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sexta-feira, 25 de março de 2016

A boa acção (Adolescentes e adultos)

desenhada por Lara Rocha 

NARRADORA - Era uma vez uma menina Índia que um dia se apaixonou por um turista que foi visitar a sua aldeia, mas era um amor impossível, pois o turista tinha namorada, e o chefe da tribo e os seus pais não autorizavam o namoro com gente que não fosse da mesma raça. A sua paixão foi considerada uma asneira, e por isso recebeu um castigo dos pais. A Índia bem tinha explicado que não tinha culpa, e não mandava no seu coração, mas não adiantou porque não entenderam já que a sua cultura ditava assim. A índia não entendia porque é que tinha de receber castigo por se apaixonar, e quem fazia tanto mal, não tinha castigos. Ela estava muito triste, mas tinha mesmo de cumprir o castigo, pois caso contrário receberia muitos mais. O seu castigo era fazer uma boa acção…transformar essa paixão em alguma coisa boa para outros que precisavam. Índia, resmunga muito zangada:
ÍNDIA – Maldito cupido…se te apanho arranco-te essas penas todas…uma por uma, e faço-te engolir essas setas!
CUPIDO – Ai, que violência…pareces uma trovoada! Correu-te mal a vida?
ÍNDIA – Correu…muito mal mesmo! E a culpa é toda tua.
CUPIDO – Minha? Porquê?
ÍNDIA – És um trapalhão…não vês para onde e para quem atiras as setas…desgraçado! Tinhas alguma coisa que atirar setas para mim? Estás farto de saber que eu só me posso apaixonar por Índios, e fazes-me apaixonar por um turista, já com namorada…? Sinceramente!
CUPIDO – Óh! Não gosto nada de ouvir essas coisas! Eu não sou um anjo do mal, sou um anjo do bom.
ÍNDIA – Um anjo do bem? Essa tem piada…
CUPIDO – Sim, eu não contribuo para a guerra. Não sou o anjo da guerra…!
ÍNDIA – Provocas muitas vezes guerra…só fazes asneiras.
CUPIDO – Óh, não digas isso! Porque é que eu provoco guerras?
ÍNDIA – Porque fazes as pessoas apaixonarem-se por quem não devem!
CUPIDO – Ei, estás a exagerar…
ÍNDIA – Estou a exagerar? Então vai ver por aí…
CUPIDO – Eu atiro as setas para semear o amor, mas não escolho as pessoas em quem acerto, nem por quem se vão apaixonar.
ÍNDIA – Isso é muito mau!
CUPIDO – O amor é lindo…
ÍNDIA – Cala-te…é lindo! Só se for para ti.
CUPIDO – O amor não é só essa forma que estás a pensar…de casal…há o amor dos pais, dos irmãos, dos amigos, dos primos…dos animais…o amor pela natureza, pela vida, pela bondade…pelas crianças…pelo mundo…e por muito mais.
ÍNDIA – Dessas coisas…gostamos…
CUPIDO – Uns só gostam, mas outros…amam mesmo!
ÍNDIA – Estou de castigo por tua causa.
CUPIDO – Estás de castigo? É porque te portaste mal…
ÍNDIA – Não. Estou de castigo, graças à tua fraca pontaria.
CUPIDO – Que crueldade! O que é eu tenho a ver com a tua asneira? Eu não ta mandei fazer, nem te obriguei a fazer…
ÍNDIA – Fizeste-me apaixonar por quem não devia, e por causa disso, estou de castigo!
CUPIDO – O quê? Nunca outra vi…ficar de castigo por causa de estar apaixonada?
ÍNDIA – É verdade!
CUPIDO – Como pode ser?
ÍNDIA – A minha família não deixa.
CUPIDO – Mas eu não atirei a seta para a tua família, atirei para ti.
ÍNDIA – Com tanta gente, tinhas que atirar para mim…porquê?
CUPIDO – Desculpa, não vi.
ÍNDIA – Podia-me ter apaixonado por outro qualquer, menos por aquele!
CUPIDO – Não entendo!
ÍNDIA – Nem eu.
CUPIDO – A paixão não é nenhum castigo…
ÍNDIA – Também não é um prémio, se não somos correspondidos, de que adianta estarmos apaixonados?
CUPIDO – Amiga…é porque tens de aprender alguma coisa com isto!
ÍNDIA – Aprender? A sofrer?
CUPIDO – Óh, não. Não quero que sofras!
