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quinta-feira, 24 de março de 2016

Filipe o vencedor

NARRADORA – Era uma vez um boneco de pano que vivia numa pequena aldeia com muitos outros bonecos. Já há muitos dias que ele ouve alguém a chorar, mas não sabe onde. Decide ir procurar com mais atenção. Vai pela floresta, e procura em tudo quanto é tocas, flores, árvores, matagais de plantas, folhas, ramos, até atrás das cascatas, mas não encontra nada. Muito intrigado volta para casa, atento a tudo, e a andar devagar, mas no caminho não encontra nada.
FILIPE – Mas de onde virá este choro…? Eu estou a ouvir, e parece-me perto, mas não encontrei nada! Continuo a ouvir chorar.
NARRADORA – Na manhã seguinte, Filipe decide continuar a procurar, mas agora por água. Pega numa folha de árvore de palmeira, grossa, senta-se em cima dela, e começa a remar com dois pauzinhos que apanha.
FILIPE – Por favor, alguém aqui da água, sabe dizer-me de onde vem este choro?
NARRADORA – Ninguém lhe responde. O choro ouve-se mais perto. O pobre Filipe a meio do caminho apanha umas águas mais agitadas, e rodopia com a folha, salta, anda descoordenada, de um lado para o outro. E ouve-se uma voz.
VOZ (ameaçador) – Quem és tu?
FILIPE (assustado) – Foi você que quase me afogou agora?
VOZ (ri) – Sim. Com certeza.
FILIPE – Mas porque é que fez isso?
VOZ – Porque no meu território não entra qualquer um.
FILIPE – O quê?
VOZ – Este espaço é meu.
FILIPE – Desculpe…eu não sou um qualquer. Além disso, que eu saiba aqui não é território privado.
VOZ – Mas é. Tudo isto é meu.
FILIPE – Mas eu não vi nenhuma placa ali atrás que dissesse que esta é propriedade com dono.
VOZ (grita) – Cala-te! Não procures explicações…volta para trás.
FILIPE – Não pode fazer isso.
VOZ (grita) – Quem és tu para dizer o que posso e o que não posso fazer?!
FILIPE – Porque é que não me deixa passar?
VOZ (grita) – Vai para outro lado.
BONECA DE LATA (grita da janela) – Pai…o que está a fazer…?
VOZ – Cala-te…não te metas.
FILIPE – Desculpe…isso não é maneira de falar com a menina.
BONECA DE LATA – Pai… deixe-o passar…!
VOZ (grita) – Volta para o salão.
BONECA DE LATA (grita) – Não…!
(Os dois bonecos olham-se fixamente, sorridentes).
BONECOS (sorridentes) – Olá.
FILIPE (sorri) – Uau, que linda!
BONECA DE LATA (sorri) – Ai, que fofinho.
FILIPE – Por acaso sabe de onde vem um choro?
VOZ – Não, não sei.
BONECA DE LATA (grita) – Sou eu.
VOZ (grita) – Vai-te embora. E tu também…lá para dentro.
FILIPE – Pare de falar assim com a menina.
VOZ (grita) – Não te metas, pirralho.
FILIPE – Porque é que está a falar assim com ela?
VOZ (grita) – Eu só estou a protegê-la. Aqui não passa qualquer um.
FILIPE – Mas eu não sou qualquer um.
VOZ (grita) – Para trás.
BONECA DE LATA (grita) – Não. Fica.
VOZ (grita) – Lá para dentro…e tu…rua…para trás.
FILIPE – Por favor, deixe-me passar…eu tenho de ir atrás de alguém que está a chorar há muitos dias…pode estar a precisar de ajuda.
BONECA DE LATA – Sou eu que choro há muitos dias. Fica…por favor!
VOZ (grita) – Cala-te. Aqui não há ninguém a chorar…volta lá para trás.
BONECA DE LATA (grita) – Leva-me contigo!
NARRADORA - Filipe estende a mão, e a Boneca de pano tenta agarrar, mas o pai da boneca de lata, vira a folha da palmeira, e o boneco cai à água. A boneca de lata chora, e o Pai leva-a quase a rastos.
FILIPE (zangado) – Voltarei, linda boneca!
BONECA DE LATA (grita) – Socorro…!
FILIPE (grita) – Voltarei muito em breve! (p.c) Não chores.
NARRADORA – Filipe fica com pena da boneca. Sai da água muito chateado, saltita, pendura-se num tronco de uma árvore e faz alguma ginástica.
FILIPE (zangado) – Estou tão pesado, que quase não me consigo mexer…! Brutamontes. (p.c) Pobre menina…! (p.c) Mas eu vou-te tirar daí, e não tarda nada, vais ver.
