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quinta-feira, 8 de março de 2012

A Barquinha envergonhada
                                                        Foto de Lara Rocha 


Era uma vez um parque natural de uma grande cidade, com muito espaço verde, um lago com barquinhos e peixes, bancos e mesas em pedra para se fazer piqueniques, cavalos para montar e uns brinquedos para crianças como baloiços, escorregas e outros.
Os barquinhos do lago são feitos em madeira, pintados com várias cores e a remos. Quando não levam pessoas a passear convivem uns com os outros e conversam. Há uma barquinha que está muito triste, que não gosta dela mesma, por isso decidiu esconder-se atrás de uma árvore. A barquinha muito triste suspira, murmura e desabafa:
- Tenho a certeza que ninguém vai reparar que desapareci. Não sirvo para nada, ninguém me escolhe para passear…porque estou gasta…velha…suja…feia…as minhas cores já quase não se notam…já nem as que se diziam minhas amigas, as outras e os outros que andam por aí reparam em mim. Podiam – me levar para um estaleiro de barcos, e destruir-me, ou...levar-me para a praia, para que o mar me devorasse…podia ser que ele gostasse de mim, ou até que servisse de casa para alguns peixes…! Ao menos lá tinha melhor paisagem, não sofria tanto a ver que ninguém me quer… (p.c.) olhem para aquilo…as outras e outros sempre de um lado para o outro, cheios de gente, toda a gente os quer, claro…estão bonitos…já nem o que toma conta disto quer saber de mim. (p.c.) Se isto fosse perto do mar ou do rio… eu própria ia para lá, e afogava-me. (p.c.) Entregava-me à força da água…que tristeza. Não presto mesmo! (olha para a água, e desata a chorar).
Pobre barquinha…! Mas a sua tristeza vai passar brevemente. Querem ver? Sigam a história. 
Várias pessoas quiseram andar de barco, e a desgraçada da barquinha continuava agoniada, com vontade de desaparecer, atrás da árvore. Um desses barcos estava tão cansado que quase adormeceu com o balanço das águas, e não reparou que vinha o outro de frente rápido com o entusiasmo do trabalho. O barquinho grita-lhe nervoso, muito assustado:
- Ei, ó palerma…acorda…desvia-te…senão deito-te abaixo. Se querias dormir não trabalhavas.
Gera-se a confusão. O barquinho que estava quase a dormir, assusta-se com os gritos e começa a andar desgovernado, a alta velocidade como se fosse a fugir, bate em vários sítios no muro, noutros barcos, e as pessoas caem à água também muito assustadas, aos gritos a pedir socorro, porque o lago não é muito fundo, mas com o susto, algumas pessoas não sabiam nadar, outras sabiam mas ficaram atordoadas.
A barquinha escondida ouve os gritos e aquela confusão toda, e sem pensar duas vezes, vai depressa para junto da confusão, inclina-se e as pessoas agarram-se logo a ela, umas vão penduradas, outras sobem para a barca, e ela arrasta as pessoas para a costa.
Todos estão em terra, sãos e salvos, mas petrificados com o susto. Os outros barcos envolvidos ficam num canto a resmungar e a discutir uns com os outros. Uma senhora grita aliviada:
- Esta barquinha salvou-nos!
         Estão todos de acordo e respondem em coro:
- Sim, foi mesmo…
Todos batem palmas, felizes, acariciam a barquinha, outras pessoas dão-lhe beijos, ela sorri envergonhada e pergunta – se a si mesma.
- Mas, o que é que eu fiz para me baterem palmas, e para estarem com estas coisas…? Eu sou tão feia, estou velha, gasta… deve ser um bando de tolinhos…quem vê alguma coisa de jeito em mim! Eu não valho nada. Uma rapariga ainda assustada questiona-se:  
- Mas…de onde é que ela surgiu…?
         A barquinha responde:
- Claro, nem repararam que eu estava atrás da árvore… eu bem digo que se me afogasse ou se desaparecesse daqui ninguém ia reparar. Se eu fosse nova e bonita como as outras que andam por aqui…tudo era diferente.
         Um rapaz tem a mesma dúvida e pergunta:
- Pois…e quem é que a enviou…?
         A barquinha responde:
- Eu mesma é que apareci…no meio de tantos gritos…! Foi um impulso!