ÍNDIA – É impossível não sofrer.
CUPIDO – Por favor, não julgues que sou mau! Nem que a paixão é um castigo! A paixão faz bem à saúde.
ÍNDIA – Sim, isso é tudo muito bonito, mas…e a dor do desgosto, de não sermos correspondidos?
CUPIDO – Talvez isto seja para aprenderes a ver o amor noutras formas de manifestação…se calhar…é para cresceres, antes que apareça o verdadeiro amor!
ÍNDIA – Para crescer…?! Para sofrer! Não se cresce nada a sofrer…
CUPIDO – Cresces depois.
ÍNDIA – Porque não atiraste o raio das setas para os maus? Este castigo devia ser para quem faz realmente mal.
CUPIDO – Não te preocupes…mais cedo ou mais tarde…eles terão verdadeiros castigos. Tantos que desejarão ter este teu castigo…
ÍNDIA – Porquê?
CUPIDO – Porque não é nenhum castigo estar apaixonado…mesmo que o outro não sinta o mesmo. Os maus…têm castigos muito piores! Esses são sempre infelizes…não sabem dar amor…não conhecem nenhuma forma de amor, e gostariam de ter conhecido! De certeza que não faziam tanto mal.
ÍNDIA – Porque não atiras setas para eles?
CUPIDO – Porque eles não deixam.
ÍNDIA – Mas eu também não te dei autorização e tu atiraste!
CUPIDO – O deles é impenetrável com tanta maldade…não há lá ponta de amor.
ÍNDIA – E nos outros, há amor?
CUPIDO – Sim, nas pessoas boas há!
ÍNDIA – Então não mereciam sofrer.
CUPIDO – Certo…mas as setas só despertam esse amor que há nos corações…
ÍNDIA – E nos corações maus?
CUPIDO – Nos corações maus, não desperta, porque nem sequer entram…com a barreira da maldade.
ÍNDIA – É muito injusto!
CUPIDO – Vá lá…força…tu vais vencer.
ÍNDIA – Não sei como vou vencer com esta dor…tira-me essa porcaria de seta que me mandaste.
CUPIDO – Não posso!
ÍNDIA – Como não podes?
CUPIDO – Não sei onde está a seta!
ÍNDIA – Não posso acreditar…
CUPIDO – Desculpa! Tu ainda és uma criança…ainda tens muitos rapazes para conhecer, e muitos desgostos para enfrentar, mas vai ser assim que te vais tornar uma pessoa melhor.
ÍNDIA – Uma pessoa melhor, a sofrer?
CUPIDO – Um dia vais entender o que estou a dizer. Não desanimes.
ÍNDIA – Que ódio que tenho de ti! Apetece-me desfazer-te.
CUPIDO – Eu entendo-te.
ÍNDIA – Não entendes nada. Ai de ti que me atires outra porcaria de seta…
CUPIDO – Ei…calma! Não leves isto tão a sério. Quando ele tiver de aparecer, vai aparecer…até lá…muitos vão cruzar o teu caminho…uns correspondidos, outros não! Vai ser bom para cresceres…diverte-te! Ainda és uma criança.
ÍNDIA – Não devias atirar setas às crianças.
CUPIDO (ri) – São setas de amor a brincar…é bom para todos.
ÍNDIA – Vai dar uma volta…e não me apareças tão cedo…trapalhão.
(Cupido sai a rir. Índia abraça a pantera negra de estimação, a chorar, que está confortavelmente deitada debaixo de uma árvore enorme).
PANTERA – A vida é mesmo injusta não é, filha?
ÍNDIA – É. Odeio ser Índia.
PANTERA – Óh, não te lamentes…! Ainda tens muito para viver.
ÍNDIA – Mas porque é que eu tenho de ser castigada por estar apaixonada, por alguém que não é da minha raça?
PANTERA – Sim, entendo-te…também não acho justo…mas há coisas que temos de respeitar e pronto, mesmo que isso não tenha sentido para nós.
ÍNDIA – E porque é que quem faz tanto mal, não é castigado? Estar apaixonado é algum crime?
PANTERA – Claro que não…estar apaixonado, é normalíssimo, até deveríamos receber um prémio sempre que nos apaixonássemos!
ÍNDIA – Um prémio?
PANTERA – Sim. O estar apaixonado faz o nosso coração bater mais forte, ganhamos mais vida, mais luz…abrimo-nos mais! Além disso…estar apaixonado é muito melhor e muito mais saudável para o coração do que a raiva ou o ódio.
