Minhas
queridas sombras
1ª
parte – monólogo
Minhas
queridas sombras! Onde estão? Abandonaram-me? Fizeram como todos os outros?
Ingratas, depois de tudo o que vivemos juntas naquele nosso sítio secreto! O
deserto escuro sem água, sem comida, só eu e vocês. Era tão bom. Fartamo-nos de
trocar carinhos, brincar rir e fotografar. Fizemos longas caminhadas, rolamos
na areia, treinamos andares.
Esquecia tudo, enquanto
estava lá convosco. Até me esquecia de mim mesma, que era o que eu queria. Lá
não havia espelhos, felizmente. Era tão agradável aquele espaço. Melhor que a
realidade assombrada que me cerca, cheia de gente falsa, julgadora, que só
critica, humilha, fere.
Tenho saudades vossas, apesar
de quase me terem matado, eu sentia o vosso apoio. Sei que só fizeram isso para
me ajudar a concretizar o meu desejo, de emagrecer. Vocês amavam-me, davam-me
valor! Nunca me chamaram gorda, baleia, nem recusavam entradas, não me
rejeitavam.
Eu queria ser como vocês, por
isso é que me juntei convosco. No meio de tanta indiferença, vocês
preenchiam-me. Nunca vos encontrei na cidade, entre todos os que passavam por
mim indiferentes, a olhar de canto e a apontar, a disparar risinhos, e
comentários.
Não era esta vida que queria,
mas é esta a que tenho agora. Dizem que foi escolha minha. Mais uma vez, lá
está a maliciosa sociedade que só sabe apontar o dedo. Tanta falsidade! A vida
que tive já desapareceu, e depois desta vida, terei outra com certeza muito
diferente. Não sei como será, mas uma coisa é certa: não voltarei a passar fome
para agradar aos outros.
Ainda tenho pouca força, e
estou aqui a receber vida por este tubinho. Foi fácil espetarem-me uma agulha
nesta minha mão, que só tem pele e osso. Não sei se doeu, se não doeu. Não me
lembro de mais nada. Sei que estava a caminhar pelo deserto, vocês não estavam
lá, o deserto ficou cada vez mais escuro, parecia que tinha sido engolida por
um buraco de areias movediças, e afundava-me não sei onde.
Eu procurava-vos. Fiquei
triste como a noite por não vos ver lá, no sítio de sempre onde já fomos tão
felizes. Acho que foi isso que acabou comigo. Algo neste tubinho impede-me de
me encontrar convosco, e ir para o nosso esconderijo.
Tenho saudades vossas. Não
sei há quanto tempo não nos vemos, perdi a noção de tudo! Aliás, nem sei há
quanto tempo estou aqui. Ouço para aqui a falar em números e não sei sobre o
que se referem.
Não sei quem é esta gente.
Não sei se isto que vejo é real ou não. Não sei se isto que vejo é uma mão ou
um engaço, um garfo ou um pente. Estou muito confusa das ideias. Umas que andam
sempre por aqui dizem que é a minha mão. Até essas são cruéis.
Tenho de vos agradecer,
queridas sombras, por me terem ajudado a atingir o objetivo de ser elegante.
Esta sociedade respira e explode em maldade por todos os poros.
Quando era gorda, chamavam-me
um jardim zoológico ambulante, uma incrível variedade de bichos… vaca, porca,
baleia, tubarão, lontra, foca, monstro, e produtos de mercado, como pote de
banha, banha de porco, bola de unto, e outros piores que eu nem conhecia.
Todos os outros, riam, não
sei onde estava a piada. Se estou elegante, dizem que estou magra ou
perguntam-me se estou doente. Se estou um balão, perguntam se estou grávida.
Tudo o que era diferente,
comentavam, até os meninos com deficiência, eram gozados, humilhados, imitados,
afastados, desrespeitados. Para que comentam?
Os meus pais nunca se
pronunciaram sobre isso, mesmo assim, eu achava que eles não gostavam de mim
por ser tão gorda. Eu queria emagrecer para deixar de ouvir aqueles comentários
maldosos, e para agradar a todos, para não afastar os meus colegas, ter muitos
amigos, ser apreciada, e escolhida, ter namorados como as outras meninas que
eram magrinhas.
