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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A lareira da saudade


















Foto de Lara Rocha 

Era uma vez uma senhora com alguma idade que vivia sozinha, embora a sua família estivesse perto, mas não se encontrava muitas vezes porque cada um tinha a sua vida. A senhora lamentava-se, tinha pena que tudo fosse a correr, ficava muito triste com a pressa com que se vivia, e com a falta de tempo.
Ela tinha algumas amigas, da sua idade, que às vezes dormiam na sua casa, e conviviam muito, mas sentia-se incompleta. Não pensava na velhice, nem nas capacidades que já não eram as mesmas que em jovem, lutava e fazia tudo o que podia, tinha muita ocupação de dia, só à noite ficava mais triste.
Uma noite gelada, de tempestade, a senhora acendeu a lareira, e nesse dia estava mais triste, sem saber muito bem porquê. Sentou-se no cadeirão com o pijama vestido e enrolada em várias mantas, televisão ligada, e ficou a olhar para a lareira.
De repente, uma chama cresceu, enrolou-se, e dela saiu um pequenino palhacinho, espreguiçou-se, sorriu e a senhora ficou assustada:
- Ai, quem és tu? Como é que apareceste aqui? Saíste daí?
- Olá! Há quanto tempo não nos víamos… estás igual… quer dizer…um bocado maior, ou fui eu que minguei? – Diz o palhaço com um grande sorriso
- Ei…espera aí…eu acho que te estou a conhecer… e…parece que também me conheces…
- Sim, já nos conhecemos há muitos anos! Quando tu ainda eras uma criança.
- Estás-me a chamar velha?
- Não! Estou só a dizer que já vai há muitos anos, que nos vimos a primeira vez.
- Sim, pois é…o tempo passa e nem damos por ela.
- É verdade.
- Mas como é que estás aí?
- Eu sempre estive aqui…estou em muitos lados, e volto para o mesmo sítio. Aqui estou bem.
- Pois, estás quentinho…
- Isso mesmo. E tu, estás com frio?
- Sim, hoje está muito frio, o tempo está feio lá fora…sabe bem a lareira.
- Óh sim. É maravilhosa.
- Mas o que fazes aqui?
- Vim visitar-te…fazer-te companhia…rever o teu sorriso.
            A senhora sorri
- Obrigada…
- Lembras-te que adoravas palhaços?
- Sim. E ainda adoro…ainda continuas a ser palhaço?
- Continuo, mas já não é a mesma coisa.
- Porquê?
- Dantes, na tua infância, e idade adulta as pessoas ainda reparavam em mim, riam, e aplaudiam, brincavam comigo, ficavam com brilhos diferentes nos olhos…era tão bom… agora…passam a correr, nem para mim olham, vão a olhar para umas coisas quadradas, que os teus filhos e netos devem ter…
- Áh, sim…os telemóveis e tabletes ou lá como se chama aquilo. Como é que sabes que eu tenho filhos e netos?
- Eu já os vi aqui…
- Mas eu nunca te vi antes.
- Sempre estive aqui. Mas nunca apareci, porque as crianças já não se riem, vêem-me e assustam-se… chamam-me nomes feios…
- A sério?
- É. A coisa não está bem.
- Realmente isso é muito mau.
- Já não há trabalhos como antes…agora tudo é diferente.
- Sim, tens razão.
- A magia já não existe!
- Óh…também estás triste?
- Sim…quer dizer…não, eu não vim ter contigo para ficar triste, porque triste estás tu. Óh, desculpa, eu não queria falar-te de coisas tristes.
- Não faz mal. Já não nos víamos há muito tempo, por isso é normal querermos saber um do outro, neste reencontro.
- Agora estou mais feliz, de ver o teu sorriso e o brilho nos teus olhos, como antes!
- Pensei que estavas sempre feliz.
- Não!
- Pelo menos na minha infância, eu achava que os palhaços nunca ficavam tristes.
            O palhaço ri de uma forma tão engraçada que contagia a senhora que também se ri.
- Que gargalhada maravilhosa! Obrigado. Há quanto tempo não ouvia uma gargalhada destas, vinda do coração, da criança que há em ti. E esse sorriso que ilumina tudo à tua volta…que lindo! – Diz o palhaço cheio de ternura a sorrir
- Para mim, a magia continua a existir! E nunca te agradeci antes, mas…obrigada por existires e pelo teu trabalho! – Diz a senhora a sorrir
- Óh, que lindo isso que disseste! E vê-se no sorriso, no olhar…obrigado, minha querida!
Os dois trocam um abraço carinhoso, e escapam umas lágrimas entre sorrisos.
- Pega uma manta, senta-te aí nesse almofadão ao meu lado, e vamos conversar. Queres um chá?
- Com muito gosto.
            A senhora vai buscar chá quente enquanto o palhaço se instala e aconchega entre duas mantas que a senhora lhe deu. Entretanto, quando ela chega, saem da lareira outros palhacinhos que a senhora conhece bem.
- Áh! Olha os meus palhacinhos também aqui estão! – Diz a senhora a rir
- Olá! – Dizem todos a sorrir e aos saltinhos