ÍNDIA – Sim, deve ser…mas agora estou fechada. Ai…acho que esta dor nunca vai passar!
PANTERA (ri) – É claro que vai passar…amanhã já não te vai doer.
ÍNDIA (baixinho) – Óh…não passa assim tão rápido, pois não?
PANTERA (baixinho) – Bom…eu…não quero estar a falar disso agora…um dia, quando fores maior, vais saber! (suspira)
ÍNDIA (baixinho) – Tu também tiveste estas dores?
PANTERA (baixinho) – Claro que tive. Todos os seres humanos, índios ou não…e animais têm desgostos, amores não correspondidos, paixões passageiras…tudo faz bem para crescer.
ÍNDIA – E crescer dói assim tanto?
PANTERA – Dói…ninguém disse que crescer é fácil.
ÍNDIA – Porque temos de crescer?
PANTERA – Porque…não podemos ficar sempre na mesma.
ÍNDIA – Porque é que não podemos escolher por exemplo ser sempre bebés?
PANTERA – Porque…isso não é possível! Nascemos, crescemos e desenvolvemo-nos, para aprendermos e para muitas mais coisas. Temos de crescer!
ÍNDIA – Porquê?
PANTERA – Porque somos de carne e osso, e estamos neste mundo para alguma coisa!
ÍNDIA – E para sofrer.
PANTERA – Também.
ÍNDIA – Então eu nunca quero crescer!
PANTERA (ri) – Podes ser sempre criança mesmo grande, mas olha que até as crianças sofrem.
ÍNDIA – As crianças sofrem…? Mas isso é injusto!
PANTERA – Pois é, mas é a realidade.
ÍNDIA – Não quero crescer, nem quero sofrer.
PANTERA – Ninguém quer! Mas às vezes tem de ser.
ÍNDIA – Porquê?
PANTERA – Para aprendermos e para nos tornarmos mais fortes.
ÍNDIA – Mas com a tristeza e a dor, enfraquecemos!
PANTERA – Sim, enfraquecemos temporariamente, mas tornamo-nos mais fortes.
ÍNDIA – Ai é?
PANTERA – É. Quando o coração se cansa!
ÍNDIA – E o coração cansa-se?
PANTERA – Sim, cansa-se de sofrer, de estar ferido, e de ser magoado.
ÍNDIA – E o que é que nos acontece quando ele se cansa?
PANTERA – Quando ele se cansa, nós ficamos melhores outra vez! Enquanto ele está magoado, andamos tristes e enfraquecemos.
ÍNDIA – E como é que ele se cura?
PANTERA – Umas vezes cura-se com as lágrimas que nos caem dos olhos, outras vezes, só com o passar do tempo é que ele se cura. Só não se cura com outra pessoa, que tentamos arranjar para preencher! Embora toda a gente ache que se cura um desgosto com um novo amor, não é bem assim…o coração precisa de tempo para se curar…não é de um dia para o outro.
ÍNDIA – Como é que sabes?
PANTERA – Ora essa…acontece com todos os seres vivos. Faz parte. Um dia, quando fores mais madura, entenderás o que estou a dizer.
ÍNDIA – Porque é que tu não tens namorado?
PANTERA – Olha…porque…ainda não apareceu!
ÍNDIA – E achas que ele vai aparecer?
PANTERA – Sim…talvez sim, talvez não…
ÍNDIA – E porque não vais atrás dele?
PANTERA – Um dia vamo-nos encontrar, naturalmente…não precisaremos de procurar um pelo outro.
ÍNDIA – O teu coração está curado?
PANTERA (suspira) – Bom…o meu coração…ainda não se cansou totalmente!
ÍNDIA – Não?
PANTERA – Não…
ÍNDIA – Porquê?
PANTERA – Porque amei profundamente! E quando se ama profundamente, a dor demora a passar. O coração demora a cansar.
ÍNDIA – Áh! Então é por isso que às vezes ainda ficas triste?
PANTERA – Sim…às vezes ainda fico triste, e ainda choro! Mas…vai passar…! Ainda é recente.
ÍNDIA – Amaste…? Então porque não estás com ele?
PANTERA – Deixei-o livre!
ÍNDIA – Como é que o deixaste livre? Devias prendê-lo…agarrá-lo com unhas e dentes. E as tuas são bem grandes…dá para agarrar.
