Número total de visualizações de páginas

sábado, 23 de outubro de 2021

pés, caminhos, reflexão

     

quadro pintado a óleo por Lara Rocha 


       Alguma vez pensamos nos pés? Sim, quando eles doem, quando temos as unhas encravadas, quando as cortamos, quando os sapatos nos fazem bolhas, quando nos apertam, quando nos cansam, quando os lesionamos, torcemos, partimos. 

       Temos pés, e é bom senti-los, é bom sentir que estão a doer, que estão quentes ou que estão gelados. 

       É sinal que temos pés, e mais ou menos perfeitos temos pés. Podemos senti-los. Mesmo a doer, podemos senti-los, e é bom porque eles podem levar-nos a todos os lugares onde quisermos. 

       Mas, e os que não têm pés, ou que não podem mexe-los? Nem se lembram deles, não podem caminhar, nem correr. Os que têm pés e não conseguem mexe-los, nem senti-los, não sentem nem frio, nem calor nem dor? Será que pensam nos pés? 

        Quando caminho, quando toco os pés no chão…sinto o chão que piso…sinto a terra…o seu calor e o seu frio…sinto as minhas pulsações e as pulsações da Terra…Umas vezes serenas, outras vezes aceleradas.

Caminhamos, a correr, com os pés assentes no chão, mas nem percebemos que o fazemos. Mais rápido, mais devagar. Damos os pés como adquiridos, como partes do nosso corpo, mas andamos muitas vezes sem sentir que estamos a andar. 

Mexemos os pés, mas não nos lembramos que temos pés, nem para que servem, muito menos que são eles que nos permitem fazer mil e uma coisas, dentro e fora de casa, sozinhos e uns com os outros.

Mexemos os pés, mas será que sentimos realmente o chão onde pisamos? A maioria das vezes penso que não, porque vamos a pensar noutras coisas, a resmungar da pressa que levamos, ou dos atrasos, dos contratempos, e nos problemas para resolver. 

Nós lá, em cima...e os nossos pés, no chão, a levar-nos por muitos caminhos diferentes, que se pensarmos bem, nem sabemos quais são na realidade. Vamos de forma automática. Os pés levam-nos, o que interessa é lá chegarmos.  

Sorrimos enquanto caminhamos? Uns sim, outros não, umas vezes sorrimos enquanto caminhamos, porque nos lembramos de alguma coisa agradável, ou porque aceleramos os passos para chegar com entusiamo onde queremos, para nos encontrarmos com quem gostamos, fazer recados, ou simplesmente...passear! 

Passeamos, ou andamos de forma automática, sem pensar nos pés, e sem ver o que realmente temos de bom à nossa volta? Alguma vez pensaram que ao andar, podemos sentir, ou imaginar...o sorriso e a felicidade da Terra, o sol…a energia que nos percorre todo o corpo…e invade o nosso ser, a nossa mente?

Também acho que podemos sentir, ao caminhar com os nossos pés e com todos os sentidos apurados, as lágrimas da Terra, quando chove…a sua doença…o seu rosto de dor, de cansaço…a sua desilusão por tanto mal que lhe fazemos, em troca de tanta coisa boa que ela nos dá, quando está nublado, ou cinzento! 

Já sentiram as lágrimas da terra? Já, e nem repararam...quando chove! Porque só reclamamos que é uma tristeza, é uma chatice estar a chover, que fica tudo cinzento e triste, que parece que as pessoas adormecem, que seca...! Parece noite todo o dia. 

E os nossos pés, lá continuam, firmes, resistentes, às vezes o dia todo encharcados em água e resistem, porque recolhem, respeitam e tentam transformar as lágrimas da terra em coisas boas! 

Os nosso pés aguentam! E os caminhos que percorremos com eles encharcados também aguentam, o nosso peso, a nossa resmunguice, o nosso desagrado, o nosso cansaço. Ai, se os caminhos falassem! 

Enquanto os nosso pés percorrem os caminhos, nem olhamos para eles, ou se olhamos é para ver se não pisamos dejetos de animais ou se encontramos dinheiro. Não pensamos nas pessoas que deram no duro vários dias ou meses a construir os passeios que nos tornam as caminhadas mais seguras, nem o que eles sofreram. 

Às vezes, a Terra é o reflexo do que sentimos, ou seremos nós, que nos refletimos na Terra…? Penso muitas vezes nisso. Não há respostas corretas…tudo depende da perspetiva!

Sinto a raiva da Terra…nas buzinas e na poluição, nas guerras, nos gritos, na impaciência, e a paz! Enquanto caminho sinto o meu corpo e os meus ossos…a minha respiração. 

Sinto a respiração da Natureza e da Terra, as suas pulsações que se fundem e confundem nas minhas, as suas carícias nas brisas e as suas explosões de mau humor nas ventanias.  

Sinto vida, e sinto-me viva enquanto caminho, sinto a vida da Terra…em tudo o que mexe diante dos meus olhos, e nas coisas mais simples. Sinto a magia e o recomeço…o fim…e o renascimento…

Às vezes, enquanto caminho…os meus pés fazem-me caminhar por outros locais, onde sinto outras emoções, onde brinco com seres mágicos, danço, rio, converso e choro. Tenho os meus pés biológicos, e os meus pés imaginários. 

