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domingo, 25 de outubro de 2020

Os grilos da minha cabeça (monólogo)

      

                                 Foto de Lara Rocha 


      Já alguma vez passaram pela experiência até divertida, relaxante, agradável de estar ao ar livre, numa noite quente, cheia de estrelas por cima, instalados num lugar silencioso, envolto em mistério, composto por escuro, e pelo som de grilos, cigarras, os mochos, as corujas e outros, a cantar? Espetacular não? 

        É. Este cenário fez parte da minha infância, adolescência e idade adulta. Eu até gostava, principalmente quando saía do barulho e da agitação da cidade, dos computadores e carros. Era quase um ritual místico, espiritual para mim e para a minha família. Quase como se estivéssemos a ouvir anjos a cantar em coro, sem os vermos. Acho que isso despertava a nossa imaginação, sabíamos que eram insetos, mas como não os conseguíamos ver, talvez os imaginássemos de forma diferente.

        Adorávamos ouvir os grilos e as cigarras, às vezes as rãs e sapos a coaxar nos ribeirinhos com água por onde passávamos quando passeávamos à noite, e o próprio som da água a cair no escuro, era lindo! Outras vezes, os sons da água, dos insetos misturados com o vento que mexia as folhas, ainda tornava o ambiente mais fantástico, quase a tocar o suspense. Não sabíamos o que ia aparecer...quer dizer, nunca apareceu nada! 

        Mas toda essa magia que ainda paira as minhas memórias, deixou de ser assim tão especial, a partir do momento em que...os grilos e as cigarras cantoras, decidiram apropriar-se indevidamente do terreno onde escolheram, quer dizer, onde achavam que tinham direito de se instalar. 

        Que grandessíssima lata! Um terreno que só era povoado por cera e por outros sons, e tenho que as aturar? Mas era só o que faltava. Já não estou nesses terrenos por onde andei, a ouvi-los, mas é como se a minha cabeça tivesse ficado lá, ou como se estivesse viciada nesses sons! 

        Oiço grilos! Oiço-os por todo o lado, a toda a hora, de dia e de noite! Perseguem-me, não me deixam sossegada, só deixo de os ouvir quando durmo. Não vejo um único, só os oiço. Um coro irritante de grilos a cantar nos meus ouvidos ou na minha cabeça. 

        Como pode ser? Acho que acabei de descobrir de onde vem. Mando mails com propostas de trabalho, concorro por conta própria, proponho parcerias com colegas, e não tenho uma única resposta. Dia, após dia, semana após semana, um mês atrás do outro. Silêncio...é a única resposta que recebo do outro lado. Só cortado pelos malditos grilos que até parecem cantar com o dobro do entusiasmo. 

        Portas fechadas, janelas fechadas, portões fechados para mim! Não há trabalho. Lá vem os malditos grilos fazer festa. Como se não ter trabalho fosse motivo de festa. Eles é que nunca ficaram sem trabalho, é por isso que cantam dia e noite na minha cabeça. Claro, ao contrário de mim estão felizes! 

        Ora pois, compreendo, até eu, se tivesse respostas, em vez de silêncios que para mim são a mesma coisa que «nãos», estaria feliz, e cantaria com gosto. Os grilos até têm sorte, andam felizes o dia todo, levam uma vida relaxada, não têm desilusões, nem desgostos, não recebem «nãos», nem silêncios. Só me infernizam as noites e os dias, sempre que há mais silêncio. 

        Estúpidos grilos. Calem-se! Invejo-vos! Sim, até gostava de ser grilo só por um dia e para poder azucrinar as cabeças dos que me dizem «não», dos que se esquecem de me responder, dos que me fecham portas atrás de portas. 

        Gostava que os que me dizem «nãos», com  palavras ou com indiferença que ainda me custa mais a aceitar, e silêncio, experimentassem, como é viver com grilos irritantes dia e noite, sem sequer os ver. E quanto mais os mando calar, mais eles cantam, é mesmo gozar de fininho! 

        Quando disse que ouvia grilos, todos se riram na minha cara. Disseram-me que eu estava louca, a delirar, que estava a ouvir a mais, ou o que é que eu tinha andado a fumar. Pois, se o fumar os calasse até experimentava, mas eles podem gostar de fumar, ter esse vício, ou até gostar da experiência, e querer repeti-la. Depois então é que não me largavam! 

        Como eu era feliz, sem estes malditos grilos. Até gostava de apreciar o silêncio e ouvir o som dos grilos, das cigarras quando ia de férias no Verão para o campo e para a praia! Mas tudo ficava em silêncio e eu dormia embalada por esse coro. Quando ia dormir, toda a bicharada ficava fora da porta.

        Mas a minha apreciação e relação com grilos e cigarras, mudou desde que se lembraram de fazer morada nos meus ouvidos e na minha cabeça. Não sei como se atreveram, devem ter ficado tão convencidos por eu os apreciar, que não me largaram mais, acharam que deviam retribuir-me a atenção que lhes dei, infernizando-me as noites! 