(Uma gaivota ri-se)
FILIPE (chateado) – Estás-te a rir de quê?
GAIVOTA (a rir) – Nada…!
FILIPE – Nada, nada…eu nado…já nadei, já. (p.c) Estás-te a rir de mim, eu sei.
GAIVOTA (a rir) – Deixa-me adivinhar…foste expulso pelo pai da boneca…?!
FILIPE (chateado) – É…esse brutamontes. Coitada da boneca…é tão linda…teve muito pouca sorte. É pai dela?
GAIVOTA (a rir) – Infelizmente sim.
FILIPE (chateado) – Eu derrotou-me desta vez, mas das próximas não vai conseguir…!
GAIVOTA (ri) – Não é proibido sonhar…!
FILIPE (chateado) – O quê…? Achas que não consigo?
GAIVOTA (ri) – Ainda ninguém conseguiu.
FILIPE (chateado) – Não quer dizer que eu não consiga.
GAIVOTA (ri) – Aquele não é fácil de dobrar. (p.c) Não te quero desanimar, mas ele é muito louco…possessivo…faz tudo para ficar com a filha…não deixa que ninguém se aproxime dela…e a pobre rapariga anda triste.
FILIPE – Ele prende-a?
GAIVOTA – Sim. Para a proteger…
FILIPE – Mas, como é que ela a protege?
GAIVOTA – Não deixa que ninguém se aproxime, para não se apaixonarem da menina. (p.c) Ele é muito mau…!
FILIPE – Sim, deu para reparar. (p.c) Mesmo assim eu vou tentar.
GAIVOTA – Fazes bem…se fazes mesmo questão.
FILIPE – Sim, eu gostei muito da menina.
GAIVOTA – Olha que ela também não é bem o que parece.
FILIPE – Isso é até ela me conhecer. (p.c) Os outros não souberam conquistá-la.
GAIVOTA – Deves ter razão.
FILIPE – Sim, tenho a certeza. Ela também não dever ser assim como parece, porque o pai não a deixa respirar.
GAIVOTA – Sim, tens razão. Mas ele não quer que a filha sofra.
FILIPE (chateado) – Ora essa! (p.c) Toda a gente sofre, mais dia, menos dia. E de certeza que ele também sofreu…até encontrar esta.
GAIVOTA – Sim, claro que sim! (p.c) Teve muitas namoradas…! Ele derrotou todos os pretendentes da filha, e não gostou de nenhum.
FILIPE – Ele não pode fazer isso!
GAIVOTA – Ele acha que pode.
FILIPE – Olha, podes-me fazer um favor…?
GAIVOTA – Diz…
FILIPE – Leva uma flor à boneca…diz que fui eu que mandei, e que voltarei.
GAIVOTA – Está bem. Escolhe uma…e eu entrego-a pela janela.
FILIPE (sorri) – Boa, obrigada.
NARRADORA - Ele apanha várias flores, e coloca no bico da gaivota. A gaivota pousa na beirada da janela do quarto da boneca de lata, que fica com um sorriso de orelha a orelha, e escreve um bilhetinho para o boneco de pano. A gaivota entrega e o boneco lê:
FILIPE – Obrigada pelas flores! São lindas. Desculpa, o meu pai. Volta! Beijos.
NARRADORA – O Filipe fica sorridente e saltita de alegria.
FILIPE (sorridente) – Boa…ela gostou das flores.
GAIVOTA – Claro…porque não haveria de gostar?
FILIPE (sorri) – Pois. Não sei. (p.c) E escreveu – me um bilhetinho.
GAIVOTA (sorri) – E muito bem. (p.c) É bem-educada e sensível.
FILIPE – Sim.
GAIVOTA – Agora é melhor ires para a tua casa, já está a ficar tarde…tens de ir almoçar. Vai por aqui, que secas.
FILIPE – Pois, e o meu barco ficou todo destruído.
GAIVOTA – Vê se paras mais atrás, e vem a pé…se não, o pai dela dá cabo de ti outra vez.
FILIPE – Tens razão…obrigada pela sugestão.
GAIVOTA – Vê lá…não desafies o homem…olha que ele não é pêra doce.
FILIPE – Não tenho medo nenhum dele. (p.c) Hei-de lutar com ele até ele ceder…e vou vencer.
GAIVOTA – Vai…! Descansa. (p.c) Vou contigo até ali.
FILIPE – Está bem, se fazes questão.
GAIVOTA – Sim.
FILIPE – Obrigada.
NARRADORA – A gaivota acompanha Filipe em silêncio. Filipe estremece de frio.
