É. E adoramos festa. Ouvimos tanta alegria, que quisemos fazer parte da festa.
TODOS – Entrem…
        Márcia responde com uma simpatia forçada, e sedutora:
MÁRCIA (a rir) - Agora vai ser a festa que vai ser quente…vai ter imensas labaredas…nos vossos cus…e cabeças…e…vamos dar – lhes festas, meninas…
NARRADORA - Descarregam toda a raiva em cima deles, dão – lhes uma valente tareia, com os instrumentos que tem á mão, sem dó nem piedade. Só se vê as mulheres de costas voltadas para o público, os homens no meio, e elas a bater, a dar pontapés, a insultar, ouvem – se gritos dos homens…e elas saem com eles a rastos quando há luz de noite no palco. Os maridos ainda não encontraram nada e ficam intrigados. Elas saem com os incendiários a rastos, todos rotos, arranhados, com nódoas negras, despenteados, e elas arrastam – nos até ao sítio combinado. Os incendiários estão no chão, em muito mau estado, quase não se conseguem mexer, gemem, e elas a sorrir, com os filhos, como se não tivessem feito nada, e orgulhosíssimas.
LAVRADOR 1 – Viram por aqui alguém a passar?
TODAS – Não.
LAVRADOR 2 (frustrado e irritado) – Não os encontramos…(Tropeça num dos homens, olha para o chão) – O que é isto?
ARLETE (irónica) – Uns calhaus se calhar…ou uns troncos de árvores não?
GINA (irónica) – São uns ratos do esgoto…não vês?
Os lavradores olham para o chão, iluminam com umas lanternas e todos dizem em coro, muito admirados:
TODOS – Ááááhhh…são homens…!
LAVRADOR 3 – Estão num estado crítico. Terão caído…?
DIANA (irónica, gozo fininho) – Coitadinhos…temos imensa pena deles…
TODAS – Ui…
ESTELA (irónica) – E vieram logo cair aqui…aos nossos pés…que estranho não é…?  
GINA – Não tenham pena deles…foram eles que pegaram fogo…
LAVRADORES – O quê?
        Dois lavradores perguntam:
LAVRADOR 4 – Mas…como é que isto aconteceu?
LAVRADOR 5 – Como é que eles vieram aqui parar?
DIANA – Querem ver que vieram a voar…não?
LAVRADOR 6 – Como é que sabem que foram eles?
LAVRADOR 7 – Onde é que eles estavam…?
MÁRCIA – No cimo do monte. Estavam com semelhante borracheira que confessaram tudo.
Os homens ficam frustrados.
TERESA – Vocês andavam atrás deles…mas quem é que os apanhou?
ARLETE – Quem é que afinal tem os…? Na prática é o mulherio.
Gargalhadas delas.
DIANA – Nós, mulheres, aquelas que vocês disseram que não valiam nada, e que tal coisa não era trabalho delas…
        Os lavradores estão incrédulos e dizem em coro:
LAVRADORES – Mas…não pode ser…
LAVRADOR 1 - Alguém vos deve ter dito alguma coisa.
LAVRADOR 2 (ralha) – Vocês desobedeceram – nos…
GINA – E desde quando é que temos que vos obedecer…?
TERESA – Até parece que vocês nos obedecem…só nos usam como criadas…não faltava mais nada!
TODAS – Apanhamo-los.
LAVRADOR 4 (zangado) – Vocês são loucas…foram para aquele sítio com as crianças…
ARLETE – O que é que tem aquele sítio? Não foram lá?
LAVRADORES (chateados) – Não. Íamos lá de manhã.
MÁRCIA (ri) – Iam fazer muito de manhã.
LAVRADOR 5 (a ralhar) – Vocês são loucas…
LAVRADOR 6 (humilde) – Temos de reconhecer que foram superiores a nós!
TODAS – Claro.
DIANA – Finalmente reconhecem que são inferiores em muita coisa. No machismo é que são sempre superiores.
LAVRADORES – O que é que lhes fizeram?
TODAS – Não vêem?
ESTELA – Fizemos uns carinhos… (riem). Eles gostaram tanto que nem se levantam.
Os homens riem, e prendem os incendiários, muito mal tratados numa cabana de arrumos. Uns lavradores acrescentam:   
LAVRADOR 3 – Estas mulheres merecem um prémio. Obrigada pela ajuda preciosíssima.
