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domingo, 3 de novembro de 2019

O que ficou lá atrás (monólogo de um refugiado)


O QUE FICOU LÁ ATRÁS
(Monólogo de um refugiado)
                   


            Estou aqui em segurança. Sim, eu sei e agradeço aos Deuses por estar aqui. Não tenho raiva de ninguém, nem de nada, porque não fui eu que inventei a maldita guerra que me fez deixar tudo para trás. A mim, à minha família e a todos os que vieram comigo.
A minha caminhada até à paz não foi fácil. Talvez até tenha sido mais difícil do que a guerra que eu tinha no meu país. O meu país! Era o meu país, a minha cidade, onde eu tinha a minha casa, os meus pais, os meus irmãos, os meus animais, o meu quarto, todo o conforto, e o amor. Esse era o principal cimento da nossa casa.
Um amor que os malditos invejavam, porque nos seus corações só havia ódio. Ódio, ódio por todos, ódio por dinheiro, ódio por armas. Odeio esses, sim, odeio! Odeio os que se matam e destroem por dinheiro, os que são infelizes e acham que os outros do bem têm obrigação de ser como eles.
Odeio todos os o que ficaram lá atrás, no meu país, onde eu tinha tudo. O meu país, que agora não passa de um amontoado de pedras, tijolo, vidros, pedaços de coisas queimadas, partidas, como ficaram os nossos corações.
Nossos, aqueles que somos do bem, que queríamos viver lá, no nosso país, onde nascemos do amor dos nossos pais, aquele país que nos formou…como pôde formar e ao mesmo tempo deformar tantos milhares? Pergunto-me muitas vezes, o que levou esses malditos que odeio, a escolher o caminho do mal, e a levar os do bem para o fim do mundo.
Do mundo inteiro, talvez não, mas do nosso mundo, onde eu tinha os meus sonhos, os nossos sonhos. A minha cidade, que ficou lá atrás, para onde quis voltar muitas vezes ao longo do caminho.
Vimos a nossa casa reduzida a escombros. Não sobrou nada. Apenas areia e chamas. A dor. No meio da paz do sono, fomos acordados por um monstro. Só tivemos tempo de sair, sem pensar no que estava a acontecer. Fora de casa, é que percebemos o que tinham feito… um pesadelo real. Felizmente estávamos todos juntos, abraçados.
Ainda hoje consigo ouvir os nossos choros, e os choros dos meus vizinhos que estavam ao lado, os gritos de raiva e dor. Ficamos petrificados sem saber para onde ir. Havia uma voz dentro de cada um de nós que nos dizia que tudo aquilo que estávamos a ver era um pesadelo. Mas não. Até a voz estava iludida. Era tudo bem real.
Eram estrondos por todo o lado, cheirava a medo em cada milímetro de pó, de chão, de paredes. Gritos, correria, sangue, dor, morte, destruição. Estávamos entre a espada e a parede… ou ficávamos ali e desaparecíamos juntamente com a casa e a nossa cidade, ou fugíamos e procurávamos um outro lugar seguro para continuar a viver e realizar os nossos sonhos.
Decidimos fugir. Não sabíamos para onde. As palavras desapareceram, e o caminho foi percorrido com lágrimas e gritos. Andamos sem rumo, só por andar. O peso que tínhamos nos pés era o mesmo que o peso da nossa raiva no coração, mas também talvez fosse esse peso monstruoso que nos segurava a vontade de continuar.
Fraquejamos, paramos muitas vezes, conseguimos comida, e água, de almas generosas que nos compreendiam. Dormimos em grutas, dunas no deserto, convivemos com feras que tinham mais medo de nós, do que nós deles.
Eramos aos milhares. Não tínhamos destino, mas também não queríamos aquele futuro, do nosso país que estava em pó. Todo o corpo doía, mas ainda mais doía a revolta dirigida a quem destruiu tudo o que nos pertencia, sem que tivéssemos nada a ver com isso.
Pelo caminho, sempre em lágrimas, muitos queriam desistir, voltar para trás, mas não sabíamos sequer onde estávamos. Tudo o que nós eramos estava a ficar muito lá para trás.
Não sabíamos onde, mas não era certamente ali, nem em nós. A nossa alma tinha ficado lá, com as nossas casas, na nossa cidade. Olhamos muitas vezes para o céu, à procura de um sinal, de uma estrela guia, de uma luz. A principal estrela era a nossa vontade de viver.