        Já os ameacei que os punha fora porque não pagam renda e ocuparam o espaço indevidamente. Não adiantou nada, parece que ainda foi pior! Fui ao médico, para ver se eles estavam mesmo lá, coisa que eu acreditava ser muito improvável, para não dizer impossível, porque sei que isso só acontece nos desenhos animados. Mas nos desenhos animados, tal como entram no corpo dos bonecos, também saem, só que os meus, pareciam ter entrado e não saiam. 

        Obviamente, o médico viu os ouvidos e não estava lá grilo algum. Nem um, quanto mais um coro. Mas eu ouvia-os. Isso tinha a certeza. Mandou-me para o médico psiquiatra, que me sugeriu não dar importância aos grilos, ou cantar com eles; para pensar noutras coisas, e receitou um calmante. 

        Ia pensar noutras coisas? Que coisas? Sem trabalho...só se fosse pensar em coisas más, mas pelo que ele disse, as coisas más ainda os alimentam mais. Era impossível, e ainda é, não me centrar neles, com o barulho que fazem, e eu sem poder controlá-los. Ele falava, porque não era quem os aturava. 

        Mesmo assim, abençoado calmante, pensei eu, toda satisfeita, quando tomei e durante umas boas horas não ouvia esses malditos grilos. Só que...passava o efeito e lá vinham eles outra vez! Que inferno! Pelo menos enquanto não os ouvia, tinha sossego. 

        Fui ao otorrino. Caiu-me tudo! Quase explodi com o que ouvi. Os grilos da minha cabeça, e dos  meus ouvidos, eram para viver comigo! Não acreditei, o Dr. só podia estar a gozar! Eu já não os podia aturar e ia ter que viver com eles? Como assim? E quê? Tinha que lhes oferecer um cafezinho, almoço, jantar e quarto, sem pagarem, sem contribuírem com nada?! Não queriam mais nada. É que nem boa companhia são! 

        Pois, mas, ou aprendo a viver com eles, e tento negociar com eles, para me incomodarem menos, ou aturar mil campos com grilos e cigarras a toda a hora a cantar! Sempre será melhor habituar-me a eles, ou pelo menos fazer as pazes e não stressar, para ver se não dou tanto por eles! 

        Ainda por cima, sempre que eu stressasse, eles cantariam mais alto, e foi mesmo isso que aconteceu! Os malditos cantam em coro, sempre que me irrito, cantam mais baixo com medicamentos e quando estou mais calma, ou mais ocupada, mais feliz, mas não saem dos meus ouvidos. 

        Nunca me imaginei a viver com grilos e cigarras, mas o médico disse que não tem cura! É um estrago de tanto stress. Claro, faz todo o sentido, stress de tantos «Nãos»; diretos e indiretos, silêncios, portas fechadas, umas atrás das outras! 

        Pelo menos os meus grilos não são filhos da esquizofrenia ou outros problemas, como inicialmente me disseram que podia ser, porque causam alucinações, até eu cheguei a pensar que fossem alucinações de saudades desses tempos, mas não. 

        Os que sofrem de esquizofrenia e outros problemas mentais que causam alucinações, também têm que viver com essas vozes desconhecidas que lhes dão ordens, ou que as insultam. Que pesadelo, já estes não são fáceis de aturar...o psiquiatra também pensou que fosse o meu caso, mas percebeu que não. Felizmente, acho que então é que enlouqueceria. 

        Não gosto destes grilos, odeio-os, tanto como odeio os silêncios, as «não respostas», que na verdade são respostas. Não tenho outro remédio senão aceitar e viver com eles, desde que não me infernizem. São como os vizinhos indesejados. 

        Não me livro deles, mas tive de aprender a domá-los, a mandá-los tocar e cantar no raio que os partam, mais baixo, e às vezes dou-lhes veneno que os cala temporariamente, pelos vistos gostam. Se fosse agora, voltava a querer ouvir o som dos insetos, nos campos, não nos meus ouvidos, nem na minha cabeça. 

        Agora a única coisa que posso fazer é idealmente não stressar, no mundo ideal, no mundo real é difícil, mas pelo menos stressar o menos possível. Os meus grilos e cigarras passaram a ser um alarme despertador, que toca para parar e acalmar, mudar de atividade, descansar. 

        Claro que me perturbam, mas passei a vê-los de forma mais familiar, para tentar que não me massacrem tanto! Já que não posso livrar-me deles, tento que se tornem mais toleráveis. O melhor é reconhecer quando estou stressada, e agir para diminuir. Cada um tem as suas criaturas no corpo para viver com elas, ou lutar contra elas, mas na impossibilidade de lutar, o melhor é mesmo aceitar. 

                                                                                FIM 

                                                                            Lara Rocha 

                                                                          25/Outubro/2020

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