MONÓLOGO
PARA ADULTOS
Anjos
de asas verdes
março 18, 2018
(Sorriso)
Anjos de asas verdes...é assim que trato, aqueles ferros que nos protegem de
ti! A mim e a muitas outras mulheres. Nem sei se poderão chamar-nos mulheres! (aumenta
a intensidade da raiva, à medida que o texto vai desenvolvendo)
Dizem-nos
que...fomos mulheres, e talvez tenhamos sido, enquanto éramos livres. Porque já
fomos livres, sim, antes de vocês predadores, abutres devoradores de carne
podre, nos prenderam às vossas garras.
Primeiro
fizeram-nos a dança da conquista, nupcial, sedutora, com as vossas penas
negras, brilhantes, a balançar e a rodar de um lado para o outro, ao ritmo do
bater do vosso coração apaixonado. (grita) Que nojo!
Ainda
ouço as tuas palavras falsas, que guardavam o veneno da paixão e a anestesia da
mesma. Anestesia, isso mesmo! Só podia ter sido anestesia.
Aquelas
tuas palavras (sorri) áááááhhhhh…cheiravam-me a mel. Que delícia,
tudo era um sonho, tu… irresistível, lindo, elegante, de roupa preta, sexy, de
olhar penetrante. Agora tenho medo dessa tua imagem, que teima em aparecer nos
meus sonhos. Talvez, por ser a memória mais feliz que tenho de ti. Abutre!
Comeste-me tudo, e eu nem me apercebi.
Como
foi possível, mas que idiota! (grita com ela própria) Que
estupida. Parecia uma adolescente ingénua, apaixonada. Como é que isso foi
acontecer? (irritada) Onde é que eu estava com a cabeça? Em ti,
por isso é que não vi o que se escondia por trás daquela máscara cheia de
veneno.
Monstro!
O homem que eu amava, que era o meu príncipe encantado, o meu orgulho.
Destruíste-me, com esse teu poder de ave necrófaga.
Nojento.
Ááááááááááhhhhhhh… sinto nojo de ti e de mim ainda mais. Nojo é a palavra mais
simpática que encontro, agora, neste momento em que não sei, não sabemos o que
somos…Nem sabemos se somos! Alguma coisa seremos…. Com sorte!
Anjos
de asas verdes...estes que nos cercam, de cuidado, de amor, e de respeito, como
pássaros na gaiola. Nestas asas temos tudo o que tu e todos os outros, não nos
deram.
Mas
antes pássaros na gaiola, do que objetos nessas tenazes que chamam de mãos...(revoltada)
Não são mãos, não podem ser mãos...Depois de tanto mal que nos fizeram...!
Nunca nos deram as mãos com que sempre sonhamos, aquelas mãos que seguravam as
nossas, que nos acariciavam, que nos faziam ir à lua de prazer e explodir de
felicidade. O sonho de qualquer mulher. As mãos com que sempre sonhamos, e
desejamos, aquelas mãos que merecíamos, não fazem mal. Não magoam, são usadas
para nos fazer sentir bem, para nos oferecer pequenos mimos, para nos colocar
anéis ou alianças, para nos escreverem bilhetinhos românticos. As mãos que
dávamos como garantidas, afinal, não eram mãos.
Porque
as mãos não fazem mal, e o que é que vocês nos fizeram? Mal. Usaram essas
malditas garras de abutres para nos rasgar inteiras e no maior número de
pedaços que conseguiram. Mais outra ilusão, que conseguiram passar-nos com a
vossa dança feiticeira, nupcial: mãos…pensávamos que tinham mãos, e víamos
mãos, acreditávamos nas mãos que víamos.
Elas
não passavam afinal de mais uma armadilha para nos caçar, e magoar. Na verdade,
vocês não tinham mãos, nem tu, nem os outros, das outras que estamos aqui. (grita enojada) Tinham outra
porcaria qualquer. Sim, porcaria, porque o abutre tem aquelas garras com
certeza infestadas de bactérias, fungos e vírus mortais. (respira
ofegante e volta a acalmar, sorri).
Anjos
de asas verdes...São os braços que deveriam ser teus, que pensei
serem meus, aqueles braços...que me envolveram e depois… Que me
espancaram até ficar sem fôlego, que apertaram o meu pescoço. (grita,
agarrada ao próprio pescoço) Ainda sinto, não consigo esquecer, a dor e
o sufoco de querer gritar e de tentar lutar com todo o meu corpo, ou gritar.
Ainda
sinto os teus malditos alicates a apertar-me cada vez mais e com a outra mão a
dar-me socos na cabeça. Quase sem respirar e sem força. E tu, ainda a carregar
mais, a bater-me em tudo quanto era pedaço de corpo. (deita-se no chão,
revoltada, grita, chora, dá socos no chão, agarrada ao pescoço, enrosca-se, e
fala deitada, ofegante). Maldito! (grita cheia de ódio e raiva.
Respira e acalma-se, sorri, estica-se e abre todo o corpo)
Que
bom que é respirar agora livremente, áh! Como é indescritível este momento em
que estou num quarto sozinha, a esfregar-me no chão, porque quero, a sentir o
chão, porque quero! Como é bom sentir este espaço todo à minha volta. Áh! Não
há dinheiro que o pague. Aqui não tenho braços que se transformaram noutra
coisa qualquer. Sim, coisa! Foi como sempre nos trataram, enquanto estivemos
convosco.