GAIVOTA – Deixa-me aquecer-te. Anda, sobe para o meu lombo, e cobre-te com as minhas penas maiores.
FILIPE – Não te preocupes…eu estou bem.
GAIVOTA – Não sejas teimoso. Olha para ti, pareces uma vara verde.
FILIPE – Deixa estar…eu aguento. Sou de pano.
GAIVOTA – Deixa-te de coisas e sobe. Queres ver outra vez a tua amiga, não queres?
FILIPE – Sim, claro que sim.
GAIVOTA – Então sobe e agasalha-te.
FILIPE – Pronto, está bem.
GAIVOTA – Boa.
NARRADORA – O boneco de pano cobre-se com as penas da gaivota, e esta leva-o a casa. Agradece, e convida a gaivota para jantar. Depois de uma longa conversa, e já de noite, a gaivota regressa a casa, e o boneco vai dormir. Madrugada alta, ouve novamente o choro da princesa e acorda sobressaltado.
FILIPE – Princesa…! (p.c) Não chores mais…vou buscar-te em breve. (p.c) E vou fazer-te muito feliz.
NARRADORA – Na manhã seguinte, o Filipe acorda cheio de energia, pega numa casca de carvalho e vai pelo riacho fora, convencido que era desta que iria salvar a sua boneca de lata adorada. Infelizmente, as coisas não correram bem como ele gostaria…o malvado pai da boneca voltou a fazer das suas, e fez o barquinho improvisado, dar voltas, e mais voltas, e saltos, dentro de água, tão rápido, que o pobre boneco ficou enjoado. A gaivota agarra-o e tira-o da água. Ele não consegue levantar-se de tão tonto que está, e tosse.
FILIPE – Ai, onde estou…?
GAIVOTA – A caminho da tua princesa.
FILIPE – Ai…estou a ver tudo a andar à roda…estou enjoado.
GAIVOTA – É natural, depois de tanta volta…!
FILIPE – Mas o que é que aconteceu?
GAIVOTA – O teu adorado rival, mais uma vez não permitiu que tu chegasses perto da filha dele.
FILIPE (Grita de raiva) – Ááááááááhhhhhh…desgraçado. (p.c) Outra vez?! (p.c) Mas este homem é um monstro…que coisa horrível.
GAIVOTA – Não é fácil.
FILIPE (zangado) – Mas o que é que ele quer ao fazer isto?
GAIVOTA – Quer ter a filha o resto da vida.
FILIPE (resmunga) – Mas ele não pode fazer isso.
GAIVOTA – Pois não…mas sabes, ele é muito estranho.
FILIPE (zangado) – Voltou a vencer-me…maldito! (p.c) Mas não vai vencer outra vez. (p.c) Da próxima, eu é que ganho.
GAIVOTA – Olha, é melhor desistires, querido.
FILIPE (grita) – Nem pensar.
GAIVOTA – Estás a pôr a tua vida em risco, para nada.
FILIPE (grita) – Para nada, não…para ter a minha princesa!
GAIVOTA – Desculpa. Acho que não te vale a continuar.
FILIPE (grita) – Vale sim…! E eu vou conseguir.
GAIVOTA – Ele não vai ceder. E vai fazer-te ainda pior.
FILIPE (grita) – Isso é o que vamos ver.
GAIVOTA – Não te apresses, nem arrisques a tua vida. (p.c) Talvez ela nem seja como tu gostarias, ou como tu imaginas.
FILIPE – Pode não ser como eu quero ou imagino, mas tenho de falar com ela, para saber se é ou não.
GAIVOTA – Certo, mas ele não vai permitir.
FILIPE – Não tenho medo dele.
GAIVOTA – Não insistas, que é pior.
FILIPE – Pior, é ela continuar ali presa por causa das ideias estúpidas do pai dela. (p.c) Ele não vai levar a melhor.
GAIVOTA – Coitadinho…deve ter sido de tanta água que engoliu, acha que vai fazer milagres.
FILIPE – Vais ver.
GAIVOTA – Está bem…! (p.c) Se precisares de mim, estou aqui.
FILIPE – Obrigado.
NARRADORA – Depois de recuperado, Filipe volta para o seu canto, e mete-se numa casquinha de noz, pelo riacho. A Gaivota assiste a tudo pousada num ramo de uma árvore, e está inquieta. O malvado pai da princesa volta a impedi-lo de entrar, rodopiando-o e projectando-o contra uma árvore.
VOZ – Teimoso.
GAIVOTA (preocupada murmura) – Ai, pobre Filipe…no que te foste meter…!
FILIPE (grita) – Não vai vencer.
GAIVOTA (murmura) – Ai, não…! (p.c) Cede, desgraçado…se não, ele acaba contigo…!
