O
QUE FICOU LÁ ATRÁS
(Monólogo
de um refugiado)
Estou
aqui em segurança. Sim, eu sei e agradeço aos Deuses por estar aqui. Não tenho
raiva de ninguém, nem de nada, porque não fui eu que inventei a maldita guerra
que me fez deixar tudo para trás. A mim, à minha família e a todos os que
vieram comigo.
A minha caminhada até
à paz não foi fácil. Talvez até tenha sido mais difícil do que a guerra que eu
tinha no meu país. O meu país! Era o meu país, a minha cidade, onde eu tinha a
minha casa, os meus pais, os meus irmãos, os meus animais, o meu quarto, todo o
conforto, e o amor. Esse era o principal cimento da nossa casa.
Um amor que os
malditos invejavam, porque nos seus corações só havia ódio. Ódio, ódio por
todos, ódio por dinheiro, ódio por armas. Odeio esses, sim, odeio! Odeio os que
se matam e destroem por dinheiro, os que são infelizes e acham que os outros do
bem têm obrigação de ser como eles.
Odeio todos os o que
ficaram lá atrás, no meu país, onde eu tinha tudo. O meu país, que agora não passa
de um amontoado de pedras, tijolo, vidros, pedaços de coisas queimadas,
partidas, como ficaram os nossos corações.
Nossos, aqueles que
somos do bem, que queríamos viver lá, no nosso país, onde nascemos do amor dos
nossos pais, aquele país que nos formou…como pôde formar e ao mesmo tempo
deformar tantos milhares? Pergunto-me muitas vezes, o que levou esses malditos
que odeio, a escolher o caminho do mal, e a levar os do bem para o fim do mundo.
Do mundo inteiro, talvez
não, mas do nosso mundo, onde eu tinha os meus sonhos, os nossos sonhos. A minha
cidade, que ficou lá atrás, para onde quis voltar muitas vezes ao longo do
caminho.
Vimos
a nossa casa reduzida a escombros. Não sobrou nada. Apenas areia e chamas. A dor.
No meio da paz do sono, fomos acordados por um monstro. Só tivemos tempo de
sair, sem pensar no que estava a acontecer. Fora de casa, é que percebemos o
que tinham feito… um pesadelo real. Felizmente estávamos todos juntos,
abraçados.
Ainda
hoje consigo ouvir os nossos choros, e os choros dos meus vizinhos que estavam
ao lado, os gritos de raiva e dor. Ficamos petrificados sem saber para onde ir.
Havia uma voz dentro de cada um de nós que nos dizia que tudo aquilo que estávamos
a ver era um pesadelo. Mas não. Até a voz estava iludida. Era tudo bem real.
Eram
estrondos por todo o lado, cheirava a medo em cada milímetro de pó, de chão, de
paredes. Gritos, correria, sangue, dor, morte, destruição. Estávamos entre a
espada e a parede… ou ficávamos ali e desaparecíamos juntamente com a casa e a
nossa cidade, ou fugíamos e procurávamos um outro lugar seguro para continuar a
viver e realizar os nossos sonhos.
Decidimos
fugir. Não sabíamos para onde. As palavras desapareceram, e o caminho foi percorrido
com lágrimas e gritos. Andamos sem rumo, só por andar. O peso que tínhamos nos
pés era o mesmo que o peso da nossa raiva no coração, mas também talvez fosse
esse peso monstruoso que nos segurava a vontade de continuar.
Fraquejamos,
paramos muitas vezes, conseguimos comida, e água, de almas generosas que nos
compreendiam. Dormimos em grutas, dunas no deserto, convivemos com feras que
tinham mais medo de nós, do que nós deles.
Eramos
aos milhares. Não tínhamos destino, mas também não queríamos aquele futuro, do
nosso país que estava em pó. Todo o corpo doía, mas ainda mais doía a revolta dirigida
a quem destruiu tudo o que nos pertencia, sem que tivéssemos nada a ver com
isso.
Pelo
caminho, sempre em lágrimas, muitos queriam desistir, voltar para trás, mas não
sabíamos sequer onde estávamos. Tudo o que nós eramos estava a ficar muito lá
para trás.
Não
sabíamos onde, mas não era certamente ali, nem em nós. A nossa alma tinha
ficado lá, com as nossas casas, na nossa cidade. Olhamos muitas vezes para o
céu, à procura de um sinal, de uma estrela guia, de uma luz. A principal estrela
era a nossa vontade de viver.