O
que fomos? Não existem palavras para dizer o que fomos...se é que alguma vez
fomos, o nosso cérebro apagou tudo, talvez com a porrada que nos deram. Tenho a
sensação que eramos felizes! Como qualquer outra mulher, bem tratada, estávamos
cheias de sonhos que pensávamos realizar, inspiradas nos desenhos animados e
filmes de princesas. Quantas vezes quis ser como elas. E tínhamos direito a
isso, a ser tratadas como princesas.
Quando
passamos a ser vossas…o que fomos? Nem nós sabemos. Não fomos nada! (sorri)
Anjos de asas verdes... Aqueles ferros verdes, frios, crus, que nos protegem
das mãos que se deveriam juntar com as nossas, num ato de amor. Aquelas mãos que
receberam a aliança, e agora recebem algemas!
(gargalhadas eufóricas de grande felicidade) Áh, áh, áh…
nem imaginas a felicidade que senti quando me disseram que finalmente estavas
na jaula (gargalhada) Que maravilha. Uma jaula para abutres. Deve
ser lindo. (gargalhadas) E daí, deve ser uma visão dos infernos,
tudo escuro. Estão numa jaula de luxo, porque vocês deviam estar numa
fogueira…esse sim, era um grande prémio. Ou num buraco cheio de pregos ou
picos, acorrentados…sei lá…!
Agora…numa
jaula com tudo…mesmo assim, já fiquei feliz. Se depender de nós, todas juntas, (irritada
e com ódio) chegou a vossa vez de comerem carne podre, nojentos… a
vossa própria carne, ou definhar e apodrecer de fome.
Vão
pagar cêntimo, por cêntimo. Áh, áh, áh (gargalhadas) E nós, cá
fora, seremos umas novas mulheres. Sim, depois de sermos restos, seremos
mulheres completas.
É
para isso que estes anjos de asas verdes estão a trabalhar com todo o amor.
Nós, cá fora, a poder respirar o ar, a sentir calor e sol, vento e chuva, e
vocês lá, naquela jaula a despedaçarem-se, ou a devorarem-se uns aos outros… (com
ódio) É pouco!
Se
depender de nós, todas as que aqui estamos, nunca mais na vossa vida vão sair
dessa jaula chiquérrima! (respira ofegante, sorri) Anjos de asas
verdes, eles são a nossa casa, não aquela casa de sonho, que ia ser minha e
tua, e delas...Mas aquela casa, que me salva! Que nos salva! Anjos de asas
verdes, são aqueles seres que nos fazem acreditar e trazem esperança de que
somos alguém!
Anjos
de asas verdes, são aqueles ferros que nos mantém longe de ti, de vocês, de
quem um dia sonhamos ficar ao lado, para sempre! Anjos de asas verdes, são aqueles
seres que nos abrem os olhos todos os dias, que tentam tirar a dor que
causaste, causaram...Mas a dor não sai! É uma dor que não tem cura. Pelo menos
trazem-nos todos os dias, sorrisos doces, paz, abraços carinhosos e sinceros, enquanto
a noite não chega.
Anjos
de asas verdes, são aqueles seres, que partilham o mesmo sítio que eu, que nós....
Que abrem os seus braços para acolher os nossos.... Aqueles braços que te
deviam envolver, mas tu partiste-os. Aqueles braços que te aconchegariam, mas
tu destruíste!
Esses
anjos de asas verdes, são os que nos fazem acreditar que ainda há
pessoas...boas! Anjos de asas verdes, são aqueles que nos fazem acreditar num
hoje bom, e num amanhã melhor! Longe de ti, com quem sonhei ser princesa amada!
Anjos
de asas verdes...Almas boas que protegem, almas vagas, ou sem almas...Anjos de
asas verdes, que transportam a esperança, de ser uma mulher...Aquela que dizias
amar, e afinal destruíste...(raiva) Aquela a quem pedias desculpa,
por cada maldade...E depois, voltavas a fazer o mesmo.
Como
se as desculpas fossem concertar a destruição causada! (sorri) Esses
anjos de asas verdes, trazem-nos a esperança de amanhã sermos mulheres, sempre protegidas
por essas asas de anjo. Um dia destes serei gente...E quem sabe o que tu
serás...?
(ódio,
nojo e raiva) Nacos de carne podre para alimentar abutres.
Talvez...Não quero saber! Um dia...saberei de ti.... Quem sabe!
Serei,
seremos...umas novas mulheres. Aquela que conheceste, e que dizias amar...mataste-a.
Destruíste-a. Já não existe! Aliás, talvez nunca tenha existido. Já não sei
mais quem fui... Quem era...Sei mais ou menos quem sou, agora! Sou um ser em
criação e em construção. Um dia.... Quem sabe...pode ser que a encontres longe,
muito longe. Numa outra galáxia.
Até
lá, quero aproveitar cada milímetro de mulher que serei, cada milésimo de
segundo que desperdicei ao teu lado, agora em liberdade, sem ti. Juntas,
mostraremos o que vocês perderam. Talvez nunca aprendam, desde que permaneçam
nessa jaula de luxo, para nós já não nos interessa. Juntas, seremos o que nunca
fomos convosco. (grita) Mulheres!
(Pelas
mulheres vítimas de violência doméstica, para que encontrem sempre anjos de
asas verdes, ou de outra cor qualquer, que as protejam e que as façam renascer
fortes, independentes…mulheres!)
Lara
Rocha
Dezembro/2019
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