VOZ (grita) – Deixa a minha filha em paz…fica bem longe dela.
FILIPE (grita) – Não pode fazer isto.
GAIVOTA (murmura) – Rende-te Filipe…deixa-o lá no canto dele. 
VOZ (grita) – Quem manda aqui sou eu.
GAIVOTA (murmura) – Pois…!
FILIPE (grita) – Não é correcto o que está a fazer. Não pode prender a sua filha.
GAIVOTA (murmura zangada) – Ai, que nervos…! Vou ter de fazer alguma coisa…! Desiste, Filipe…desiste…é melhor para ti…! (p.c) Estás a apressar as coisas…!
VOZ (grita) – Quem és tu para me dizer o que posso ou não fazer…? Pirralho…!
FILIPE (grita) – Não vai vencer…!
GAIVOTA (murmura) – Não acredito…ainda está a enfrentá-lo…! (p.c) Cala-te Filipe…não provoques mais o homem…!
FILIPE (grita) – Pode-me ter derrotado estas vezes todas, mas não vencerá mais.
VOZ (grita) – Estás-me a provocar?
FILIPE (grita) – Interprete como quiser.
GAIVOTA (murmura) – Ele está louco…acha que é o super poderoso…!
VOZ (grita) – Vai-te embora!
GAIVOTA (murmura) – Também acho.
FILIPE (grita) – Não vou embora coisa nenhuma. E hei-de voltar quantas vezes forem precisas.
VOZ (grita) – Estás a deixar-me muito nervoso… (p.c) Põe-te a andar!
FILIPE (grita) – O que é que vai fazer se eu não for embora…?
VOZ (grita, nervoso) – É melhor nem saberes. (p.c) Vai-te embora…estou a avisar-te para isto não acabar mal.
GAIVOTA (grita) – Vai-te embora, Filipe…deixa as coisas acalmarem!
FILIPE (grita) – Não vou!
GAIVOTA (grita, nervosa) – Teimoso…estás a arriscar a tua vida, com esse teu orgulho.
FILIPE – Não estou a fazer nada de mais…! Ninguém vai acabar comigo.
VOZ (muito nervoso, grita) – Vai-te embora de uma vez…!
FILIPE – Não vou!
VOZ (grita) - Não sei o que te faço, mas não vai ser bom, garanto-te.
GAIVOTA (nervosa, grita) – Não te armes…vai-te embora a bem e a salvo…olha que ele não é meigo.
FILIPE – Eu não tenho medo (grita) Porque é que está a fazer isso com a menina…? (p.c) Ela tem todo o direito de ter amigos…
VOZ (grita) – Quem és tu para me dizer o que eu posso ou não fazer…principalmente com a minha filha…?
FILIPE – Ela não é só sua filha…a sua esposa também a fez…mesmo assim, não lhe dá o direito de a prender ai…
GAIVOTA (nervosa) – Teimoso…és muito louco!
FILIPE (grita) – Porque é que está a sufocá-la e a proibi-la de ter amigos…? Não está correcto.
VOZ (grita) – Ora, ora…amigos…o que é isso…? O melhor amigo dela sou eu.
FILIPE (grita) – Não, você é pai dela…! (p.c) Mas ela pode ter muitos mais amigos…e tem de ter. 
VOZ (grita) – Cala-te.
FILIPE (grita) – Não vê que a sua filha está a sofrer?
VOZ (grita) – Ela sofrerá se tu andares por aqui.
FILIPE (grita) – Não…ela sofre, porque você não a deixa respirar…não a deixa ter amigos.
VOZ (grita) – Cala-te…não sabes o que dizes.
FILIPE – Porque é que é tão mau?
VOZ (grita) – Eu não sou mau…só estou a fazer isto para proteger a minha filha.
FILIPE – Francamente…! (p.c) Se nunca teve amigos, azar o seu…agora…não tem que obrigar a sua filha a passar pelo mesmo. (p.c) É muito provável que não tenha tido um único amigo, da maneira que é…! (p.c) Mas certamente a sua filha terá milhares de amigos, e não tem nada que a proibir…a si também não o proibiram. (p.c) E se o proibiram…gostou disso? (p.c) E a sua filha merece isso…?
GAIVOTA (murmura) – Não posso acreditar no que estou ouvir…!
VOZ (nervoso) – O que é que tens a ver com isso? (p.c) Eu faço o que entender. (p.c) Bem, amigos…tenho alguns! (p.c) Desaparece!
FILIPE – Nunca. (zangado) Aliás… porque é que o senhor não aparece? (p.c) Tem medo de me enfrentar é?