            Eram uns palhacinhos que a senhora tinha desenhado na sua infância, todos coloridos, brincalhões, que faziam malabarismos e brincadeiras, e por magia transformaram-se em palhacinhos verdadeiros. A senhora serve chá para eles também, e eles instalam-se noutro almofadão, cobertos. Conversam uns com os outros, entre muitas brincadeiras e gargalhadas, falam de tudo, contam histórias, e estão felizes por se encontrarem. Umas horas mais tarde, os palhacinhos adormecem, e a senhora também.
            Enquanto ela e os palhacinhos dormem, na lareira acontece a dança das deusas chamas, que acordam a senhora com a música, usam lindos vestidos vermelhos, amarelos e cor-de-laranja, que se entrecruzam e misturam, rebolam, entrelaçam-se, parece que se desmontam todas. A senhora delicia-se, completamente rendida aos encantos daqueles movimentos, e músicas, que aplaude no fim com um grande sorriso. As chamas agradecem e adormecem.
            A lareira está agora com um borralho pequenino, e a senhora volta a ficar um pouco triste, sem perder o brilho no olhar. E de repente, do borralho levantam-se artistas de circo que fazem um espectáculo mágico para a senhora, com muita variedade, e na parede da lareira, ela vê personagens da sua infância, retalhos de histórias que a sua imaginação ditava, e ela escrevia, os seus brinquedos, os seus bonecos, as suas brincadeiras, os seus medos…
Os palhacinhos acordam bafejados pelos suspiros de saudade que os tocaram suavemente vindos da lareira. Era um código secreto de comunicação de alarme, que combinaram entre eles.
Da lareira sai uma fada que resmunga:
- Ei…vamos lá pintar esta lareira da saudade com outras cores, já estou encharcada de lágrimas, cheia de frio. Quero o meu bairro cheio de cor, calor, alegria, chamas, sorrisos, risos, brincadeira.
            A senhora ri:
- Também vives aí?
- Sim. – Diz a fada
- Já te conheço. – Repara a senhora
- Pois já…na tua infância eu era uma das tuas melhores amigas…e posso continuar a ser. Como estás crescida, linda… - diz a fada a sorrir  
- Óh, que simpática, estou velha, queres tu dizer…! – Comenta a senhora a rir
- Não gosto nada dessa palavra! – Resmungam a fada e os palhacinhos
- E eu abandonei-te?  - Pergunta a senhora
- Abandonaste, mas já estamos habituadas a que estas coisas aconteçam, mesmo assim, é sempre bom quando nos reencontramos. As nossas amigas já com filhos, e netos…e ainda se lembram de nós. É muito bom. – Responde a fada
- Eu falei de ti à minha neta. – Lembra a senhora
- Eu sei! Brinquei muitas vezes com ela, falei muitas vezes com ela, ouvi-a muitas vezes, como fazia contigo. Ela ficava feliz…e eu também. – Diz a fada a sorrir
- Sim, ela bem dizia que tinha falado contigo, e brincado contigo, mas pensei que fosse imaginação dela, e que ela te tinha criado com o que eu lhe dizia sobre ti. – Comenta a senhora
- Não. Aconteceu mesmo. – Confirma a fada
- Será que ela se lembra disso? – Pergunta a senhora pensativa
- Talvez…se ela vier para esta lareira da saudade.  – Responde a fada
- Talvez não precise de vir para a lareira da saudade…ela é capaz de se lembrar. – Defende a senhora
- Não tenho a certeza. Ela é doutra geração, onde acho que a magia desapareceu! – Pensa alto a fada
- É. Só existem máquinas. – Diz a senhora
- Eu sou assim, sei que faço muita gente feliz. Mas tenho saudades dos tempos antigos, como aqueles em que brincava contigo. – Diz a fada
- Ei…chega de falar em saudades…vamos mas é reavivar esta lareira, enchê-la de calor, alegria e brincadeira, magia…como tu disseste…se não, daqui a pouco estamos aqui todos a chorar. – Aconselha um palhacinho
- Isso! – Concordam todos
- Mas chorar também é bom…e chora-se por coisas boas…como saudades de coisas boas ou felizes, como a infância. – Repara a senhora
- É verdade! – Dizem todos
            Todos dão umas gargalhadas sonoras e com vontade, a cada gargalhada, as chamas da lareira tornam-se mais altas, e tudo volta a ficar um ambiente animado, com muitas brincadeiras, danças, músicas, habilidades, palmas, risos, e alegria, até de manhã. Nem se lembraram mais da tempestade, e dormiram a manhã toda na sala quente, confortavelmente instalados nos almofadões macios, cobertos com mantas e sacos camas.
            Essas personagens nunca mais largaram a senhora, passaram a viver na casa dela, eram excelentes companhias, que adoravam o riso dela, e o brilho nos olhos, tinham longas e animadas conversas, brincavam, ajudavam-na, e às vezes apareciam outras muito simpáticas para se juntar à festa.
FIM
Lara Rocha 
(19/Janeiro/2017)





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