Era uma vez um gato que passeava sem pressa por cima de um telhado, numa noite gelada de Inverno e cheio de neve.
Era noite de
Natal, e todos estavam em casa, junto das suas famílias.
Mas o pobre gato
estava muito triste, e suspirava:
GATO - Ai! Que tristeza…toda a gente metida no quente, à
lareira, junto dos seus…e a comer…e eu aqui…cheio de fome, sozinho, triste,
abandonado. Ai…! Quem me dera estar ali, ou ali, ou ali…!
Aparece uma gatinha também muito triste pelo
telhado. Os dois gatos olham-se longamente.
GATO - Olá!
GATA - Olá!
GATO - O que fazes por aqui?
GATA - Não sei…se calhar…o mesmo que tu!
GATO - O mesmo que eu? E tu por acaso conheces-me de
algum lado para dizeres que vais fazer o mesmo que eu?
GATA – Eu conheço muito bem os gatos.
GATO – E eu também conheço muito bem as gatas.
GATA – Não…! Vocês são muito mais previsíveis.
GATO – Sabes uma coisa…?
GATA – O quê?
GATO – Digam, o que disseram…acho que nunca saberemos
uns sobre os outros.
GATA – Porque é que dizes isso?
GATO – Porque…o principal…o que interessa mesmo
conhecer, não se vê!
GATA – Estás a falar dos sentimentos, acertei?
GATO – Sim, é isso mesmo!
GATA – É do que vocês mais têm medo, não é?
GATO – Medo? Quem?
GATA – Vocês, gatos.
GATO – Nós…? Com medo…? Nunca!
GATA – Ai não? Que grandes mentirosos.
GATO – E quem disse que estou a mentir?
GATA – Claro que estás!
GATO – Não estou nada.
GATA – Claro, claro…! Comigo escusas de ter máscaras.
GATO – Eu não estou mascarado! Onde estás a ver as
máscaras?
GATA – No teu focinho, e nos teus olhos.
GATO – O que tem o meu focinho?
GATA – É focinho de gato mentiroso…quer dizer…mascarado!
GATO – Não percebo o que dizes!
GATA – Porque não assumes os teus sentimentos?
GATO – Que sentimentos?
GATA – Os teus, é claro.
GATO – Ora, não sei onde queres chegar.
GATA – Porque é que eu já sabia! Fogem sempre ao assunto
dos sentimentos.
GATO – Eu não fujo de nada. Nem dos sentimentos.
GATA – Claro que não…sou eu quem fujo!
GATO – Talvez.
GATA – Porque não os reconheces…?
GATO – A quem?
GATA – Aos teus sentimentos.
GATO – Não tenho isso.
GATA – Ai não? Então, és o quê? Uma pedra…? Um ramo de
árvore? Uma gota…? Até esses têm os seus sentimentos.
GATO – Mas porque é que queres saber isso?
GATA – Para quebrar o gelo que está aqui à nossa volta.
GATO – Quebrar o gelo? Como vais fazer isso? Só se
fizeres xixi em cima dele, ou se saltares para ele partir.
GATA – Ai, mas que ignorância!
GATO – És uma gata muito culta…
GATA – Sim, e sou mesmo!
GATO – Pois, mas eu não.
GATA – Já percebi…mas não quer dizer que fiques inculto
o resto da tua vida!
GATO – In…quê?
GATA – Sem saberes nada…!
GATO – Áh! Eu sou muito burro.
GATA – Desculpa? Eu estou a falar com um gato, não é com
um burro…! Não tenho nada contra os burros…aqueles animais da quinta,
orelhudos, e peludos, que carregam coisas até aos olhos…coitados.
GATO – Eu não sei nada!
GATA – Porque não queres…! Podes sempre procurar e
saber…perguntar a quem sabe, ler…
GATO – Tu sabes ler?
GATA – Claro que sei.
GATO – Mas eu não!
GATA – Eu posso ensinar-te.
GATO (sorri) – Adorava, mas acho que não consigo.
GATA – Mas que disparate…nunca experimentaste…como podes
dizer que não és capaz?
GATO – Foi o que sempre me disseram.
GATA – E tu acreditaste?
GATO – Sim…porque eram pessoas muito importantes para
mim.
GATA – Mas não quer dizer que as pessoas mais
importantes para nós, estejam sempre certas, ou saibam sempre tudo!
GATO – Achas que elas iam mentir-me?
GATA – Com certeza…e porque não?
GATO – Mas porque me mentiriam?
GATA – Eles podem ter dito isso, só porque estavam
chateados, ou tinham inveja de alguma coisa tua, e resolveram mascarar-se com
esse disparate!
GATO – Mas…
GATA – Tens de experimentar. Primeiro passo…queres?