Eu detestava-me ver ao
espelho, ter de me despir e vestir em frente às outras, porque elas riam-se e
chamavam-me gorda. Quando eu ia tomar banho, fugiam, e nos balneários punham-se
bem longe. Nas aulas não queriam ficar á minha beira.
Ficava triste como a noite!
Fiz de tudo para emagrecer, consegui umas míseras gramas perdidas, quando a
médica de família regrou a minha comida. Cortou-me à ração. Consegui cumprir,
mas sempre que sentia fome, comia o triplo, a toda a hora, escondida.
Não percebiam que o comer
tanto deixava-me feliz, preenchia o maldito vazio dentro de mim que aumentava
de dia para dia com a solidão cada vez maior.
E eu, engordava! Claro que só
podia engordar. Quanto maior era a minha vontade de emagrecer, mais eu
engordava, e mais me apetecia comer, com o desgosto. Cheguei a uma altura em
que não queria saber do que os outros pensavam, o mais importante era eu preencher-me.
Era tudo sol de pouca dura.
Quando aderi aos conselhos da
médica, pesava-me todos os dias, várias vezes por dia, e o maldito peso
assombrava-me. Estava sempre na mesma! Não descia nem uma grama.
Desisti. Continuei a comer. Só
quando vos conheci, querida Anorexia e querida Bulimia, é que consegui
emagrecer. Primeiro conheci a Bu, Bulimia. Era linda, uma rapariga sexy,
simpática, magra, que me ensinou o segredo dela para ser magra!
Vomitar depois de comer.
Claro! Mas que ideia genial, como é que eu nunca tinha pensado nisso? Era uma
maneira fácil. Que espetáculo. Quase a pus no altar. Quando apliquei esse
truque, consegui finalmente emagrecer.
Conseguia controlar a cena.
Uau! Que liberdade. Era um alívio indescritível. Habituei-me, e os vómitos
várias vezes por dia, depois de comer tudo o que mais gostava e queria, fizeram
parte do meu ritual diário.
Senti-me poderosa a ninguém
reparou. Esse foi o problema. Ninguém reparou que havia qualquer coisa de
diferente em mim. Como era possível? Eu ia todos os dias para a balança, várias
vezes por dia, e perdia uma grama de cada vez. Era uma festa quando perdia um
kilo depois de quase um mês a vomitar o excesso.
Não ficava satisfeita, é
claro, porque o excesso continuava. Queria uma coisa mais rápida…então…além de
provocar o vómito, enfrasquei uma série de produtos laxantes e de emagrecer,
comecei a ter disenterias, cólicas horríveis, dores de estômago e da cabeça,
acidez, mas a partir daí, as coisas começaram a melhorar.
Eu achava que sim,
independentemente dos efeitos secundários. Emagreci realmente mais rápido. E
tu, querida Bu, sempre presente do meu lado, a incentivar-me a não desistir e a
continuar.
Obrigada, amiga! Era de
pessoas como tu que eu precisava, mas ninguém à minha volta fazia isso.
Escondia isso tudo dos meus pais, e comia com eles, como se estivesse com fome,
e tudo estava bem.
Mas tu, Bu, era assim que eu
te tratava carinhosamente, achaste que me estava a sentir sozinha, e para me
incentivar, apresentaste-me a Ano, como carinhosamente a tratava, porque o nome
dela era estranho… Anorexia!
Ela era uma brasa, até fazia
inveja! Pálida, pele e osso, e com olheiras. Usava uns vestidos que lhe ficavam
na perfeição. Foi muito especial quando comecei a andar mais com ela.
Ela foi tão espetacular e
gostou tanto de mim à primeira, que não largava. Ensinou.me muita coisa,
principalmente, fez com que os outros começassem a reparar mais em mim, eu
estava a ficar parecida com ela! Aliás, eu acho que ainda consegui perder mais
peso do que ela, até vir para aqui.