GAIVOTA (murmura) – O quê? (p.c) Deve ter sido da porrada…ele não está bom daquela cabeça…!
VOZ (surpreso) – Queres ver-me?
FILIPE – Sim, apareça se faz favor.
VOZ – Mas…
FILIPE – Mas, o quê? Apareça imediatamente. Eu quero falar consigo olhos nos olhos.
VOZ – Ora…!
GAIVOTA (murmura) – Este gajo é louco…!
FILIPE – Por favor…Pai…!
(Pequeno silêncio, Voz comovido)
VOZ – Chamaste-me Pai…?
FILIPE – Sim. Desculpe se o ofendi.
VOZ – Não, não…! (p.c) Desculpa, eu é que fiquei sensibilizado…!
FILIPE – Apareça por favor…pelo menos fale comigo antes de me mandar outra vez embora. Ou de fazer mal…! (p.c) Eu quero conhecê-lo.
VOZ – Pronto…está bem…já que insistes…! (p.c) Mas se fizeres alguma coisa de mal contra mim, vais-te arrepender.
FILIPE – Por favor…! É claro que não lhe vou fazer mal. Só quero conversar consigo.
VOZ – Está bem…
GAIVOTA (murmura) – Ele vai já aparecer…espera sentado, Filipe. (p.c) Ele quer é apanhar-te e dar cabo de ti.
NARRADORA – Abre-se o portão, e sai de lá um homem forte, barbudo, alto e de cabelos ainda pretos.
GAIVOTA (boquiaberta, surpresa murmura) – Ááááááhhhh…Não acredito! (p.c) Ele apareceu mesmo…! (p.c) Algum Santo vai cair do altar. (p.c) O que é que vai acontecer agora, contigo…pobre Filipe.
VOZ – Onde estás?
FILIPE – Aqui…ao pé da árvore.
GAIVOTA (nervosa) – Ai, ai, ai…!
NARRADORA – O Rei atravessa o riacho, e vai ter com o Filipe. A gaivota fica atenta e inquieta. Os dois olham-se fixamente. Filipe sorri, estende a mão.
FILIPE (sorri) – Bom Dia, Pai.
VOZ (sorri) – Bom Dia…! Como te chamas?
FILIPE (sorridente) – Filipe. E o Pai?
VOZ (sorridente) – Chamo-me Hugo.
FILIPE (sorridente) – Muito gosto em conhecê-lo.
VOZ – Igualmente…
FILIPE (sorridente) – Sente-se por favor…!
GAIVOTA (murmura) – Não…! Não pode ser…! (p.c) Aquele carrancudo quadradão…aqui sentado debaixo da árvore, com alguém que vem atrás da sua filha…! (p.c) Ááááááhhhh…!
NARRADORA – Os dois têm uma longa e emotiva conversa. A Gaivota fica estupefacta, a ouvir a conversa, e até comovida. A boneca de lata assiste de cima, inquieta, preocupada, sem perceber o que estão a falar.
FILIPE – Entendo o que sente.
VOZ – Óh, meu filho…eu não presto, pois não?
FILIPE – Não diga isso…não acredito nisso.
VOZ – Eu faço a minha filha sofrer…isso é de monstros.
FILIPE – Mas não faz de propósito…!
VOZ – Eu nunca tinha falado sobre estas coisas a ninguém.
FILIPE – Ainda bem que falou.
VOZ – Mas tu agora ainda me vais odiar mais…
FILIPE – Nada disso.
VOZ – Eu sou horrível.
FILIPE – Não…é apenas inseguro…e ama a sua filha, como qualquer pai. (p.c) Eu se calhar se fosse pai quereria proteger a minha filha, mas também não a impedia que tivesse amigos.
VOZ – Eu sei, filho, eu sei.
FILIPE – Eu sei que o Pai é um bom coração.
VOZ (comovido) – Óh, meu filho…nunca ninguém me disse isso.
FILIPE – Porque o pai sempre mostrou um ar ameaçador, de mau…e porque não mostrava o seu lado carinhoso, e sensível que eu sei que tem…?
VOZ – Porque me proibiram…mas arrependi-me muitas vezes, e tenho um pouco de vergonha de ser assim tão arrogante, mas é mais forte que eu.
FILIPE – Não se preocupe. Eu entendo.
VOZ – Pensei que ias desistir!
FILIPE – Não. (p.c) Só lhe peço…dê um pouco mais de liberdade à sua filha…e deixe-a conhecer-me…pelo menos como amigos. (p.c) Se ela quiser conhecer-me.
VOZ – É…tu pareces-me bom moço.
FILIPE – Pode ter a certeza que sim. (p.c) Olhe, até pode sair connosco esta tarde, para ter a certeza que não faço mal à sua filha.
