Monólogo para adolescentes e adultos; homossexualidade; amizade; Tentativa de suicídio; ideação suicida; respeito; acolhimento,
Era uma vez uma rapariga que estava em depressão, e não encontrava outra solução a não ser suicidar-se. Encontra-se numa ponte do Porto a olhar para o rio, numa grande angústia a chorar. Um jovem rapaz passa por ela, olha para ela, e pressente qualquer coisa de estranho.
ELE - Estás bem?
Ela estremece:
ELA - Empurra-me! Atira-me daqui abaixo. Por favor.
ELE - O quê? Já vi que não estás bem.
ELA - Empurra-me! Apareceste na altura certa para eu realizar a minha vontade.
ELE - Qual é a tua vontade?
ELA - Eu vou atirar-me daqui abaixo.
ELE - Era só o que faltava!
ELA - Até tu apareceste para isso.
ELE - Achas? Nem nos conhecemos. Mas não vou deixar que faças essa loucura.
ELA - Não estou cá a fazer nada...O vazio em mim é maior que este rio. A tristeza é do tamanho desta cidade.
ELE - Vazio, tristeza... que conversa é essa?
ELA - Esquece...! Só se o sentisses, saberias. Anda lá... empurra-me, ou atira-me daqui abaixo.
ELE - Olha para mim. Vamos conversar. Por favor.
ELA - Só quero que me atires lá para baixo.
Ele dá-lhe a mão e vira-a para ele. Os dois ficam ali uns segundos a olhar-se fixamente.
ELA - Que pena só teres aparecido agora, no meu fim....até podíamos ter sido amigos. Seremos se calhar na minha próxima reencarnação.
ELE - Que conversa. Eu não vim aqui por acaso, nem para te atirar lá para baixo...onde já se viu? Uma rapariga tão bonita, com todo o respeito e sinceridade, ter essas ideias estúpidas...nem penses que vou deixar que faças uma loucura dessas... vamos conversar!
ELA - Já é tarde, não há nada para conversar. Atira-me.
Num impulso, ele encosta-a a ele, abraça-a, e ela rende-se, entrega-se aos seus braços, desata a chorar, abraçada a ele. Ele acaricia-a.
ELE - Estás mesmo numa grande angústia, num grande sofrimento. Mas eu estou aqui. Fala comigo!
ELA - Não te vou chatear com as minhas coisas... acho que nunca nos vimos antes... mas... o teu abraço é bom. Nem quero saber se vais interpretar mal, mas é bom. Senti-me bem nos teus braços. Acho que é panca da minha cabeça.
Ela abraça-se outra vez a ele.
ELE (sorri, sereno) - É para os meus braços que te vais atirar sempre que quiseres, daqui para a frente, e eu vou empurrar-te para eles, sempre que perceber que precisas.
ELA (ainda a chorar) - Porque é que estás a fazer isto, se não nos conhecemos?
ELE - Ora essa... não nos conhecemos antes, mas a partir de agora podemo-nos conhecer. Estou a fazer isto porque o que tu ias fazer, não se faz. Porque quero conversar contigo. Porque não gosto de ver meninas a sofrer tanto, porque...não sei mais.
ELA - Nada disto faz sentido.
ELE - O que tu ias fazer, não, não faz sentido. Para! Por favor! É aqui, é nesta vida, no hoje que tens a tua missão, seja ela qual for, e não é esta de certeza. É hoje, é nesta vida que tens de lutar e fortalecer-te, não te entregues à tristeza. Há muita coisa à tua volta. Há muita gente que precisa de ti, só precisas de te abrir e deixar de mergulhar nessa tua escuridão.
ELA - Eu não faço falta a ninguém.
ELE - Outra vez...?
ELA - Nem tu estás para me aturar.
ELE - E quê? Fazes futurologia, é? Para dizer o que estou para fazer? Eu já sou grandinho, sei bem o que quero, e o que faço, e porque o faço.
ELA - Mas eu disse-te que me atirasses lá para baixo.
ELE - E eu já disse que nunca faria isso.
ELA - Porque não?
ELE - Porque não! E também já disse porque não. Para de dizer asneiras, e vamos conversar. Prometes?
ELA - Já que fazes tanta questão... não sei para quê, se me vou atirar daqui abaixo.
Ele encosta-a outra vez a ele, ela abraça-o.
ELE - Faz-me um favor...
ELA - Vais-te atirar comigo...?
Ele ri-se:
ELE - Mau... já não estou a gostar dessa conversa... estás proibida de repetir esses disparates, combinado?
ELA - E o favor, qual é?
ELE - É esse! Vamo-nos sentar ali, e conversar, ok?
ELA - Não vais gostar... eu sou um cubo de gelo.
ELE - Não faz mal, eu gosto de gelo...não tenho medo do gelo. No fim digo-te se gostei ou não.
Os dois sentam-se num banco de pedra, a ver o rio. Primeiro em silêncio.
ELE - Saboreia esta água...ouve...
Os dois ficam em silêncio.
ELE - Agora...começa a falar-me de ti. Tudo o que te incomoda.
ELA - Vais-te afastar de mim.
ELE - Ai, que paciência...(troca os olhos)! Fala. Depois vês, se me vou afastar de ti.
ELA - Mas só me apetece chorar...
ELE - Boa! Não interessa. Podes fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
ELA - Começo por onde?