Estava tão feliz, sentia-me
preenchida, que não tinha necessidade de comer. Era correspondida na amizade,
mesmo feminina, e elas davam-me tudo o que eu precisava para me livrar do
enorme vazio.
Não sei porque é que ela
desapareceu. Eu estava a passear no deserto e não a vi, depois acordei aqui.
Onde estás, Bu? Onde estás Ano? Tiraram-me daquele deserto escuro, mas eu
estava lá bem, e estava convosco. Agora não sei onde estão.
Devem ter posto alguma coisa
aqui neste tubinho, além de vida e comida, tomo carradas de medicamentos. Já
quiseram que me visse ao espelho, mas não tenho força para me levantar e
segurar nas pernas.
Disseram-me que ainda tenho
um longo caminho a percorrer, mas que vou ficar bem. Pensando bem…a Ano não era
muito bonita, mas era magrinha, isso agrada aos outros. Ela tinha qualquer
coisa de especial, não sei explicar muito bem o que era.
Talvez na verdade, eu
própria, não sei se gostava muito de ser assim como ela! Só que, gorda também
não podia ser. Ao ser gorda era motivo de gozo, desgraçavam-me.
2ª
Parte
(Diálogo)
Aparecem duas mulheres no quarto dela,
vestidas de azul.
RAPARIGA (sorri) – Buli…Ano…
AS DUAS – Olá!
RAPARIGA – Estava mesmo aqui a recordar os
bons tempos que passamos juntas. Porque é que vocês despareceram?
AS DUAS – Estamos aqui.
RAPARIGA – Ano…estás diferente!
ANOREXIA – Sim, estou mais refeitinha, mais
saudável, não te parece?
RAPARIGA – Sim! Mas eras tão magra quando te
conheci.
ANOREXIA – Era doente! Como tu.
RAPARIGA – Mas eu não sou doente.
AS DUAS – És.
RAPARIGA – Ei, já parecem a sociedade.
BULIMIA – Desde que eu te conheci! A minha
presença na vida das pessoas é para as alertar de que estão doentes.
ANOREXIA – A minha também!
RAPARIGA – Não acho nada. Para mim, vocês
foram uns anjos.
BULIMIA – É por isso que estás aqui.
RAPARIGA – Foram vocês que me trouxeram para
aqui?
AS DUAS – Não.
RAPARIGA – Foram vocês que me tiraram do
deserto?
AS DUAS – Não.
RAPARIGA – Não me lembro de coisas más, só me
lembro dos momentos bons que passava convosco.
ANOREXIA – Nós desaparecemos quando te trouxeram
para aqui!
BULIMIA – Porque desmaiaste na rua, e
descobriram que estavas pele e osso.
RAPARIGA – Mas isso era mesmo o que eu queria,
como te contei, Bu. E foste tu que me ensinaste o truque de vomitar.
BULIMIA – Mas já aí estavas doente.
RAPARIGA – Toda a gente vomita de vez em
quando, e toda a gente quer ser magra. E eu também queria ser, porque quando
era gorda, toda a gente fugia de mim; gozavam comigo, chamavam-me nomes feios.
Eu odiava ver-me ao espelho.
ANOREXIA – E agora, gostas?
RAPARIGA – Não sei, ainda não me vi, não me
seguro nas canetas…mas acho que gosto.
AS DUAS – Não!
BULIMIA – Quando vires a tua imagem no espelho
não vais gostar.
RAPARIGA – Porque não?
ANOREXIA – Estás na pele e osso.
RAPARIGA – Mas era isso que eu queria ser.
BULIMIA – Magra, não é pele e osso como tu
estás.
ANOREXIA – Porque é querias tanto ser magra?
RAPARIGA – Para ter amigos, e para repararem
em mim. Nas gordas não reparam, ou se reparam é para dizer mal. Queria sentir
orgulho em mim, e senti porque consegui controlar o meu impulso selvagem de
comer, e não engordar mais. Senti-me forte, corajosa, atraente e apreciada. Foi
difícil emagrecer, mas consegui. Sinto-me realizada! Vocês não estão orgulhosas
de mim?