VOZ – Não…filho…acho que não é preciso. Eu dou-te o meu voto de confiança.
FILIPE – Muito obrigado. Tenho a certeza que não se vai arrepender.
VOZ – Filha…desce…!
NARRADORA – A boneca de lata desce, contente, e sorridente. Ao ver Filipe fica um pouco envergonhada. A Gaivota ainda está em estado de choque com a surpresa transformação do Rei.
GAIVOTA (murmura) – Ai, mas o que é que está a acontecer aqui…? (p.c) Este não é o mesmo Rei…! (p.c) Até as minhas penas se arrepiam todas…até…levantam…Uuuuuuiiii…! (p.c) Que medo!
VOZ – Apresento-te o Filipe.
GAIVOTA (surpresa, murmura) – Ááááááhhhh…a princesa fora do castelo para conhecer um rapaz…! (p.c) Nunca aconteceu antes!
FILIPE (sorridente) – Olá…! Muito prazer.
BONECA DE LATA (sorridente) – Olá.
VOZ – Querida…este rapaz quer conhecer-te…!
BONECA DE LATA (sorridente) – E tu deixas, Papá?
GAIVOTA (murmura) – Ai, ai, ai…!
VOZ – Sim, se o quiseres conhecer, eu deixo.
GAIVOTA (surpresa) – Sim, ele deixa…?! Ááááhhh…! (p.c) Devem-lhe ter dado qualquer coisa.
BONECA DE LATA (sorridente) – Sim…!
FILIPE – Se quiser pode ficar…! Pai…!
BONECA DE LATA (intrigada) – Pai…?
GAIVOTA – Pai?
VOZ (vaidoso e sorridente) – Não, filho…fiquem à vontade.
FILIPE (sorridente) – Muito obrigada, Pai…! (p.c) Qualquer coisa estamos aqui.
VOZ (sorridente) – Muito bem. Até já.
FILIPE (sorridente) – Até já.
NARRADORA – O Pai retira-se, e os dois bonecos, olham-se, sorridentes.
BONECA DE LATA – Como é que conseguiste isto?
FILIPE (sorridente) – Eu disse que ele não ia vencer-me.
GAIVOTA (ri) – E venceu mesmo…! O raio do rapaz…teve jeito para o levar…!
BONECA DE LATA (ri) – Mas como conseguiste isto…? Ele fez-te mal…!
FILIPE (sorridente) – Por trás daquele grosseirão…está um homem sensível, magoado, meigo…bom…que faz-se de mauzão para te proteger…e tem um coração de manteiga…! (p.c) Tive uma longa conversa com ele…ele falou-me da infância dele…e da família…de tudo. (p.c) Só precisa que sejam meigos com ele, para ele se transformar numa pessoa completamente diferente. Ele só é assim…cruel…para que reparem nele…coisa que nunca fizeram antes…enquanto ele era pequeno…e nunca lhe deram valor, a não ser quando ele era autoritário. (p.c) Eu chamei-lhe de Pai…! (p.c) Coitado…ficou emocionado, todo derretido…já não parecia o mesmo.
GAIVOTA (ri) – Realmente…!
BONECA DE LATA – É. Ele até é bom connosco…mas às vezes também é muito mauzinho.
FILIPE – Ele é preocupado…! E possessivo…tem medo de te perder…!
NARRADORA – Enquanto os dois pequenos conversam alegremente, o Rei Hugo olha-se ao espelho, triste, e relembra toda a conversa com o boneco de pano, Filipe.
VOZ (triste) – Óh, que vergonha.
(Aparece a rainha)
RAINHA – Então, querido…estás aqui tão sozinho…!
REI – Estou a pensar…
RAINHA – Estás triste…!
REI – Eu sou uma porcaria não sou?
RAINHA – O quê? Claro que não…! (p.c) Quem disse isso?
REI – Eu estava a fazer a nossa filha sofrer…
RAINHA – Sim, isso é verdade…eu já te tinha dito…mas ela sabe que não é por mal.
REI – Eu fiz umas maldades a todos os que queriam ser amigos dela…! E fugiram. Menos um…! (p.c) O que está lá fora.
RAINHA – Está lá fora um rapaz…para a nossa filha?
REI – Sim. Esse decidiu enfrentar-me…e sabes uma coisa…deu-me a volta!
RAINHA (sorridente) – Mas isso é maravilhoso…meu amor.
REI – Eu sempre fui muito mau, não fui?
RAINHA – Sim, muitas vezes foste mauzinho…mas eu nunca deixei de gostar de ti.
REI – Mas não gostas quando sou mau pois não?
RAINHA – Não.