         Uma criança responde muito inocente mas convicta:
- Foi…um anjinho que nos mandou esta barquinha…!
         Outra senhora tem a mesma sensação, mas com algumas reticências e responde:
- Se não foi, ainda parece…
         A barquinha fica deliciada com a resposta da criança e pensa para si a sorrir:
- Ai, estas crianças são uma maravilha…ao contrário dos adultos…elas sabem ser doces no que dizem… santa inocência…que lindos! Por acaso já salvei algumas crianças aqui, mas elas mereciam, e quando eu ainda era bonita, nova… quando reparavam em mim.
         Outra criança ainda está assustada e desabafa:
- Ai, que susto! Que medo…foi uma bruxa má que distraiu o barco e que o fez virar…! Bruxa má, feia…se eu te apanhasse transformava-te numa coisa monstruosa…ainda mais nojenta e mais feia que tu…! Aparece bruxa má, para eu dar cabo de ti.
         A outra criança que acreditava mais no anjinho acrescenta:
- Sim, mas os anjinhos salvam as pessoas boas dos maus…por isso este barquinho que nos salvou venceu a bruxa má. Se encontrares essa bruxa má, eu também dou cabo dela.
         Os adultos riem. O vigilante está preocupado e pergunta:
- Estão…bem…?
         Todos respondem em coro:
- Sim.
         Uma terceira senhora acrescenta:
- Ainda em choque, mas felizmente estamos bem!
         A criança que acredita no anjinho volta a informar o vigilante da sua versão do salvamento:
- Foi um anjinho que nos mandou esta barquinha para nos salvar!
         O vigilante sorri e responde:
- A…ah foii…? Que bonito…!
         As duas crianças discutem uma com a outra, pois cada uma tem a sua crença e quer impô-la ao vigilante, os adultos riem:
- Não foi nada um anjinho…foi uma bruxa má horrível que virou o barco e nós caímos…
- Mas foi o anjinho que nos salvou.
- Mas foi a bruxa má e feia que virou o barco…
- O anjinho foi mais forte!
- Não, a bruxa má é que ganhou, porque se o anjinho fosse mais forte, nós não tínhamos caído à água…
- Foi o anjinho…
- Não foi…foi a bruxa…
- O anjinho…
- A bruxa…
- O anjinho…
- A bruxa…
         O vigilante ri-se e para tentar pôr fim à discussão das crianças diz-lhes:
- Se querem saber nunca vi aqui nem bruxas nem anjinhos…quer dizer…vi algumas pessoas que mais pareciam bruxas, mas só na maneira de vestir…mas eram boazinhas. 
As crianças calam-se espantadas. O rapaz desabafa:
- Realmente, eu nem sou muito dessas coisas, mas a realidade é que não sabemos de onde veio esta barca…apareceu de repente…no meio daquela confusão, de um momento para o outro, ela aparece, agarrámo-nos logo.
         O vigilante informa os visitantes da ida para a reforma da barquinha:
- Esta barquinha… está velhinha, coitadinha…brevemente vai para o estaleiro… já ninguém a quer. Nem andam nela. Só está aqui a apodrecer, e a ocupar espaço.
         A barquinha fica muito mais triste e desabafa consigo mesma:
- Mal agradecido…passeaste muitas vezes em cima de mim com a parvalhona da tua namorada…faziam de mim gato - sapato, e eu nunca vos deitei abaixo, que era o que mereciam. Manda-me de uma vez para onde quiseres, se continuar aqui, vou ter de te ver, e a minha vontade é vingar-me…desfazer-te…grande cabeçudo…pacóvio. Eu não presto, mas tu ainda és pior. E dizias-te meu admirador. Eu sabia qual era a tua admiração por mim…usar-me e deitar-me fora. Palerma!
         O rapaz não aceita este triste fim para a barquinha e faz um pedido ao vigilante:
- Não, por favor não faça isso! Se a vão destruir, eu quero ficar com ela, vou restaurá-la, pô-la bonita e colocá-la lá no meu jardim. Esta barquinha tem muito valor. Não está assim tão má…só precisa de reavivar as cores… quanto custa?