LAVRADOR 2 – Sim, realmente…ainda não sei como foi possível.
LAVRADOR 1 – Áhhh, grandes mulheres. Surpreenderam – nos.
MÁRCIA (ralha) – Ai pensavam que as mulheres eram só umas coisas ambulantes para ficar trancadas nas tocas e que não serviam para mais nada?! Tanta estupidez junta.
GINA – As mulheres com os demónios soltos ninguém as segura.
ARLETE - Alguém tinha que defender o reino…e nós temos faro.
DIANA – Ainda tem que aprender muito a nosso respeito. São tão ignorantes.
LAVRADORES – Ganharam…!
LAVRADOR 6 – Até me sinto humilhado.
TODAS (irónicas) – Que chatice…
LAVRADOR 4 – Temos de pensar num bom castigo para estes malditos.
GINA – Ponham – nos a roçar mato…
MÁRCIA - E a limpar as nossas retretes.
Riem.
ARLETE – Tem de ser castigos bem pesados.
LAVRADOR 2 – Pronto, nós pomo-los a roçar mato, a arrancar ervas, a plantar batatas…e vocês tomam conta.
TODAS – Com certeza.
TERESA (a rir) – Nem vão piar…!
GINA – Para mim, o melhor castigo que se lhes podia dar era queimá-los no incêndio que provocaram.
        Outro lavrador acrescenta:
LAVRADOR 3 – Com estes castigos, eles nunca mais na vida vão querer olhar para os fósforos sequer.
NARRADORA - Mais ninguém dorme nessa noite. Ficam todos os habitantes a falar e a tomar. Na manhã seguinte, as mulheres vão deitar as crianças, tomam o pequeno-almoço e levam aos maridos.
Um dos incendiários reclama, Gina e Diana respondem friamente:
INCENDIÁRIOS – Ai, temos tanta fome…
TODAS – Ai têm? Coitadinhos…
GINA – Nós também.
ARLETE – E os nossos também.
DIANA - Vão trabalhar para ganhar e comer.
TERESA – Tens aí muita erva à tua volta para comeres…é só baixares – te.
INCENDIÁRIO 1 (resmunga) – Mas, eu não sou cavalo, nem boi…
ARLETE – Pois não. És abaixo disso. Não vales nada.
INCENDIÁRIO 2 – O que estamos a fazer aqui?
ARLETE (gozo fininho) – Na missa a rezar o terço…
        Outro incendiário informa:
INCENDIÁRIO 2 – Mas…dói – me tudo…
LAVRADOR 1 – Fizeram o que não deviam, vão pagar bem caro por isto.
LAVRADOR 2 – Vieram perturbar a nossa paz…
TERESA – Puseram a nossa vida em risco.
DIANA – Com que então queriam pegar fogo a isto…ficar milionários…grandes estafermos…
MÁRCIA – Hoje é que vão festejar…
INCENDIÁRIO 3 – Não me lembro de ter feito... alguma coisa de mal.
MÁRCIA (irónica) – Não se lembra…vejam lá…basta olharem para vocês…que bem tratados que estão…!
Todos riem:
Lavrador 4 (a rir) – Realmente, puseram – nos bonitos…!
ESTELA – Ainda batemos tão pouco neles…
GINA – Também acho. Devíamos tê-los desfeito.
LAVRADOR 5 – Isso era um prémio para eles.
TODAS – Sim, é verdade.
LAVRADOR 6 – Querem pequeno-almoço vão fazê – lo e vão trabalhar o dia todo.
NARRADORA - Os lavradores e as mulheres dão instruções aos incendiários para os trabalhos que vão fazer. (Há imagens por trás de hortas e os actores plantam no palco, com os utensílios). Os incendiários trabalham no duro, mesmo rotos e feridos. As mulheres gritam com eles, e batem – lhes. Eles rendem – se e fazem tudo o que lhes mandam. Ao fim do dia não recebem nada. E fica combinado voltarem mais uma semana sem receber nada. Os incendiários cumprem o estabelecido e nunca mais pegam fogo. Ááááhhh, grandes mulheres…! Apanharam os desgraçados…deram – lhes uma grande tareia, e parabéns aos lavradores pelo castigo que lhes deram. As mulheres recebem flores dos maridos, e estes passam a respeitá – las mais. E volta a paz àquela maravilhosa floresta.

Fim.
Lálá 


(30/ Setembro/ 2010)

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