REI – Eu sei.
RAINHA – Mesmo assim, nunca nos maltrataste. (p.c) Só que gritas muito, e és demasiado agarrado a nós… (p.c) Mas não é por mal.
REI – O que eu faço é muito mau.
RAINHA – Mas, querido…nós compreendemos-te.
REI – Sabes porque é que eu sou mau?
RAINHA – Porque nos queres proteger…!
REI – Quero proteger-vos…mas o que eu faço…não se justifica. É demais. Sou severo demais. (p.c) Até impeço as nossas filhas de terem amigos…!
RAINHA – Sim, realmente, fazes umas coisas que são exageradas, mas o que vamos fazer…?!
REI – Eu só fazia isso…para que reparassem em mim…para que me dessem valor…! Mas estava errado.
RAINHA – Sim…?!
REI – Sim. Aquele rapaz é que me fez descobrir isso.
RAINHA – Como?
REI – Eu falei-te da minha infância?
RAINHA – Sim. Mas essa parte não me contaste…
REI – Então vou contar-te.
NARRADORA – O Rei conta à Rainha. A Rainha ouve atentamente, fica boquiaberta, espreita a janela, e vê os dois pequenos a falar alegremente.
REI – Desculpa querida.
RAINHA – Não faz mal, meu amor.
REI – Eu não quero mais que reparem em mim, por eu ser mau…quero mostrar como realmente sou…
RAINHA (sorri) – E acredita que toda a gente te vai amar como és…esse homem lindo, doce, calmo, meigo…por quem me apaixonei, e depois…mudou…!
REI – Mudei para pior, não foi? (p.c) Não tenhas vergonha de dizer…
RAINHA – Sim, mudaste para pior…mas esse lado, sei que ainda existe, só que não queres mostrar…!
REI – É. Não queria mostrar…mas estou a sentir-me mal…sufocado…preso…velho…um monstro…
RAINHA – Tu és lindo…sempre foste…por fora e por dentro.
REI – Vou deixar de ser…! Esta coisa…! (p.c) Quero voltar a ser o homem que conheceste, antes deste…!
RAINHA – Que lindo (sorri) Óh, meu amor…tenho muito orgulho em ti.
REI – Obrigado.
(Filipe grita)
FILIPE – Pai…venha passear connosco…!
(O Rei abre um grande sorriso, e sai com a Rainha).
REI – Não vou atrapalhar?
FILIPE – Não…! Venha…! Olá Rainha…mas que bela senhora…com todo o respeito…!
REI (sorridente) – Aaahhh…? Diz lá…que não tive bom gosto…?
(A Rainha ri, um pouco envergonhada)
FILIPE (sorridente) – Muito bom. (p.c) Venha também…!
RAINHA (sorri) – Obrigada pelo convite…mas tenho um chá com umas amigas…
FILIPE (sorridente) – Como quiser… (p.c) O Pai vem?
REI (sorridente) – Sim, vou…! (p.c) Desculpa ter sido muito antipático contigo, filho!
FILIPE (sorri) – Não faz mal. Já passou.
REI (sorridente) – Gosto muito de ti, mas vê se tratas bem da minha filha…!
FILIPE (sorridente) – Claro que sim, não se preocupe.
BONECA DE LATA (feliz, suspira e um enorme sorriso) – Ai, Papá…estou tão feliz…que bom…agora consigo respirar…!
REI (sorri) – Eu sei, minha filha…desculpa este carrancudo…a partir de agora tens liberdade total…
BONECA DE LATA (contente) – Boa…! Obrigada, Papá.
RAINHA – Qualquer coisa, podes sempre contar com os teus pais, na mesma…lembra-te que o sofrimento e as decepções fazem parte do crescimento. Temos de os ultrapassar.
BONECA DE LATA (sorri) – Sim, eu sei, Mamã.
FILIPE – Fique descansado que isso não vai acontecer. (p.c) Vamos…?
REI (feliz) – Vamos. (p.c) Até já, querida…pede para preparar um lanche…quando voltarmos.
RAINHA (feliz) – Claro…! Até já…bom passeio…aproveitem. (p.c murmura) Ora, que maravilha…ter o meu namorado de volta…finalmente ele transformou-se outra vez no que era quando me conheceu…era tão bom… (p.c) Quando casamos…transformou-se num ser mau…se calhar foi o poder que lhe subiu à cabeça…era arrogante, frio, distante…pouco dedicado…e possessivo com as meninas…! (p.c) Mas o que é que terá acontecido para ele mudar desta maneira…? (p.c) O que é que o rapaz lhe terá feito…?! (p.c) Bem…seja o que for…ainda bem que o fez. Há pessoas que nos fazem revelar o que há de mais autêntico e de melhor em nós, outras vezes…somos obrigados a mostrar o que há de pior em nós.