AS DUAS – Não.
ANOREXIA – Estou orgulhosa por tu não teres
desistido, mas estou triste porque quase perdeste a tua vida, e agora tens
muito para recuperar, só por causa dessa tua ideia fixa de ser magra.
RAPARIGA – Como não? Foram as primeiras a
incentivar-me a emagrecer.
BULIMIA – Não era para teres chegado a este
ponto.
RAPARIGA – Não estou a perceber.
BULIMIA – Tu foste longe demais nessa obsessão
pela magreza.
RAPARIGA – Claro. A sociedade só me criticava.
ANOREXIA – Porque é que a sociedade era tão
importante para ti?
RAPARIGA – Faziam-me sentir uma porcaria.
BULIMIA – Porquê?
RAPARIGA – Porque humilhavam-me, gozavam-me.
ANOREXIA – Porque é que a opinião deles era
assim tão importante para ti?
RAPARIGA – Porque não me integravam, e eu
sentia-me isolada, sozinha, feia, gorda.
BULIMIA – E os outros, eram iguais a ti?
RAPARIGA – Não. Mas eram mais magros.
ANOREXIA – Achas que gostavam todos da mesma
maneira uns dos outros?
RAPARIGA – Não sei.
BULIMIA – Então porque é que dizes que eles te
isolavam e gozavam?
RAPARIGA – Era o que eles faziam.
ANOREXIA – Alguma vez tentaste aproximar-te
deles, para quanto mais não fosse mostrar-lhes que estavam errados a teu
respeito?
RAPARIGA – Tentei…
BULIMIA – Como é que tentaste?
RAPARIGA – Aproximava-me, a sorrir, mas eles
ignoravam-me na minha cara.
ANOREXIA – Tu é que fugias, porque achavas que
eles te iam rejeitar.
RAPARIGA – Acho que não. Como é que vocês
sabem?
AS DUAS – Não és a única.
ANOREXIA – A tua função era ignorar os outros
e gostar de ti como eras.
RAPARIGA – Mas eles não sabiam que eu não
gostava de mim.
BULIMIA – Na verdade suspeitavam que não
gostavas de ti.
RAPARIGA – Eu nunca falei com eles sobre isso.
E eles também nunca me perguntaram.
BULIMIA – Há outros sinais que eles percebem.
RAPARIGA – E não sabiam ajudar-me?
BULIMIA – E se eles tentassem ajudar-te, será
que tu deixavas?
RAPARIGA – Claro que sim, eu não sou como
eles.
BULIMIA – Não sei.
RAPARIGA – Acho que eles deviam ter dito e
ter-me ajudado.
ANOREXIA – Foi por isso que desaparecemos.
RAPARIGA – Para me fazer sofrer?
AS DUAS – Não.
BULIMIA – Para tu veres que eras tu que não
estavas a deixá-los aproximar-se para te ajudar.
ANOREXIA – A culpa foi tua, não foi nossa.
BULIMIA – Não tinhas de nos seguir, nem de te
deixar influenciar pelos outros.
RAPARIGA – Mas eu gostei tanto de vocês.
BULIMIA – Já sabes que os outros falam sempre.
Mas tens de gostar de ti, o suficiente para não ficares tão afetada com os
comentários.
ANOREXIA – A tua oportunidade de renascer é
agora. Esquece os outros. não prejudiques a tua saúde e a tua vida, para
agradar aos outros, pelos outros.
BULIMIA – O teu vazio interior não vai ser
preenchido pelo excesso de comida, vómito e magreza.
ANOREXIA – Quando aprenderes a gostar de ti e
esqueceres os outros, vais ver a diferença.
BULIMIA – Para quê, ser magra e doente,
infeliz, só para os outros gostarem? tens é de mostrar o teu valor interior.
ANOREXIA – O dentro é que faz toda a
diferença.
BULIMIA – O que os outros falam de ti, não é o
que te alimenta, não te faz feliz. São só opiniões, como tu tens as tuas!
ANOREXIA – Podem não corresponder ao que és
mesmo.