Muitos tentaram destruir-se em linhas de comboio, em falésias, em pontes por onde passamos. Mas o grupo não deixou. Eramos do bem, tínhamos o coração perdido, mas ainda dispúnhamos de mãos. Esses gestos davam-nos uma força renovada para continuarmos a acreditar que a nossa caminhada ia valer a pena.
Não foi fácil. Houve muito desespero. Demos muitas vezes as mãos, mesmo a quem não conhecíamos, mas estavam connosco, tal como nós, tinham deixado tudo lá atrás, com a dor e a tristeza.
O darmos as mãos dava-nos uma força que não sabíamos de onde vinha, apenas sentíamos, e uma esperança nunca antes sentida. Até que um dos nossos caísse e quisesse desistir.
Às vezes era uma vontade comum: voltemos para trás! Gritavam uns. Não quero continuar! Gritavam outros. Não aguento mais! Vou desistir! Continuem amigos, eu fico aqui.
Foi o que ouvimos constantemente, mas nesses momentos, talvez houvessem anjos à nossa volta, que nos serenavam a dor, e que nos davam força. Anjos que não víamos, mas estavam, acreditávamos que sim, porque se não estivessem, teríamos mesmo desistido.
A dor, e o choro sufocavam-nos. Levantávamo-nos e seguíamos, estávamos juntos com o mesmo propósito. Encontrar a paz, reconstruirmo-nos por dentro. Recomeçar. Queríamos, mas a incerteza nem sempre nos permitia seguir em frente. Parávamos, alimentávamos o corpo, rezávamos e continuávamos.
Não nos deixamos dominar por ela. Seguimos. Andamos milhares de quilómetros, por desertos, ruas, sempre com os olhos abertos a olhar para todo o lado. Passávamos discretos, nem sempre. Sentíamos que todos nos olhavam de canto, comentavam, afastavam-se.
Se eles soubessem! Se eles tivessem deixado tudo lá atrás como nós, compreenderiam. Não sabiam como doía. Todos nós, que víamos casas, lembrávamos a nossa casa, que agora já não existia, tudo o que tínhamos, tudo o que era nosso.
As lágrimas caiam e só ouvíamos o soluçar uns dos outros, um coro enorme e comum, no silêncio, de dor, quase ao mesmo ritmo do arrastar dos nossos pés pesados, que poucas vezes obedeciam à nossa necessidade e vontade de continuar a lutar. Pareciam colados e que transportavam tudo aquilo que já não eramos, as nossas recordações.
Enquanto caminhávamos não pensávamos no futuro, a incerteza não nos deixava, nem no passado, mas era impossível que ele não nos acompanhasse. Para não perdermos a força de continuar, não pensávamos nem no passado nem no futuro.
A nossa preocupação principal era o presente, apenas as formas de nos salvarmos, de conseguirmos força. Como conseguíamos? Não sabemos. A luta pela sobrevivência, talvez. Mas nem sabíamos para que sobreviveríamos, não sabíamos o que nos esperava.
Acreditávamos que encontraríamos algo melhor, mas não tínhamos a certeza. Só medo! Mesmo assim, uma força desconhecida, levou-nos a seguir. O grupo começou a dispersar-se, uns ficaram em cidades que os apanharam e acolheram porque estavam doentes e precisaram de assistência. Outros gostaram do sítio, sem saber o que iam encontrar.
Nós continuamos. Sempre com mil olhos abertos, sempre com o coração muito apertado, sempre sem rumo, e com a incerteza se íamos conseguir. Nunca nos abandonamos uns aos outros.
Escondemo-nos muitas vezes, apanhamos grandes molhas, tempestades, protegemo-nos em grutas, apanhamos tempestades de vento que nos chicoteavam dos pés à cabeça, mas nem esse era mais doloroso do que a nossa dor de termos deixado tudo para trás.
Chegamos a Portugal. O paraíso. Sim, aqui estamos bem. Fomos recebidos com carinho, arranjaram-nos uma casa, com todas as condições, deram-nos trabalho, dinheiro e alimentação, roupas.
Aqui estamos felizes, em paz. Temos paz. Um privilégio, a compensação da destruição que deixamos lá atrás. A família está comigo, entendemo-nos bem, mas a noite… a noite é o pior.