         A barquinha assustada e surpresa questiona-se:
- Outro…? Eu não estou à venda…duvido que este também queira fazer alguma coisa por mim. Deve querer é que eu seja lenha para se aquecer no Inverno. Mas ao menos tira-me daqui…e está a dizer que tenho valor…duvido que me vá pôr bonita e que me ponha no jardim. Se for isso bem vai. Vou com todo o gosto.
         O vigilante não compreende a razão deste pedido e pergunta ao rapaz:
- Para que é que quer um pedaço de madeira, todo podre, velho, sem cor…? Uma coisa tão feia, vai pôr no seu jardim?
         A barquinha nem quer acreditar no que acabou de ouvir e resmunga zangada:
- Grosso… ao menos o rapaz mostra alguma delicadeza e sensibilidade…
         O rapaz reforça:
- Sim, eu quero-a! E só não a ponho num altar porque não posso. Mas quero-a junto de mim. Salvou-me a vida…a mim e à minha namorada… confie em mim, vou pô-la como nova.
         A barquinha suspira e pensa para consigo:
- As pancadas que este rapaz deu, com esta confusão não lhe fizeram bem! Agitou-lhe os miolos… é grave…está num estado…preocupante. É melhor levarem-no ao hospital…ele não está a dizer coisa com coisa.
         O vigilante pergunta:
- A sua namorada não fica com ciúmes?
         A rapariga namorada do rapaz responde:
- Claro que não…que disparate! Se fosse uma mulher, ficava com ciúmes, agora um barquinho…eu concordo com a ideia dele e vou ajudá-lo…
         A barquinha muito surpresa pensa para si mesma:
- Não é só ele que está louco…ela também está! Coitados.
         O rapaz ainda acrescenta:
- Eu pago o que for preciso.
         O vigilante cede ao pedido e responde:
- Pronto…já que tanto insiste! Leve lá a lenha…velha, feia…faça o que entender com ela. Quer levá-la agora?
         O rapaz responde:
- Sim.
         A barquinha responde triste:
- Hoje sei que nunca foste realmente meu amigo. Seu falso. É mesmo o meu fim! Ao menos levavas-me tu…monstro.
         O vigilante pergunta:
- Mas, tem onde a levar?
         O rapaz responde:
- Sim. Cabe no jipe.
         A rapariga acrescenta:
- Sim…
         O vigilante informa:
- Eu vou chamar os meus colegas para o ajudar.
         O rapaz agradece:
- Está bem, obrigada. 
E assim é…o vigilante chama os outros colegas, e transportam a barquinha para o jipe do rapaz, e vão para casa.
Ao chegar a casa, o rapaz retira a barquinha do jipe, e coloca-a na garagem.
A barquinha está confusa! Não sabe se há-de ficar feliz, ou se está com tanto medo que preferia ter sido levada para o estaleiro. Mas o rapaz é delicado com ela.
Ele e a namorada fazem um projeto de reconstrução da barquinha, com desenhos, cores, materiais que vão usar, e o rapaz começa a tratar da reconstrução. A barquinha vê uma lixa na mão dele.
- Uuuuiii…eu não gosto daquilo! Não sei o que é…mas não gosto…é assustador. Lá vou eu… ai, ai, ai, ai, ai…!
         O rapaz e a barquinha têm uma pequena conversa:
- Vais ficar nova e linda…barquinha salvadora.
- Deve ser deve…tem todos a mesma conversa…vais-me desfazer!
- Nem te vais reconhecer…de tão linda que vais ficar…!
- Imagino…! Acho que não me vou querer ver.
O rapaz lixa a carcaça, para tirar a tinta toda. A barquinha está assustadíssima e murmura para si mesma:
- Menos mal que esta coisa não dói.
A seguir, põe um produto para colar as cores dos desenhos que vai fazer. A barquinha está a par de tudo o que está a acontecer e diz assustada:
- Ai, que ele vai-me desfazer… que cheiro horrível é este? O que é que me está a pôr…?
         O rapaz está enojado com o cheiro do produto e resmunga:
- Pfff…que cheiro. Amanhã venho aqui fazer-te os desenhos, ok? Boa noite.