Muitos
tentaram destruir-se em linhas de comboio, em falésias, em pontes por onde passamos.
Mas o grupo não deixou. Eramos do bem, tínhamos o coração perdido, mas ainda dispúnhamos
de mãos. Esses gestos davam-nos uma força renovada para continuarmos a
acreditar que a nossa caminhada ia valer a pena.
Não
foi fácil. Houve muito desespero. Demos muitas vezes as mãos, mesmo a quem não conhecíamos,
mas estavam connosco, tal como nós, tinham deixado tudo lá atrás, com a dor e a
tristeza.
O
darmos as mãos dava-nos uma força que não sabíamos de onde vinha, apenas sentíamos,
e uma esperança nunca antes sentida. Até que um dos nossos caísse e quisesse desistir.
Às
vezes era uma vontade comum: voltemos para trás! Gritavam uns. Não quero
continuar! Gritavam outros. Não aguento mais! Vou desistir! Continuem amigos,
eu fico aqui.
Foi
o que ouvimos constantemente, mas nesses momentos, talvez houvessem anjos à
nossa volta, que nos serenavam a dor, e que nos davam força. Anjos que não víamos,
mas estavam, acreditávamos que sim, porque se não estivessem, teríamos mesmo desistido.
A
dor, e o choro sufocavam-nos. Levantávamo-nos e seguíamos, estávamos juntos com
o mesmo propósito. Encontrar a paz, reconstruirmo-nos por dentro. Recomeçar. Queríamos,
mas a incerteza nem sempre nos permitia seguir em frente. Parávamos, alimentávamos
o corpo, rezávamos e continuávamos.
Não
nos deixamos dominar por ela. Seguimos. Andamos milhares de quilómetros, por
desertos, ruas, sempre com os olhos abertos a olhar para todo o lado. Passávamos
discretos, nem sempre. Sentíamos que todos nos olhavam de canto, comentavam, afastavam-se.
Se
eles soubessem! Se eles tivessem deixado tudo lá atrás como nós, compreenderiam.
Não sabiam como doía. Todos nós, que víamos casas, lembrávamos a nossa casa,
que agora já não existia, tudo o que tínhamos, tudo o que era nosso.
As
lágrimas caiam e só ouvíamos o soluçar uns dos outros, um coro enorme e comum,
no silêncio, de dor, quase ao mesmo ritmo do arrastar dos nossos pés pesados,
que poucas vezes obedeciam à nossa necessidade e vontade de continuar a lutar. Pareciam
colados e que transportavam tudo aquilo que já não eramos, as nossas
recordações.
Enquanto
caminhávamos não pensávamos no futuro, a incerteza não nos deixava, nem no
passado, mas era impossível que ele não nos acompanhasse. Para não perdermos a força
de continuar, não pensávamos nem no passado nem no futuro.
A
nossa preocupação principal era o presente, apenas as formas de nos salvarmos,
de conseguirmos força. Como conseguíamos? Não sabemos. A luta pela sobrevivência,
talvez. Mas nem sabíamos para que sobreviveríamos, não sabíamos o que nos
esperava.
Acreditávamos
que encontraríamos algo melhor, mas não tínhamos a certeza. Só medo! Mesmo assim,
uma força desconhecida, levou-nos a seguir. O grupo começou a dispersar-se, uns
ficaram em cidades que os apanharam e acolheram porque estavam doentes e
precisaram de assistência. Outros gostaram do sítio, sem saber o que iam encontrar.
Nós
continuamos. Sempre com mil olhos abertos, sempre com o coração muito apertado,
sempre sem rumo, e com a incerteza se íamos conseguir. Nunca nos abandonamos
uns aos outros.
Escondemo-nos
muitas vezes, apanhamos grandes molhas, tempestades, protegemo-nos em grutas,
apanhamos tempestades de vento que nos chicoteavam dos pés à cabeça, mas nem
esse era mais doloroso do que a nossa dor de termos deixado tudo para trás.
Chegamos
a Portugal. O paraíso. Sim, aqui estamos bem. Fomos recebidos com carinho,
arranjaram-nos uma casa, com todas as condições, deram-nos trabalho, dinheiro e
alimentação, roupas.
Aqui
estamos felizes, em paz. Temos paz. Um privilégio, a compensação da destruição
que deixamos lá atrás. A família está comigo, entendemo-nos bem, mas a noite… a
noite é o pior.