PANTERA (ri) – Deixei-o livre, porque ele não me amava…gostava muito de mim, mas não como eu…ele era um espírito muito livre, não gostava de se sentir preso! Um dia…depois do último encontro, ele disse que ia atrás da sua liberdade, e eu deixei-o ir.
ÍNDIA – Mas que asneira…se o amavas…
PANTERA – Amar também é isso. É deixar ir…mesmo amando…
ÍNDIA – Mas devias ter ficado com ele, não devias tê-lo soltado.
PANTERA – O amor não é prisão! Não voltou, não tínhamos que ser um só!
ÍNDIA – Ele tinha outra, era?
PANTERA – Talvez!
ÍNDIA – Será que o coração dele também ficou a doer?
PANTERA – O dele…provavelmente não!
ÍNDIA – Mas o teu ficou, e muito…
PANTERA – Foi. Mas não posso fazer mais nada.
ÍNDIA – Como aguentas a dor?
PANTERA – Às vezes, faço dela a minha força…o meu crescimento.
ÍNDIA – Tu ainda cresces? Desculpa…eu vejo-te na mesma.
PANTERA (ri) – Não estou a falar de crescer em altura…estou a falar de crescer em bondade, em expansão interior.
ÍNDIA – Áh! Acho que estou a perceber. E se um dia ele voltar?
PANTERA – Se tivermos de ser um só…ele vai voltar, se não…eu sigo o meu caminho, e ele segue o dele.
ÍNDIA – Achas que ele pode voltar?
PANTERA – Tudo pode acontecer.
ÍNDIA – E se ele voltasse, tu ficavas com ele outra vez?
PANTERA – Nunca podemos dizer que nunca, mas…acho que seria tarde demais.
ÍNDIA – E se continuares a amá-lo?
PANTERA – Nunca mais o amarei da mesma maneira!
ÍNDIA – Porque não?
PANTERA – Porque…todos mudamos. Eu libertei-o, e a chama foi apagando, porque não foi alimentada. Talvez pudéssemos ser amigos, ou talvez não…não sei o que poderia acontecer. Isso…só o coração é que poderia responder.
ÍNDIA – E quando é a que a tua dor vai passar?
PANTERA – Não sei! Quando o coração se cansar. Bem, mudando de assunto…
ÍNDIA – A tua dor está a aumentar?
PANTERA – Sim, está.
ÍNDIA – Desculpa!
PANTERA – Não faz mal. É normal. Isto passa já. (suspira) Já tens alguma ideia do que vais fazer por alguém?
ÍNDIA – Não!
PANTERA – Posso dar uma sugestão?
ÍNDIA – Sim, por favor! É que não sei mesmo…
PANTERA – Há muita gente com fome, na aldeia aqui ao lado. Podias cozinhar para eles…que achas?
ÍNDIA – Cozinhar?
PANTERA – Sim.
ÍNDIA – Áh! Boa ideia…! Queres acompanhar-me?
PANTERA – Está bem.
NARRADORA – As duas metem pés ao caminho, e apanham os melhores alimentos que entram nos seus terrenos. A pantera leva um grande pote de ferro pendurado pelos dentes, para cozinharem, e a água arranjam na aldeia vizinha. Ao chegarem à aldeia, ninguém se apercebe de nada, mas de repente, todos despertam com um aroma de manjar dos deuses. A pantera amontoa folhas de palmeiras, para pôr a comida. Todos os habitantes circundam a Índia e a pantera, muito intrigados, e um pouco a medo.
PANTERA (a sorrir) – Venham, venham…isto é para vocês. Comida…
NARRADORA – Primeiro olham um pouco desconfiados, mas como a fome aperta, aceitam o que a pantera serve, e devoram tudo num abrir e fechar de olhos. Todos aplaudem e elogiam as cozinheiras, põem-se de joelhos diante das duas, e agradecem. Gostaram tanto delas, que lhes pediram para voltarem. As duas prometeram voltar todos os dias para cozinhar para essas pessoas da aldeia vizinha que não tinham quase nada. A Índia e a pantera sentem-se muito felizes, e a Índia não pensou mais no turista. Como prémio desta boa acção, uns tempos depois, aparece um belo Índio que se apaixona pela Índia, e ela por ele. A pantera tinha razão! A dor e o desgosto da Índia desapareceram rapidamente, e ela sentia-se muito feliz. Acham que estar apaixonado é um castigo, ou merece castigo? Se fossem vocês a fazer uma boa acção, o que fariam?

FIM
Lálá
(21/Janeiro/2014)

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