GAIVOTA (sorri, feliz) – Parabéns, Filipe…! Conseguiste o que nunca ninguém tinha conseguido… (p.c) Tocaste no coração dele. (p.c) Debaixo daquele ar pesado e brutamontes, existe um outro homem, que implorava por sair, mas a infância dele não permitiu… (p.c) Ainda estás a tempo, Rei. (p.c) Mostra esse homem camuflado que grita para sair a toda a hora…e larga essa máscara de homem das cavernas, que te fica horrivelmente mal…! (p.c) Quantas vezes usamos máscaras horríveis, e somos monstruosos uns com os outros…nesta correria do dia-a-dia, e da luta constante uns com os outros…?! (p.c) Em cada máscara de monstros com quem nos cruzamos muitas vezes, todos os dias, há sempre um outro ser…coberto pelas regras, sufocado pelas críticas, pelo medo…! (p.c) E se nos dedicarmos, descobrimos essas máscaras bonitas…! (p.c) Muito bem…belo truque, Filipe…foi com a tua delicadeza, e paciência e meiguice, que permitiste que a máscara de monstro caísse, e que se mostrasse o outro Rei.
NARRADORA – Mas que grande mudança este Rei sofreu…! O Filipe conseguiu mesmo tirar a princesa do Castelo onde vivia presa, pelo medo do pai. (p.c) O Rei deu um passeio como nunca antes tinha acontecido…com os dois jovens, com muitas gargalhadas, conversas, brincadeiras…parece que até rejuvenesceu. Filipe começa a frequentar o castelo todos os dias, e a conviver muito com a boneca de lata e a sua família. O Rei confiava totalmente em Filipe, e tinha longos e agradáveis serões com ele. As filhas, e a mulher, nem queriam acreditar no novo pai que estavam a ver…muito mais simpático, muito mais meigo, muito mais aberto, divertido, permissivo, descontraído, brincalhão. Filipe era sempre muito bem recebido. Todos se tornaram muito mais felizes. Com o passar do tempo, a amizade entre a Boneca de Lata e o Boneco de Pano cresceu, tornou-se mais forte, mais bonita, e transformou-se em paixão…uma paixão linda, verdadeira…os dois decidem casar, e a família do Boneco de Pano vai viver com eles, para o Castelo da Boneca de Lata. Todos se tornaram grandes amigos, e todos conviviam alegremente.
FILIPE – Eu disse que ia vencer…! (p.c) Por muito difícil que as pessoas vos pareçam no inicio, não custa conversar, e conhecê-las mais profundamente…o mais provável é que tenham surpresas muito agradáveis…à medida que vão descobrindo. (p.c) Há coisas que vivemos, que nos marcam para sempre…tanto que…em Adultos, as coisas de criança ainda permanecem em nós, e muitas vezes usamos essas coisas como defesa, ou isso constitui-se como um obstáculo, contra a nossa vontade…! (p.c) Mas a amizade e o Amor verdadeiros, podem anestesiar essas marcas, e ajudar as pessoas a tornar-se melhores. (p.c) Viram como consegui dobrar o meu sogro…que me fez maldades…no inicio, mas depois de uma longa e emocionante conversa, eu percebi porque é que ele era assim tão mau…e da noite para o dia…transformou-se numa pessoa completamente diferente…na que já era…mas estava debaixo de uma capa disfarçada, de mauzão…para repararem nele… (p.c) felizmente percebeu que era muito melhor que reparassem nele…no ser que estava debaixo da máscara. (p.c) Não devemos usar umas máscaras tão artificiais, apenas para que reparem em nós…! (p.c) É melhor sermos reconhecidos pelo valor que temos…pelo que temos de bom…e pelo que somos de bom… (p.c) Mesmo que nem sempre sejamos valorizados e reconhecidos por isso… (p.c) O mais importante é que nós mesmos nos sintamos bem, felizes, em paz…e tranquilos, porque fizemos alguma coisa de bom por alguém. (p.c) Pelo menos…tentamos… (p.c) Demos a conhecer a nossa luz…se o outro não a quer receber… (p.c) Já é com ele, mas para nós, deve ser um motivo de felicidade, mesmo que no fim, nos pisem. (p.c) Por muitos obstáculos que apareçam, não desistam. Algum dia, esses obstáculos transformam-se em luz, força e sucesso! (p.c) A conquista pode demorar algum tempo, ou muito…mas não desistam…no amor e noutra circunstância qualquer.

FIM!
Lálá 
(20/Dezembro/2012)




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