GATO – Sim, quero!
GATA – Muito bem. Segundo passo… (o gato interrompe)
GATO – Mas o que estás aqui a fazer, sozinha a esta
hora?
GATA – Não mudes de assunto!
GATO – Acho que agora quem está mascarada és tu!
GATA – Não!
GATO – Então porque não dizes o que estás aqui a fazer a
esta hora, sozinha?
GATA – Mas isso é assim tão importante para ti?
GATO – Sim! Talvez…eu possa ajudar-te?
GATA – Não…acho que não…está bem! Ando a vaguear.
GATO – E porque não estás em casa?
GATA – Porque hoje é noite de Natal, e fui posta fora de
casa, porque há uma espécie de…humanos…que não me suporta, e os simpáticos dos
meus donos, puseram-me fora da porta. E tu, moras aqui?
GATO – Óh, mas isso não se faz.
GATA – Para nós, gatos, tudo é muito mais fácil.
GATO – Se tens donos, eles não te deviam pôr fora da
porta, pelo menos…és como se fosses um membro da família, não?
GATA – Eu achava que sim, mas agora não tenho a mesma
certeza! Mas, e tu?
GATO – Eu sou vadio…durmo por aí, como por aí…
GATA – Estás a olhar para aquelas casas, cheias de
gente, não estás?
GATO (suspira)
– Confesso que sim.
GATA – Querias estar ali, com eles, não era?
GATO – Sim, era! No quente da lareira, sossegado,
acompanhado, valorizado, alimentado, acarinhado…mas não…estou aqui fora, ao
frio, com fome, sozinho!
GATA – É triste! Desculpa…disseste…sozinho?
GATO – Sim, disse sozinho! Óh…desculpa…agora tenho-te
aqui.
GATA – Até me estava a sentir desprezada.
GATO – Óh, não…não era essa a minha intenção. Mas…tu não
gostavas de estar em casa, assim como eles?
GATA – Claro que gostava! Mas sou pacata, e da paz…por
isso, não me apetece lutar, nem protestar…em breve, terão a paga por isto, e
sentirão a minha falta, espero eu…
GATA - E tu, o que fazes aqui?
GATO - Olha, vim…desabafar.
GATA - Com quem?
GATO - Com a lua, sei lá!
GATA - Com a lua?
GATO - Sim, com a lua…não sabes quem é?
GATA - Sei. Está mesmo à nossa frente. Entendo-te! Eu
também desabafo muito com ela.
GATO – Mas será que ela nos ouve?
GATA – Ouve, sim!
GATO – Mas não responde!
GATA – Claro quer não…quer dizer…pelo menos por
palavras, mas ela responde de outra maneira.
GATO – Responde? Qual?
GATA – Com a sua luz, o seu brilho, as suas várias
formas…
GATO – Mas eu nunca ouvi nada!
GATA – Porque tens o coração magoado e essa dor, não te
deixa ouvir, nem ver.
GATO – Ui…achas que eu tenho algum problema de saúde?
GATA – Não! Eu estou a falar nas feridas provocadas pela
tristeza.
GATO – Áh! Está bem.
GATA – Estás triste, não estás?
GATO – Sim, estou! E tu?
GATA – Também.
GATO – O Natal para mim, nunca foi feliz, é sempre
assim!
GATA – Eu já tive Natais felizes…mas este…
GATO – Os teus donos deviam ter vergonha.
GATA – Também acho. Sabes uma coisa?
GATO – O quê?
GATA – Qual era o teu maior sonho de Natal?
GATO – Era…Huummm…passá-lo com alguém…com muitos gatos e
gatas, dentro de uma casa, com um enorme banquete, e uma lareira…! E o teu?
GATA (sorri) – O meu também! Quer dizer…tenho muitos mais
sonhos, mas neste momento, era esse.
GATO – Acho que o nosso sonho vai ficar mesmo aqui. Não
passará de um pequeno floco de neve!
(Os dois suspiram, aparece o Pai Natal)
PAI NATAL – Mas o que temos aqui?
(Os dois gatos olham assustados)
GATOS – Pai Natal?
PAI NATAL
(sorri) – Sim, sou eu…boa
noite!
GATOS
(sorriem) – Boa Noite.
PAI NATAL – Mas que tristeza é essa?
GATO – É a tristeza de ser um gato vadio, de passar o
Natal sozinho, fora de casa…
GATA – Expulsa…
PAI NATAL – Estão um com o outro. Quem te expulsou?
GATA – Os meus…donos. Eu achava que eram meus donos, mas
puseram-me fora, só porque uns tais…não sei quem…da família deles, não gostam
de gatos, são alérgicos ao meu pelo…é tudo inveja de certeza!
