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terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

A sereia do gelo

        Era uma vez uma sereia que vivia no fundo do mar, numa praia paradisíaca, mas ia muitas vezes à superfície. Era muito bonita, cantava que até arrepiava, mas músicas tristes, que transmitiam o gelo que carregava o seu coração, depois de tantos amores não correspondidos, e desilusões. 

      Sorria muito, mas só ela sabia a dor que ainda vivia, fazia de tudo para tentar aliviar, cantando, às vezes chorando, mas ela queria livrar-se de vez dessa tristeza e dessas recordações. 

      Foi falar com a sua madrinha, e partilhou com ela essa vontade. A sua madrinha começou por lhe dizer que: se não foram aqueles, é porque não tinham de ser, não eram para ela, não a mereciam, ou não tinham nada para lhe dar de bom. 

      De seguida, deu-lhe uma solução: que ela cantasse sobre as mágoas, sobre os amores não correspondidos, e todas as desilusões. Disse-lhe que cada lembrança dolorosa se transformaria em bolas de gelo, quando metesse água do mar à boca e soprasse. 

      Umas seriam mais pequenas, outras maiores, dependendo da dor que sentia. Disse-lhe ainda para deixar cair todas as lágrimas que precisasse, ou que saíssem sem ela querer. 

      Foi o que ela fez.  Então, quando encontrava barcos vazios no mar, a baloiçar nas águas calmas, entrava em cada um deles, cantava e chorava as suas mágoas, a sua tristeza, e todas as recordações, das desilusões. 

      Cantava numa linguagem que só ela entendia e sabia, quem a ouvia não percebia o que cantava. Pegava em água do mar, metia à boca, e à medida que ela cantava, da sua boca  saiam enormes bolas de gelo, pesadas, que flutuavam na superfície da água. 

      Enquanto soprava, e via o tamanho das bolas de gelo a flutuar na água, umas que refletiam o brilho das estrelas, noutras, batia a luz do farol, e noutras conseguia ver-se a luz da lua. 

      Ela ficava encantada, e sentia-se aliviada. As lágrimas que deixava cair, fundiam-se na água, e transformavam-se em pequenas pedras como as que se veem nas dunas, possecas e praias. 

      As bolas eram tão espessas que a sereia conseguia andar sobre elas, saltar, rolar, juntamente com peixinhos seus amigos, e golfinhos brincalhões que jogavam à bola entre si. A sereia ria com vontade e participava no jogo. Sentia-se muito leve e feliz, aliviada.

      No dia seguinte, de manhã, as bolas de gelo tinham derretido e os humanos não deram por nada, mas à  noite, a sereia voltou a fazer o que a madrinha lhe disse, várias noites até se livrar da dor. 

      No início as bolas de gelo que saiam da sua boca eram gigantes, espessas, umas semanas depois diminuíram de tamanho, e era sempre motivo para brincar com os amigos. 

      Depois, as bolas de gelo foram-se tornando cada vez mais pequenas, até que não saiu nenhuma bola. Foi aí que percebeu que tinha conseguido livrar-se da dor. 

      Mesmo assim, diziam que ela continuava um cubo de gelo, a madrinha dizia que não era verdade, a sereia tinha na mesma sentimentos, e era uma boa menina, mas o seu coração, depois de ser tantas vezes magoado, precisava de se recuperar, apesar de já se ter livrado da tristeza, ainda sentia em si, emoções como raiva, irritação, vontade de dizer o que não disse a quem a magoou e desiludiu. 

      A madrinha disse para ela voltar a fazer o mesmo, mas da sua boca não saíram bolas gigantes de gelo, mas sim de fogo, como se fosse lava de um vulcão, pareciam bolas de gelatina, cor de laranja, vermelhas, amarelo torrado, e essas cores misturadas. 

      Sempre que a sereia sentia que estava a ferver com esses sentimentos, ia à superfície, bebia água do mar, e soprava, saindo da sua boca essas bolas gigantes que eram uma diversão para ela e para os amigos. 

      Várias semanas depois, as bolas de gelatina que quase pareciam lava, foram ficando mais pequenas, até não sair nenhuma bola. Ainda demorou o seu tempo, e durante o dia, a sereia partilhava os seus sentimentos bons e menos bons, com os pais, a madrinha, as amigas, que lhe davam abraços e diziam que tudo ia passar. 

      Só tinha de se lembrar que muita gente gostava dela, e que não gostamos de todos, nem todos gostam de nós, mas os que gostam são os mais importantes, os que nos fazem bem, os que nos ajudam, os que nos abraçam quando mais precisamos, e às vezes, com as suas palavras, ajudam a curar todas as feridas do coração, provocadas por momentos menos bons, ou pessoas. 

      Mas poderia aparecer alguém que a fizesse sentir que afinal foi bom não ter sido correspondida, apesar da tristeza que lhe provocou. Alguém especial que quebraria todo o gelo ou o fogo no seu interior, e que a transformaria. 

      Esse ser só apareceria quando fosse o momento certo, quando tivesse de ser, e quando ela estivesse preparada! A sereia gostava de ouvir isso, mas ao mesmo tempo, não acreditava que tal fosse acontecer, só que tinham razão. 

      Às vezes imaginava esse encontro, com uma sombra porque não sabia quem ia ser, ou se iria mesmo acontecer, e quando ela menos esperava. 

      Esse sereio especial apareceu, transformou-a, ensinou-lhe qual era o seu valor, que ela desconhecia quando estava afundada no gelo e no fogo das suas emoções, mergulhada nas desilusões. 

      Esse sereio, ensinou-lhe o que era estar apaixonada, e ser correspondida, ensinou-lhe o que era serem namorados, ensinou-lhe e mostrou-lhe o carinho, o respeito, a dedicação, a confiança, a presença e a liberdade de se encontrar com outros amigos, e amigas, ela fazia o mesmo, e encontravam-se no fim. 

      Não queriam um amor prisioneiro, e esse tornou-se o seu grande amor, aquele amor onde os dois crescem um com o outro, aprendem um com o outro, amam-se, dizem o que gostam e o que não gostam, o que querem e o que não querem.

      Respeitam-se, são companheiros, amigos, estão presentes, mas não se prendem, estão juntos, mas separam-se por momentos com respeito, para conviver com os seus amigos e amigas, e conversam na mesma. 

      Valeu a pena ter libertado o gelo e o fogo do seu coração, só assim é que conseguiu encontrar aquela pessoa especial que estava reservada para ela, no momento certo, quando devia aparecer.

      Mesmo que não acreditemos, depois de tantas desilusões e amores não correspondidos, poderá haver alguém especial: um amigo, um namorado, um marido, um companheiro, que nos mostra e que nos ensina o que precisamos de aprender, de ver, de compreender, aceitar, respeitar, e adaptarmo-nos, sem nos diminuirmos, sem prisões, sem mentiras, alguém com quem podemos conversar abertamente sobre tudo! 

FIM 

Lara Rocha 

20/2/2023 

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