Não,
não há guerra, aqui, mas há os medos que trouxemos, os traumas como dizem por
aí. Mal fechamos os olhos começamos a ouvir outra vez os estrondos, as bombas,
os choros, os gritos, vemos as chamas, a destruição…o nosso coração fica outra
vez inquieto.
Dizem
que é da nossa cabeça. E tem razão. Acendemos a luz, e tudo está bem! Respiramos
fundo, que alívio. Mas porque é que isto não ficou lá atrás? O medo, mesmo
quando está tudo bem, os pesadelos a noite toda. Será que alguma vez vai deixar-nos?
Isso
gostaríamos que tivesse ficado noutro lugar qualquer, e nós, que tivéssemos
ficado lá, lá atrás, na nossa cidade, no nosso país, em paz, sem guerra, na nossa
casa, com as nossas coisas por que tanto lutamos, e de repente tudo ficou reduzido
a nada, misturado com a dor e a tristeza.
Mesmo
estando muito agradecidos, claro que as lágrimas continuam a cair, elas não
ficaram lá, sempre nos acompanharam, e vieram. Claro que temos saudades, e às
vezes vontade de voltar, mas não para o nosso país como está agora. Seria para recomeçar
do zero. Isso fizemos aqui, em Portugal, neste recanto de paz, com boa gente.
Ainda
assim, os Portugueses não podem ir lá atrás buscar tudo o que ficou. Nem nós.
Mas aqui, já podemos pensar um bocadinho num futuro, e tentar esquecer o passado!
Será que conseguimos? A dor é muito grande! É a vontade misturada com a saudade.
A
raiva e o ódio estão muito presentes, contra quem nos destruiu. Cada um de nós
nunca mais vai ser o mesmo. Até a nossa maneira de ser, ficou lá, ainda não
sabemos quem somos, nem quem seremos daqui para a frente. Chegamos aqui vazios!
Como é difícil renascer, deixar tudo para trás, à procura de melhores
condições, de paz… e recomeçar.
E
vocês que não têm do que reclamar, fartam-se de reclamar e exigir mais, e mais.
Vão à nossa cidade, ao nosso país, ver se precisam realmente de mais, de tudo o
que pedem?
Vão
ver os hospitais de lá, as escolas, os supermercados, tudo! Vocês têm tudo,
principalmente paz. Agradeçam por tudo o que não tem de deixar para trás. Agradeçam
por não terem de fugir, agradeçam por terem tudo o que querem, e não levarem com
bombas.
Agradeçam
por não ouvirem gritos, choros, sangue, dor, desespero! Tudo o que deixamos lá
atrás, nunca mais será nosso, nunca mais poderemos recuperar, a não ser na
nossa memória, enquanto também ela não fica lá atrás.
Vocês
visitam o lá atrás porque querem, para recordar memórias felizes, mas quando
nos criticarem, ou quando criticarem o vosso país, a vossa cidade, tentem procurar
o nosso país, a nossa cidade, e pensem se vale a pena recuperar o que deixaram lá
atrás, ou se é preciso quererem tanto!
Vão
ver tudo o que deixamos lá atrás, nós, os que fugimos, e pensem como são
felizes! Eu não quero voltar lá atrás, se voltasse iria buscar o que ficou
enquanto o ódio de muitos, e a ambição pelo dinheiro, o amor pelas armas, não
falou mais alto. Para quê?
Ódio,
guerra, destruição, dinheiro, armas? É isso que somos? E onde fica o que somos?
O que temos de melhor?
Vão
lá atrás e vejam tudo o que ficou. Nada! A única coisa que ficou foram
estilhaços de nós, dos nossos sonhos, tantos que tínhamos para realizar, a
nossa felicidade, pessoas, casas…tudo ficou no chão de uma guerra sem fim.
O mar mediterrânico, suspira, chora e traz à superfície os gritos das almas que se perderam, nas suas profundezas! É lá que procuram a vida que sempre desejaram. Não era isso que eles queriam, aqueles que deixam tudo para trás. Mas foi no mar, onde não há guerra, nem fome, onde só há silêncio e paz.
O vento enraivece-se, pela impotência de não poder impedir tanta desgraça. O mar revolta-se por tanto indiferença, e grita para despertar consciências. Mar cruel…mar revolto, mar sem culpa, mar com dor. Mar Mediterrânico.
Demos
agora as mãos, a quem está ao nosso lado, uns aos outros, e façamos uma grande
corrente de paz. Para que tudo o que ficou lá atrás, volte em forma de amor
para todos.
Fim
Lara
Rocha
3/Novembro/2019
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