BULIMIA – Escusavas de estar aqui, a receber
vida e alimento por um tubinho.
ANOREXIA – A felicidade está em ti, não no teu
físico, não nos outros.
BULIMIA – Dá valor a ti própria, como és. O
teu corpo é perfeito, como é! Funciona bem, tem tudo no sítio. É teu! Não é dos
outros. os outros têm o deles, se não gostam é problema deles, ou inveja de não
ser como tu!
ANOREXIA – O teu corpo é único, tu és única,
cada um é único, para quê, ser outro, que nem sequer é saudável, para os
outros? cada um tem a sua beleza!
BULIMIA – Enquanto não gostares de ti, e
enquanto puseres os outros à frente, nunca vais ficar satisfeita, nunca vais
ser feliz, e nunca te vais sentir plenamente realizada nem preenchida.
RAPARIGA – Estão a querer dizer que a culpa
foi minha?
AS DUAS – Sim.
RAPAIGA – Isso é muito mau.
ANOREXIA – Mas tem retorno.
BULIMIA – E é a partir de agora.
RAPARIGA – E os meus pais não estão orgulhosos
de mim por eu ter emagrecido?
AS DUAS – Claro que não.
BULIMIA – Estão os dois muito tristes e muito
preocupados. Acham que a culpa foi deles, porque não estiveram atentos, ou que
não te deram amor suficiente.
RAPARIGA – Tristes…? Envergonhados?
AS DUAS – Sim.
RAPARIGA – Isso é muito mau.
AS DUAS – É.
BULIMIA – Mas tem retorno.
ANOREXIA – A partir de agora!
RAPARIGA – O que é que tenho de fazer?
BULIMIA – Cumprir tudo o que as pessoas
especializadas vão dizer-te para fazer.
RAPARIGA – Não são vocês?
AS DUAS – Não.
ANOREXIA – A nossa missão contigo, está
cumprida. Sê forte! Ainda tens uma nova e longa caminhada pela frente, mas
acredita em ti, e em quem te quer ajudar.
RAPARIGA – Não quero! Estou cansada!
ANOREXIA – Agora estás cansada, mas não quer
dizer que te vais entregar ao cansaço, e que vais ficar o resto da vida
cansada.
BULIMIA – Não voltes a brincar com a tua
saúde.
RAPARIGA – E vou ficar gorda outra vez?
ANOREXIA – Gorda não! Com um ar saudável, sim,
um corpo saudável, e uma menina, mulher feliz que gosta dela. Respeitada,
valorizada, bonita.
RAPARIGA – Óh, vocês são tão simpáticas. E
vocês o que vão fazer?
ANOREXIA – Nós vamos estar por aí.
BULIMIA – A ensinar outras jovens e adultas
como tu.
RAPARIGA – Há mais?
AS DUAS – Claro que sim.
RAPARIGA – Eu vou deixar de voa ver?
AS DUAS – Não…
ANOREXIA – Nós vamos visitar-te nos próximos
dias.
BULIMIA – Mas promete-nos que vais recuperar,
que vais gostar de ti, e que vais ficar bem.
RAPARIGA – É difícil.
ANOREXIA – O que é que é difícil?
RAPARIGA – Prometer-vos isso.
AS DUAS – Porquê?
RAPARIGA – Não sei o que fazer.
BULIMIA – Mas vais saber.
ANOREXIA – Sê paciente. As coisas demoram o
seu tempo. Prometes?
RAPARIGA – Vê lá se cumpres, se não, vamos
embora!
RAPARIGA – Óh, por favor… não vão embora. Não
vão abandonar-me aqui, pois não? Depois de tudo o que passamos juntas, aqueles
momentos tão bons, tão nossos…
(As 3 sorriem)
BULIMIA – Não, não te vamos abandonar, mas
vamos encontrar-nos cada vez menos.
RAPARIGA – Não! Vou ficar sozinha?
AS DUAS – Não.
ANOREXIA – Não vais precisar de nós.
BULIMIA – Vais ter muitos amigos, muita gente
a gostar de ti, e a ajudar-te.