ELE - Por onde quiseres. O que eu quero é que fales...
Ele vira-se para ela, e ela começa a falar. Ele ouve-a atentamente, ela chora e fala. Depois cala-se.
ELA - Desculpa. Já falei demais.
ELE - Isso és tu que estás a dizer, não sou eu. Eu não me queixei.
Olham-se fixamente.
ELA - Porque é que estás a olhar assim para mim?
ELE (sorri) - Já acabaste?
ELA - Sim. Desculpa.
ELE - O quê?
ELA - A seca!
ELE (ri-se) - Se eu tivesse sede, tinha ido beber. (Os dois riem)
ELA - Falei tanto...
ELE - E não era o que eu queria...?
ELA - Sim.
ELE - Então, qual é a cena?
ELA - E tu, vais falar-me de ti?
ELE (sorri) - Queres ouvir-me?
ELA - Sim. Já que nos encontramos... e já que eu falei tanto de mim...
ELE (ri) - É justo! Sim, claro que sim, vou falar-te de mim.
Ele também partilha com ela muitas coisas. Descobrem muitos pontos em comum, riem juntos. No fim, ela está mais animada.
ELE (sorri) - Gosto do teu sorriso.
ELA (sorri) - Obrigada. O teu também é simpático e sereno.
ELE (sorri) - Obrigado. Como te sentes agora?
Silêncio. Ele olha para ela.
ELA - Acho que... melhor!
ELE - Até levava a mal se dissesses o contrário. Eu gostei deste bocadinho.
ELA - Obrigada pela tua paciência.
ELE - Vamos dar por ai uma volta?
ELA - Queres a minha companhia?
ELE (irónico) - Não... é por isso que te estou a convidar.
Ele abana a cabeça e ri-se.
ELA - Está bem.
Os dois levantam-se, e começam a caminhar lado a lado devagar.
ELA - Já estás cansado não?
ELE - Eu? Cansado? De quê? Já sei qual é a tua resposta...não, não estou cansado.
Ela sorri. Continuam a conversar e a rir. Param de vez em quando, olham-se, e sorriem. Ele mostra-lhe coisas bonitas, ela sorri. Ela diz onde mora, e moram relativamente perto um do outro. Antes de se separarem, param à entrada de casa dela. Trocam contactos, e prometeram encontrar-se mais vezes.
ELE - Estás melhor?
ELA - Sim. Acho que sim... não sei como te agradecer!
ELE - Deixa lá isso. O que eu quero é que não voltes a ter aquelas ideias estúpidas, e que me prometas que qualquer coisa, vais ligar-me, ou falar...! Prometes?
ELA - Não quero estar sempre a melgar-te.
ELE - Nem vou responder...
ELA (ri-se) - Que simpático...
ELE (ri) - Achas que merece resposta isso?
ELA (ri) - Não sei.
ELE (ri) - Não. Não merece... mas isso é isso, e tu és tu Qualquer coisa, estou aqui.
Olham-se fixamente a sorrir.
ELA (sorri) - Sou um gelo, não sou?
ELE (ri) - Ai... eu não senti frio. (Os dois riem) És um ser especial. Só te peço: tem calma, e não faças merda... desculpa o termo. Não te esqueças que só o hoje interessa, amanhã já é outro dia, e será melhor...só depende de ti. No que depender de mim, já sabes que farei com que os teus dias sejam melhores, mas tu é que tens a maior responsabilidade, e toda a liberdade de aceitar ou não...! Aquela ponte foi para nos unir, e não para nos separar. Só quero que te atires para os meus braços, sempre que quiseres.
ELA (ri) - Gostei muito do teu abraço! Obrigada.
Ele abraça-a, ela deixa-se ficar no abraço dele, a sorrir. Ele dá-lhe um sonoro beijo na cara, faz-lhe uma festinha.
ELE - Até já.
ELA - Até já.
Sorriem. Ele dá-lhe a mão.
ELE - Estou contigo!
ELA (sorri) - Obrigada, anjo!
ELE (ri-se) - Não sou anjo, sou homem, de carne e osso, como tu. Estou na terra como tu.
Riem.
ELA - Tu percebeste...
ELE (ri) - Sim... fica descansado.
Ele dá-lhe um beijo na mão, e vai para casa dele. Nesse mesmo dia, voltam a falar-se, e nasceu uma linda, forte e sincera amizade entre eles.
VOZ-OFF - Na terra existem anjos, disfarçados, que aparecem às vezes de forma inesperada e transformam toda a vida de pessoas que sofrem. Qualquer um de nós pode ser um anjo para outro, com a sua presença, atenção, carinho, dedicação e amizade. Numa sociedade solitária, são muitos os casos de tentativas de suicídio, pelo vazio intolerável, pela falta de realização pessoal e de tempo para construir relações de amizade. Construir uma amizade, demora o seu tempo, mas esta pode nascer, às vezes a partir das pessoas que nos parecem mais distantes ou mais indiferentes. A indiferença é outra causa de tantas tentativas de suicídio. Pedidos de ajuda que são ignorados. É importante estar atento, quando surgem, e não deixar essa pessoa sozinha. E qualquer um de nós pode ser um anjo que liga uma pessoa a outra, e à vida.
FIM
Lara Rocha
(11/Fev/2020)