PAI NATAL – Que coisa mais feia! Isso não se faz, muito menos
numa noite de Natal.
GATO – Inveja? De ti…? Por favor…
GATA – Sim, de não ter roupas, carteiras ou sapatos com
o meu pêlo ou pêlos dos meus semelhantes.
GATO (ri) – Estou a ver…
GATA – Até tu a querias não?
GATO – Dá para fazer cobertores?
GATA – Infelizmente sim.
GATO – Deve ser bem bom!
GATA – Como é que sabes?
GATO – Eu já tive namoradas…todas tinham pêlos
espantosos…cheirosos…
GATA (sorri) – Sim, nisso tens toda a razão…somos todas
estupendas…afinal até sabes apreciar!
GATO – Já te esqueceste que sou burro?
GATA – Deixa esse animal em paz!
PAI NATAL – O quê? Onde está o burro?
GATA – Está nas quintas por aí.
PAI NATAL – Então, estes gatico, deve estar com uma crise de
identidade! Oh, oh, oh…
GATO – O que é isso?
PAI NATAL – É tu não saberes se és um gato ou se és um burro.
GATO – Áh! E o Pai Natal, o que acha?
PAI NATAL – Eu acho que és um gato! Quer dizer, tenho a
certeza.
GATA – É claro que és um gato!
PAI NATAL – Porque estão tão zangados um com o outro?
GATO – Desculpe, Pai Natal, estamos muito tristes.
PAI NATAL – Não são amigos?
GATOS – Somos.
PAI NATAL – Já se conheciam antes?
GATOS – Não!
PAI NATAL – Mas não podem dizer que estão sozinhos, estão um
com o outro, são dois gatos.
GATOS – Sim.
GATA – Mas a frieza dele, é tanta que parece que
continuo sozinha.
GATO – O quê?
GATA – É isso mesmo.
GATO – Mas…estamos a falar…conhecemo-nos agora há pouco
tempo, o que querias que eu fizesse contigo?
GATA – És muito mascarado!
GATO – Outra vez a máscara…?
GATA – Sim, tu tens máscaras…tens medo de mostrar os
sentimentos, e de falar deles.
GATO – Pai Natal, importa-se de traduzir o que ela
disse?
PAI NATAL – Huummm…oh, oh, oh…se bem entendi, ela está a
reclamar a tua masculinidade!
GATO – A minha quê?
PAI NATAL – O teu carinho, a tua atenção…
GATO – Mas…eu não a estou a tratar mal.
PAI NATAL – Mas ela quer que te chegues mais perto dela.
GATO – Para quê?
PAI NATAL – Óh, valha-me todos os anjos…
GATA – Pai Natal…não lhe pode oferecer uma luz, como
prenda? Para ver se ele fica mais inteligente, e mais próximo?
PAI NATAL
(ri-se) – Oh, oh, oh…vou
oferecer-vos uma prenda melhor.
NARRADORA – O bondoso Pai Natal, estala os dedos, e aparece
no terraço do telhado duas lindas casas pequenas, mas com tudo o que existe
numa casa, muitos confortáveis, com lareira, cama, sofá, cozinha e casa de
banho. Mantas por todo o lado, almofadões e mobília, comida à farta, janelas e
água, e luz. Os dois gatos ficam maravilhados.
GATA – Áh!
GATO – Áh!
GATA
(sorridente) – Estou a sonhar…?
PAI NATAL (ri)
– Não…é uma casa verdadeira. Este foi
o vosso desejo, lembram-se?
GATOS
(felizes) – Sim!
GATO
(sorridente) – Ááááhhh…muito mais
do que eu imaginava e desejava! Não vou ter de dormir mais por aí, nem
aquecer-me nos carros ou debaixo dos candeeiros, nem…nas saídas de ar dos
parques de estacionamento, ou nas soleiras das portas! (p.c) Áh! Não vou ter de
andar mais por aí a comer o que me dão…nem…Uau! Tenho uma casa, quente com
lareira e tudo…e…casa de banho…! Áhhh…Pai Natal…nem sei como te agradecer.
(Pai Natal sorri)
PAI NATAL
(feliz) – Vocês merecem. Feliz
Natal…!
GATOS
(sorridentes) – Feliz Natal…!
NARRADORA - Os dois gatos abraçam-se e lambem-se
carinhosamente, felizes, e entram na casa um do outro. Enquanto mostram as
casas um ao outro, entusiasmados e felizes, o Pai Natal põe uma linda mesa com
uma cobertura, cheia de luzinhas, velas e um belo banquete, com música ambiente,
e duas simpáticas duendes para servir.