ANOREXIA – Vamo-nos encontrar, mas só para
matar saudades.
RAPARIGA – Mesmo?
AS DUAS – Sim.
RAPARIGA – Obrigada por tudo, amigas!
AS DUAS – De nada!
ANOREXIA – É essa a nossa missão.
AS DUAS – Até já.
(Trocam carinhos e abraços)
3ª PARTE
(Monólogo)
Passados uns longos meses…a rapariga está em
recuperação, e escreve uma carta à Anorexia e à Bulimia.
Queridas
amigas Ano e Bu: escrevo-vos da minha casa. Finalmente sai do hospital. Não
reconheci o meu quarto, à primeira. Parece que dormi um sono de meses, ou que
emigrei e voltei.
Ainda é tudo muito novo para
mim, tenho a sensação que nunca estive nesta casa, mas aos poucos, vou
reconhecendo. Depois de vários meses em acompanhamento psicológico,
psiquiátrico e alimentar, exercício físico, passeios, relaxamentos, culinária e
muitas outras atividades, estou quase nova. Irreconhecível.
As refeições com os meus pais
são fantásticas, parece que estão a ensinar um bebé a comer, provar sabores,
comer bocadinhos e horas certas. Vejo que eles estão felizes. Eles são um apoio
incansável.
A minha alimentação sofreu
grandes mudanças, mas sinto-me cada vez melhor, e tanto eu como os meus pais
festejamos todos os mais pequeninos progressos. Cumpri o que vos prometi.
Engordei, quer dizer…recuperei o peso até ao valor saudável e indicado para
mim, de acordo com a altura e idade.
Ainda tomo suplementos
alimentares, mas agora gosto muito de mim. Aprendi que tenho muitas qualidades
que a obsessão pelo peso não me deixava ver.
Agora que estou mais
composta, gosto muito mais do meu aspeto. Todos repararam que estou bonita e
elegante. Sinto-me maravilhosa! Ganhei uma série de amigas, que me têm dado
muito valor, rio muito com elas, saímos muitas vezes, vamos às compras, elas
preenchem-me de carinho. Estou feliz, e não sinto aquele vazio.
Não voltei ao nosso local
secreto, mas também não sinto falta. Gosto mais da luz que há à minha volta, a
que os meus olhos veem. Estou a aprender a gostar da perfeição, imperfeição do
meu corpo.
Eu estava mesmo feia, Ano,
com a pele e o osso, parecia uma radiografia, via os ossos todos. Não gostava
de mim, gorda, nem assim tão esquelética. Estou a aprender a não ligar ao que
os outros dizem, e a perceber as belezas de cada um que se cruza comigo.
Antes ficava ofendida, agora,
sorrio ou ignoro. Talvez fiquem surpresos por ver as minhas mudanças, e se não
virem já não me preocupo. O mais importante é que estou a gostar.
Os profissionais que me estão
a ajudar desde o início, são uns anjos, e tenho conhecido outras raparigas,
bonitas, que estiveram na mesma situação que eu, nas terapias de grupo. Como
aprendo com elas!
Gosto das minhas mudanças e
estou feliz com as minhas vitórias. Registo-as todas, desde as mais
insignificantes, às maiores. Faço os trabalhos de casa que eles marcam.
Alguns fazem-me chorar, no
início antes de escrever, sinto coisas más, mas depois de as escrever e de
falar sobre elas nas terapias, é um alívio. Sinto que cresço e que me
transformo.
Às vezes releio-as, e nem
imaginam como me sinto quando vejo tudo o que passei, tudo o que mudei, o que
melhorei e as descobertas que esse episódio me ofereceu.
Sinto-me mesmo orgulhosa.
Desculpem, amigas. Vou ter de sair para a minha ginástica. Outro dia
escrevo-vos mais, porque acho que também ficarão orgulhosas por todas as minhas
vitórias.
Saudades.
Beijinhos, e até já.
Olha para o espelho, ajeita-se, sorri, manda
um beijo e sai.
FIM
Lara Rocha
(23/Novembro/2019)
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