Os meus pés imaginários fazem-me caminhar por florestas, onde sinto a erva, e a Terra fofa, onde abraço árvores, e onde me deito à sombra…a apreciar os sons que a floresta me proporciona…o canto dos passarinhos, o sussurrar dos rios, o lamurio das águas, a delicadeza das flores…onde escuto o murmúrio do vento que tal como um verdadeiro cavalheiro, aparece tímido entre os pinheiros…

São experiências das quais me orgulho por ter tido a oportunidade de viver e experimentar, mas muitas crianças não têm essa experiência. Por isso, os meus pés reais às vezes vão pelos caminhos e relembram outros caminhos por onde já andaram! Uma defesa, possivelmente, para não reparar tanto no que há de menos bom, e mau, feio à nossa volta. 

Outras vezes…os meus pés imaginários…fazem caminhar por praias paradisíacas, onde sinto a areia, a água a lavar-me a alma, e a atravessar a pele…Outras vezes sinto nuvens debaixo dos pés, enquanto caminho…e picos…e vidros…e paus, e pedras…mas estou calçada…!

Enquanto caminho, sinto toda a essência da terra, e tudo o que esta me oferece. Quando uso sapatos novos, para um dia especial…sinto…sinto a insatisfação dos meus pés, por algo que não estão habituados, e às vezes pelo desconforto, mas também alguma vaidade neles…! 

Ainda mais, e apesar de adorar andar descalça, quando me lembro que muitos povos onde não há sapatos ficaram na maior felicidade por ter sapatos, nem que os magoasse no início. Por isso, apesar da dor e do desconforto, é bom sentir isso! É sinal que temos pés e sapatos. 

Quando olho para trás…para os caminhos por onde os meus pés me levaram…eles já caminharam por muitos tipos de caminho, mas saíram sempre intactos, embora cansados, desgastados, doridos, torcidos...aguentaram, seguraram-me…e continuam a fazer muito por mim. 

Levam-me onde eu quero! Estou orgulhosa deles…e mais tortos, menos tortos (pé muito raso )…são meus. São uns verdadeiros guerreiros, como eu, caminharam comigo por caminhos de luz, de trevas. 

Sofreram, quase desistiram, outras vezes saíram de caminhos mesmo com medo do desconhecido, voltaram atrás, andaram para a frente, recuaram, pararam, viram outros caminhos, seguiram-nos, uns com coragem, outros para ver onde iam dar. 

Os meus pés percorreram caminhos que gostaram, e outros que não gostaram, mas estiveram sempre lá, e estão! Cresceram comigo, e fizeram-me crescer como pessoa. Continuam a levar-me por caminhos que mal começam, acabam, e voltam para trás, outros caminhos onde sentem muito medo, mas vão, e até descobrem coisas interessantes, outros são escuros, e eles não vão. 

Às vezes vão por caminhos que parecem luminosos no início, mas lá para o meio e fim não têm saída, há que voltar para trás pelo mesmo sítio, e não descobrem nada! Os meus pés às vezes percorrem caminhos que os iludem, e desiludem. 

Sim, é mesmo verdade...não raras vezes…o corpo anda, e a alma fica parada, perdida num sítio cheio de casas e ruas chamadas sentimentos. Às vezes o corpo anda vazio, pela rua, mas o seu morador ficou noutro sítio, muito …muito longe…

O corpo anda apenas comandado por um piloto automático, mas o seu interior, não leva bagagem…às vezes, ainda bem que não leva, pois, se a alma saísse connosco, não fazíamos nada, não éramos nada…imagino o que as almas encontram nessas ruas! Às vezes não é bonito.

Gosto muito de areia fresca nos pés descalços, nas noites, e nos dias de Verão…e de Inverno…adoro andar descalça. Andar para trás…não gosto, mas às vezes, ando para trás sem querer, procuro logo andar para a frente, e os meus pés teimam em não avançar, nem recuam, apenas param para ver o que é melhor.

Andar para trás, estar parado, não é bom, dói, faz sofrer, chorar, mas às vezes também é preciso pôr os pés a descansar, sem percorrer outros caminhos a não ser os da luz, os da paz, os do silêncio, que nem sempre é de ouro e em algumas situações, o silêncio mata. 

Os pés biológicos, andam a par com os pés da cabeça, e a nossa alma caminha com muitos pés diferentes…umas vezes, caminha com pés de lã…outras vezes, com pés de algodão. 

Umas vezes, os pés são de gelo…outras, manteiga…temos pés de pedra, chumbo, prata ou ouro…outras vezes andamos com pés de açúcar, e com pés de passarinho. Pés de bailarinos, e pés de vidro. 

Outras vezes, somos caminhantes ao sabor das nossas emoções. Umas vezes, são pés que percorrem caminhos de sede, de medo, de segurança ou insegurança. Caminhos de vontade, coragem, determinação e superação. 

Caminhos iluminados pela felicidade e realização, caminhos sombrios, de tristeza, dor e cansaço…também são feitos de espuma do mar, de vento, de veludo…às vezes…nem reparamos de que são feitos os nossos pés…só reparamos que eles existem, e deixamos que eles nos conduzam!

Independentemente de que sejam feitos os meus pés, ou no que eles se transformem, e dos caminhos que me levam, eu agradeço aos meus pés, porque eles funcionam, estão vivos. 

Já pensaram na importância dos nossos/ vossos pés? 

Por que caminhos vos levam? 

De que são feitos os vossos pés? 


                                                                FIM 

                                                             Lara Rocha 

                                                            (Abril/2010)  


Sem comentários:

Enviar um comentário

Muito obrigada pela visita, e leitura! Voltem sempre, e votem na (s) vossa (s) história (s) preferida (s). Boas leituras