PAI NATAL
(sorridente) – Bichanos…hora de
jantar.
NARRADORA – Os dois ficam boquiabertos, de tão encantados.
GATO – Áh…estarei a sonhar?
GATA – Então eu também estou a sonhar!
GATO – Estamos a ter os dois o mesmo sonho?
GATA – Sim!
DUENDE 1
(simpática) – Por favor,
instalem-se meus queridos!
GATO – Óh, mas o meu aspecto mede medo!
DUENDE 2
(simpática) – Ora, o aspecto
exterior não importa…o que importa é a luz que brilha nos teus olhos e no teu
coração.
GATO
(sorridente) – Óh, que lindo isso! É
um elogio?
GATA E DUENDES
– Sim.
GATO – Eu…não sei elogiar!
GATA – Mas sabes dar abraços com alma, sinceros,
apertados…!
GATO – A sério?
GATA (sorri) – Sim…o teu…foi o melhor abraço que eu já recebi em
toda a minha existência…! E já dei muitos abraços, mas este teu…foi especial. Talvez…por
ser Natal, ou…por eu estar mais sozinha…!
(O gato sorri vaidoso)
GATO – Esta está a ser a noite mais feliz da minha
existência…pela tua presença, e por este presente!
GATA – Isto é lindo! Áh…que maravilha! Nunca vi nada
assim.
GATO (sorri) – Lindo mesmo! Parece que estamos num mundo à
parte!
GATA (sorri) – Pois é.
GATO – Mas…isto é só hoje, ou é para sempre?
PAI NATAL
(sorridente) – Claro que é para
sempre…pelo menos, enquanto vocês quiserem. Estas casas estarão sempre aqui
para vocês!
OS DOIS
(sorridentes) – Muito obrigada,
Pai Natal.
PAI NATAL
(feliz e sorridente) – Até breve.
O Pai Natal distribui as prendas pelo bairro,
enquanto os dois gatinhos sentam-se à mesa, e deliciam-se com os pratos
saborosos que as duendes servem, numa conversa muito animada. Depois de tudo
comerem, os dois gatos vão para o terraço ver a paisagem, e as luzes, de patas
dadas, bem juntinhos a olhar para a Lua.
GATA (sorri) – Que linda Lua.
GATO (sorri) – Sim. É linda como tu…e como esta noite. (Os
dois sorriem). Vais voltar para os teus donos?
GATA – Claro que não…vou apenas agradecer-lhes o que
fizeram por mim. Queres vir?
GATO – Como vais fazer isso?
GATA – Vais ver…vou escrever um bilhetinho, na neve à
porta deles.
Os dois gatos vão a casa onde viveu a gata, e gata
escreve com a patinha numa folha de um bloquinho que a menina tinha na sua
casinha de brincar, com os bonecos no jardim, e onde a gata também costumava
estar: «muito obrigada por tudo o que fizeram de mim, e por tudo o que me deram
de bom. Sejam felizes, e tenham saúde. Gostei muito de vocês, e gostarei mesmo
depois de me terem chutado. Estarão sempre no meu coração! Até um dia destes…se
me quiserem procurem-me…» Pinta a patinha e carimba. As lágrimas caem-lhe pelos
olhos.
GATA (a
chorar) – Fui muito feliz
aqui! Tenho muito boas recordações.
GATO (triste) – Queres ficar?
GATA (a
chorar) – Não.
GATO (triste) – Se vais ter saudades deles, ou se vais ficar
triste por causa deles, fica aqui. O meu desejo já realizei, e porque é um
desejo…dura apenas uma noite. Se me quiseres, sabes onde estou!
GATA – Não! Eu vou contigo, para a minha casa! Serei muito
feliz, contigo, como vizinho e como amigo!
GATO – E o que vais fazer com as saudades?
GATA – Quando as sentir…entrego-as embrulhadas numa nuvem
à Lua!
GATO – Mas estás tão triste…não te quero ver assim à
minha beira.
GATA – Não te preocupes, isto passa já.
GATO – Comigo nunca te sentirás só.
GATA (sorri) – Eu sei.
Os dois sorriem, abraçam-se e voltam para as suas
casas. No dia seguinte, todos a procuram, mas não a encontram.
Será que algum
dia vão reencontrar-se? Acham que a gatinha perdoou os seus donos?
Acham que os
dois gatos foram muito felizes? Sim…tornaram-se amigos inseparáveis, e viveram
momentos muito felizes, divertidos, românticos, e quando a tristeza batia à
porta de algum deles…puderam sempre contar um com o outro, e embrulhar a
tristeza ou a saudade numa nuvem e entregar à Lua, que também esteve sempre
presente.
FIM
Lara Rocha
(14/Dezembro/2013)
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