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quinta-feira, 24 de março de 2016

Doce presente

NARRADORA - Era uma vez uma senhora com muita idade, que vivia sozinha e triste. Saiu de casa e foi para o jardim público da cidade onde caminhou apoiada na sua bengalinha, devagar…a olhar para as coisas de todos os dias, que ela já quase conhecia de cor. Caminhava, meia dúzia de passos pequeninos, parava, suspirava, e voltava a andar. Sentou-se num banco, abriu um saco cheio de migalhas e pão velho e atirou para o chão.
RAPAZ - Que nojo…!
SENHORA - O que queres? Estás a falar comigo?
RAPAZ – Olhe a porcaria que está a fazer no chão.
SENHORA – Como?
RAPAZ – Está a alimentar esses porcos.
SENHORA – Estás a ver bem? Isto são pombas e gaivotas, e não porcos…!
RAPAZ (irónico) – Áh…não sabia.
SENHORA – Porcos são vocês, e pocilga é a vossa educação…! Seus pirralhos. Ainda fazem caca nas calças e estão aqui a desafiar a velhota, que podia ser avó deles…nem que fosse avó…
RAPAZ 1 – Esse bichos dão cabo de tudo, e transmitem doenças…
SENHORA – Também quereis, é? Chega para todos…elas não são invejosas!
(Os rapazes riem) Qual é a piada? Se tivessem fome até paus comiam…
RAPAZ 1 (a rir) – Paus…?
SENHORA – Ou folhas…!
RAPAZ – Velha ignorante.
SENHORA (resmunga) – Olha lá como falas, rapaz…! Mais ignorantes são vocês. Vocês é que são ignorantes. Falta-vos umas sapatadas nesses rabos, e passar fome, para ver o que é. Riem-se e falam de pança cheia…! Só espero que nunca vos falte nada. Tenho a certeza que vos falta amor.
RAPAZ 1 (a rir) – Por acaso já tenho namorada, mas se me der dinheiro, eu posso ser seu também.
SENHORA (grita, levanta-se e dá-lhe com a bengala) – Meu grande ordinário! Vai dobrar a mola e aprender alguma coisa, seu porco vadio…xô…!
RAPAZ – A velha está-se a passar.
NARRADORA - Os dois fogem a correr. Rapidamente aproximaram-se dela as gaivotas e as pombas. Ela sorriu-lhes enquanto falou com os bichos, resmunga muito zangada.
SENHORA (grita)  Estafermos…! Mas que geração mais podre! Onde vamos parar…
NARRADORA – Chega uma menina de pasta às costas, e repara nas pombas aos pés da senhora.
MENINA – Ei…tantas gaivotas e pombas. Olá senhora, boa tarde! São suas?
SENHORA – Não. São do parque, eu é que tenho pena delas e dou-lhes de comer.
MENINA – Gosta delas?
SENHORA – Gosto! Coitadinhos dos bichos. Não fazem mal a ninguém, ao contrário de muitos seres que se dizem humanos, e são umas bestas com os animais…Os bichos só querem um bocadinho de atenção, como nós pessoas.
MENINA – Sim, há muita gente má.
SENHORA – Ainda há poucos minutos, passou aqui uns monstrengos que precisavam de umas chineladas naqueles rabos. Mal-educados…ainda levaram com a bengala.
MENINA – Ofenderam-na?
SENHORA – Sim, e de que maneira. Se calhar passam fome, como as pombas, e estavam a arrebitar cachimbo para mim, a ver se me tiravam alguma coisa…tiraram…tiraram-me do sério. Palermas.
MENINA – Deixe lá, um dia vão ter o que merecem. Porque não olha para mim?
(A senhora levanta os olhos para a menina. As duas olham-se fixamente. A senhora abre um grande sorriso)
SENHORA (sorri) – Minha filha, desculpa. Estava distraída.
MENINA (sorri) – Estava distraída, não! Estava triste!
SENHORA – Não…
MENINA – Sim, estava! Eu percebi.
SENHORA (sorri) – Está bem…sim, estava triste! És uma menina muito sensível.
MENINA – Porquê?
SENHORA – Porquê, o quê?
MENINA – Porque é que estava triste?
SENHORA – Áh…são coisas de velhos.
MENINA – O quê? A senhora não é velha. As pessoas não são velhas.
SENHORA (sorri) – Eu já tenho muita idade!
MENINA – Quantos anos tem?
SENHORA – Oitenta.
MENINA – Nunca ouvi tal coisa! Com oitenta anos não se é velho. É-se uma pessoa cheia de sabedoria, experiência de vida, que merece respeito e quer muito carinho e atenção. Eu tenho oito anos.
SENHORA – O que fazes aqui?
MENINA – Estou à espera da minha avó, que deve estar mesmo a chegar. Costumamos dar uma volta por aqui no fim da minha escola.