Não, não há guerra, aqui, mas há os medos que trouxemos, os traumas como dizem por aí. Mal fechamos os olhos começamos a ouvir outra vez os estrondos, as bombas, os choros, os gritos, vemos as chamas, a destruição…o nosso coração fica outra vez inquieto.
Dizem que é da nossa cabeça. E tem razão. Acendemos a luz, e tudo está bem! Respiramos fundo, que alívio. Mas porque é que isto não ficou lá atrás? O medo, mesmo quando está tudo bem, os pesadelos a noite toda. Será que alguma vez vai deixar-nos?
Isso gostaríamos que tivesse ficado noutro lugar qualquer, e nós, que tivéssemos ficado lá, lá atrás, na nossa cidade, no nosso país, em paz, sem guerra, na nossa casa, com as nossas coisas por que tanto lutamos, e de repente tudo ficou reduzido a nada, misturado com a dor e a tristeza.
Mesmo estando muito agradecidos, claro que as lágrimas continuam a cair, elas não ficaram lá, sempre nos acompanharam, e vieram. Claro que temos saudades, e às vezes vontade de voltar, mas não para o nosso país como está agora. Seria para recomeçar do zero. Isso fizemos aqui, em Portugal, neste recanto de paz, com boa gente.
Ainda assim, os Portugueses não podem ir lá atrás buscar tudo o que ficou. Nem nós. Mas aqui, já podemos pensar um bocadinho num futuro, e tentar esquecer o passado! Será que conseguimos? A dor é muito grande! É a vontade misturada com a saudade.
A raiva e o ódio estão muito presentes, contra quem nos destruiu. Cada um de nós nunca mais vai ser o mesmo. Até a nossa maneira de ser, ficou lá, ainda não sabemos quem somos, nem quem seremos daqui para a frente. Chegamos aqui vazios! Como é difícil renascer, deixar tudo para trás, à procura de melhores condições, de paz… e recomeçar.
E vocês que não têm do que reclamar, fartam-se de reclamar e exigir mais, e mais. Vão à nossa cidade, ao nosso país, ver se precisam realmente de mais, de tudo o que pedem?
Vão ver os hospitais de lá, as escolas, os supermercados, tudo! Vocês têm tudo, principalmente paz. Agradeçam por tudo o que não tem de deixar para trás. Agradeçam por não terem de fugir, agradeçam por terem tudo o que querem, e não levarem com bombas.
Agradeçam por não ouvirem gritos, choros, sangue, dor, desespero! Tudo o que deixamos lá atrás, nunca mais será nosso, nunca mais poderemos recuperar, a não ser na nossa memória, enquanto também ela não fica lá atrás.
Vocês visitam o lá atrás porque querem, para recordar memórias felizes, mas quando nos criticarem, ou quando criticarem o vosso país, a vossa cidade, tentem procurar o nosso país, a nossa cidade, e pensem se vale a pena recuperar o que deixaram lá atrás, ou se é preciso quererem tanto!
Vão ver tudo o que deixamos lá atrás, nós, os que fugimos, e pensem como são felizes! Eu não quero voltar lá atrás, se voltasse iria buscar o que ficou enquanto o ódio de muitos, e a ambição pelo dinheiro, o amor pelas armas, não falou mais alto. Para quê?
Ódio, guerra, destruição, dinheiro, armas? É isso que somos? E onde fica o que somos? O que temos de melhor?
Vão lá atrás e vejam tudo o que ficou. Nada! A única coisa que ficou foram estilhaços de nós, dos nossos sonhos, tantos que tínhamos para realizar, a nossa felicidade, pessoas, casas…tudo ficou no chão de uma guerra sem fim. 
          O mar mediterrânico, suspira, chora e traz à superfície os gritos das almas que se perderam, nas suas profundezas! É lá que procuram a vida que sempre desejaram. Não era isso que eles queriam, aqueles que deixam tudo para trás. Mas foi no mar, onde não há guerra, nem fome, onde só há silêncio e paz.
          O vento enraivece-se, pela impotência de não poder impedir tanta desgraça. O mar revolta-se por tanto indiferença, e grita para despertar consciências. Mar cruel…mar revolto, mar sem culpa, mar com dor. Mar Mediterrânico.
Demos agora as mãos, a quem está ao nosso lado, uns aos outros, e façamos uma grande corrente de paz. Para que tudo o que ficou lá atrás, volte em forma de amor para todos.

                                                                        Fim 
Lara Rocha
3/Novembro/2019

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