         A barquinha resmunga:
- Ainda por cima vou ficar com esta porcaria…! Um cheiro que é pior do que a madeira húmida…ou podre…eu bem me parecia que não seria bom vir para aqui…
O rapaz vai dormir e a barquinha lá fica e na manhã seguinte, lá aparece na garagem. Passa a mão pela barquinha para verificar se já está seco o produto e para continuar com os desenhos. Pega em tintas, e no projeto que fez, em pincéis e começa a desenhar. A barquinha ri-se pelas cócegas que os pincéis fazem.
A barquinha sorri e diz:
- Há que tempos, eu não recebia um carinho e atenção…nem cócegas… (ri) ai…que bem que sabe!
Após os desenhos, o rapaz reconstrói a barquinha por dentro. Põe umas tábuas novas, põe verniz, e observa atentamente e comenta orgulhoso do seu trabalho e a sorrir:
- Estás perfeita…! Linda, linda… Natasha…anda cá ver!
         Natasha cheia de curiosidade pergunta:
- Já está?
         O namorado responde vaidoso:
- Sim! Estou maravilhado…tenho a certeza que também vais gostar muito!
A rapariga entra, e fica boquiaberta, de tão encantada que está. O namorado pergunta-lhe:
- Que tal?
         A rapariga responde sorridente e orgulhosa:
- Amor… está linda…! Eu…estou sem palavras.
         O rapaz sorridente responde vaidoso:
- Sim. Ficou melhor do que o que eu pensava.
         A barquinha está um pouco desconfiada e receosa, e questiona-se:
- Humm…será que eles estão a dizer a verdade, ou estão só a dizer isso porque foram eles que fizeram…? Claro, não iam dizer mal do seu próprio trabalho. Queria ver-me ao espelho…eu…sinto-me bem melhor, mas será que estou assim tão bonita? Não me consigo ver…
         O rapaz escolhe o sítio onde vai ficar a barquinha e comunica à namorada:
- Vamos pô-la lá fora a secar!
         A namorada concorda e responde:
- Sim, quando estiver seca, pomo-la no laguinho…
         O rapaz está completamente de acordo e acrescenta:
- Sim, vai ficar lá bem.
Eles levam-na para o jardim, e ficam a apreciá-la. A barquinha sente-se observada e pelas expressões deles, pensa que deve estar finalmente bonita…nova…e comenta consigo mesma:
- Estão babados a olhar para mim…! Aquela bestinha quadrada devia ver-me para engolir um sapo de todo o tamanho. Isto, claro, se eu estiver assim tão bonita.
Todas as pessoas que vão a casa deles, reparam na barquinha e elogiam-na, ficam impressionadas com a história do salvamento, e ela começa a sentir-se mais feliz. Põem-na no laguinho, quando está seca, e ela vê o seu reflexo na água e pergunta a si mesma surpresa:
- Esta sou eu…? Aquela feiosa, podre, velha, deslavada, sem cor…? Mas…não pode ser…aquelas mãos transformaram-me completamente! Fantástico…! (feliz) Agora toda a gente repara em mim…apreciam-me…, valorizam-me… valeu a pena! Bendito rapaz…!
Com as pessoas estas situações também acontecem: sentem-se feias, más, acham que não valem nada, porque só olham para fora, e escondem-se…umas vezes alguém as ressuscita…quando estão muito tristes e quando se sentem mal com elas mesmas, quando não gostam da sua imagem, mas esquecem-se do principal… o seu interior…da pessoa que são…da bondade, da dedicação, do amor…essas coisas bonitas.
É por isso que as boas pessoas, sofrem…há muita gente a aproveitar-se delas, por não terem um aspeto tão vistoso como outras pessoas, mas na hora da verdade, quando os outros estão em desespero essas pessoas boas, que dão menos nas vistas, são as que estão para quem precisa.
Foi o que aconteceu com esta barquinha, quando se achavas feia, velha, que não servia para nada…salvou umas pessoas, e reconheceram-na.
Infelizmente há gente que por olhar só para fora, perante as adversidades acaba com a vida, fica deprimida, estraga-se, prejudica a sua saúde para repararem nelas.
Isso é muito mau.
Mesmo quando alguém nos faz sentir mal…não devemos desistir e pensar que não valemos nada, porque mais cedo ou mais tarde, alguém saberá olhar para o nosso interior.
FIM.
                                                                   Lálá  
                                                         (6/ Dezembro/ 2009)









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