SENHORA – Áh! Fazes muito bem.
NARRADORA – A menina acaricia a senhora no rosto, e abraça-a a sorrir. A senhora dá uma gargalhada deliciada, retribui o abraço à menina, e dá um beijo. A menina sorri.
SENHORA (sorri) – Obrigada, minha querida…é que eu hoje faço anos, e estou sozinha, sabes…a tua presença, e agora o que disseste foram as minhas melhores prendas…o teu carinho!
MENINA (sorri) – Faz anos hoje? Áhhh! Muitos parabéns.
(Mais um abraço e beijos da menina)
SENHORA (deliciada) – Que coisa mais querida…!
MENINA – Posso sentar-me à sua beira?
SENHORA (sorri) – Claro, filha…
(A menina senta-se à beira dela)
MENINA – Costuma vir sempre para aqui?
SENHORA – Sim, venho todos os dias, para quebrar a solidão, e para não estar sempre parada!
MENINA – Mora sozinha?
SENHORA – Sim.
MENINA – Porque é que está sozinha?
SENHORA – Nunca casei nem tive filhos.
MENINA – Porquê?
SENHORA – Porque…não apareceu o meu príncipe encantado.
MENINA (sorri) – O meu também ainda não apareceu!
(A senhora ri)
SENHORA (ri) – O teu ainda faz parte do teu mundo de fantasia.
MENINA – Não. Nem no meu mundo de fantasia ele existe.
SENHORA – Não?
MENINA – Não. A minha avó diz que no inicio são todos príncipes, mas quando casam, viram todos sapos…eu não quero casar com um príncipe que vire sapo…eu quero um príncipe que seja sempre um príncipe!
SENHORA (a rir) – Pois claro! Tens toda a razão. Vais ter muito tempo de conhecer.
MENINA – Nunca teve o seu príncipe encantado?
SENHORA – Sim, tive…bom…na tua idade! Os príncipes que todas as meninas têm nesta idade.
MENINA – Era o mesmo para todas?
SENHORA – Não…cada uma tinha o seu.
MENINA – Pois, na vida real, também cada uma tem o seu príncipe…não é só um para todas…
SENHORA (murmura e ri) – Santa inocência…era bom que assim fosse, filha…! (alto) Sim, claro que sim. Ainda bem que é assim, não achas?
MENINA (sorri) – É. Gostava de ter encontrado o seu príncipe?
SENHORA – Bom…não é essencial, mas se aparecesse agora, até o aceitava, se fosse boa pessoa, claro.
MENINA – Pois. Mas sente-se sozinha?
SENHORA – Sim…tenho muitas amigas, mas sinto-me um pouco sozinha!
NARRADORA – As duas continuam uma conversa muito animada e riem. Chega a Avó da menina, mais nova que a senhora, e cumprimentam-se.
AVÓ – Desculpe…a minha neta está a incomodá-la?
SENHORA (ri) – Nada disso! A sua neta é maravilhosa…linda! Quem me dera que toda a geração futura fosse com ela… tem aqui uma pedra preciosa rara. Deve ter muito orgulho na menina, e parabéns a si, pela educação que lhe dá, pelos valores que lhe transmite. Esta menina mudou o meu dia de aniversário…até rejuvenesci e ganhei saúde com o carinho dela. Já estivemos aqui a conversar, ela é uma companhia de sonho. Deliciosa!
AVÓ (orgulhosa) – Sim! (sorri) É uma boa menina. Olhe, venha lanchar connosco. É o seu aniversário, faço questão de lhe pagar o lanche.
SENHORA – Ai, não…eu fico envergonhada…pago eu! Então…
AVÓ (sorri) – Nada disso, pagamos nós...é o nosso presente.
SENHORA (ri) – Bom, não nos vamos zangar. O melhor presente, a sua neta já me deu…! Mas está prometido um lanche na minha casa um dia destes…por favor…não diga que não.
AVÓ (sorri) – Está bem!
NARRADORA – As três lá vão, a menina dá a mão à senhora, e a senhora mete o braço na Avó. Conversam alegremente e riem. Pelo caminho, a menina oferece uma flor à senhora, antes de ir embora e prometem encontrar-se outra vez no dia seguinte. E assim foi. Nos dias seguintes, a senhora passou a ser um elemento da família da menina, com encontros e visitas todos os dias, lanches, conversas agradáveis, e a senhora ensina muitas coisas giras e novas à menina e à Avó. A senhora nunca mais ficou triste, e ganhou saúde, energia e alegria. Um gesto de carinho de uma criança pode mudar a saúde e o estado de humor de uma senhora com muita idade. E vocês dão pequeninos gestos de carinho aos vossos idosos?

FIM
Lálá 
5/Fevereiro/2014






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