foto de Lara Rocha
Era uma vez uma vila de pescadores, com as casinhas em cima
da areia e vista para o mar de qualquer lado. Era pacata, até um dia…tudo muda.
Os habitantes começam a ouvir vozes vindas do mar. Uma jovem rapariga vai à
janela refrescar-se, numa noite quente de Verão, e ouve uma voz de mulher
fininha, a cantar, numa língua que não era portuguesa.
JOVEM - Uau! Que voz tão bonita. Quem canta assim?
NARRADORA - Ela olha para o mar. Não se vê ninguém na praia, nem no
mar, apenas se ouve a voz.
JOVEM - Quem me dera ter assim uma voz! – Suspira, e olha outra vez
para a praia – Mas quem canta assim, tão bem? Não está ninguém na praia!
(A sua mãe aparece).
MÃE - O que estás a fazer de pé? Pareces uma alma penada.
JOVEM - Mãe ouve esta voz!
MÃE - Que voz?
JOVEM - Esta… que voz tão linda!
(A mãe não ouve nada).
MÃE - Não ouço nada.
JOVEM - Agora também deixei de ouvir.
MÃE - Como ouviste uma voz a cantar se não está ninguém na praia?
JOVEM - Não sei, mas eu estava a ouvir.
MÃE - Óh, vai mas é dormir que o teu mal é sono…já não são horas
de estares à janela.
JOVEM - Estava com calor.
MÃE - Mas vai dormir, que até já estás a ouvir coisas que não
existem. Isso é sono.
JOVEM – Se eu a ouvir outra vez, chamo-te.
MÃE – Está bem…ai de ti que me acordes para ouvir o que não ouço…!
JOVEM – Vais ouvir…
MÃE – É. Vou ouvir para dentro…deita-te, que a voz desaparece.
JOVEM – Porque não acreditas no que eu estou a dizer?
MÃE – Porque não ouço nada. Dorme.
(A mãe vai deitar-se, e a jovem também, ouve-se o som muito forte, as
duas levantam-se sobressaltadas)
AS DUAS – O que foi isto?
(A mãe acorda o marido, e este resmunga)
MARIDO – O que foi?
MULHER (assustada) – Ouvi um barulho muito estranho.
MARIDO (resmunga) – Lá estás tu com os barulhos estranhos. Dorme, e deixa-me
dormir.
MULHER (assustada) – A nossa casa pode estar em perigo, e tu mandas-me dormir.
(Levanta-se e vai ter com a filha que está outra vez à janela, também
assustada)
MÃE (assustada) – Ouviste barulho?
JOVEM (assustada) – Ouvi…também ouviste?
MÃE (assustada) – Sim…um estrondo…!
JOVEM – Vamos lá fora ver se está tudo bem…
(As duas saem abraçadas, e tudo sossegado. Procuram pela
praia, e não há viva alma. Voltam para casa)
MÃE (assustada) – Acho que me deixaste sugestionada há bocado.
JOVEM – Eu ouvi, e tu também, por isso não te deixei sugestionada
coisa nenhuma.
MÃE – Acho que estamos as duas a ficar loucas…
JOVEM – Tu não ouviste aquela voz linda, mas eu ouvi.
MÃE – Bem, é melhor dormirmos…isto deve passar.
NARRADORA – As duas não dormem o resto da noite, mas nessa noite, não
se ouve mais nada. Na noite seguinte, elas e mais vizinhos ouvem sons
diferentes: um que parece uma mulher a chorar, outro que parece um homem a
pedir socorro, outro que parece uma ventania forte, sem abanar as árvores,
outro que parece uma mulher a gritar, outro que parece um trovão, outro que
parece um bailado, e outro que parece uma invasão de morcegos. Mas nada
acontece na praia. Quando vão ver, não vêem ninguém, não ouvem nada, nada mexe.
No dia seguinte, não se fala noutra coisa, e nessa noite, mais sons diferentes…desta
vez, parecem cantos de sereias diferentes. Todos ficam encantados com as
melodias, mas quando chegam à beira da água, não vêem nada, nem ninguém, nem há
movimentos estranhos, nem pegadas na areia.
PESCADOR – Isto não me cheira bem!
PESCADOR 1 – Não fui eu…comi feijoada, mas já fiz a digestão.
(Todos riem)
PESCADOR – Não estou a falar desse cheiro.
PESCADOR 1 – Que susto.
PESCADOR 2 – Então haverá por aí pescado estragado…
PESCADOR – Não. O que há são coisas misteriosas, que temos de tentar
descobrir o que é.
PESCADOR 3 – Como vamos descobrir, se não há viva alma, nem passos na
areia, nem movimentos…nada…não há um único sinal.
PESCADOR – Mas há qualquer coisa.
PESCADOR 4 – Só se forem fantasmas.
PESCADORES – Cruzes…
PESCADOR 5 – Deus nos livre e guarde, de encontrar criaturas dessas.
PESCADOR – Não brinquem com coisas sérias…nunca se sabe!
PESCADOR 6 – Calem-se com essas coisas…temos de procurar é…o que se
passa aqui…a minha filha e a minha mulher ontem ou anteontem…ouviram vozes. A minha
filha diz que ouviu uma mulher que cantava muito bem, tinha uma voz linda…depois…as
duas…ouviram um estrondo. E vieram à praia, não encontraram nada…nem viva alma,
nem estragos, nem pés…nada!
PESCADOR 1 – A minha mulher ouviu outra voz…disse que lhe parecia uma
mulher a chorar…
PESCADOR 3 – A minha sogra diz que ouviu um homem a pedir socorro, mas
quando veio ao mar, não viu nenhum sinal de homem, nem de barco…nada! Ficou sem
saber quem era, ou se era mesmo.
PESCADOR 5 – Ai, que até me arrepio todo.
PESCADOR 7 – E eu ouvi um barulho que parecia um trovão, mas o céu
estava limpo. Também não tivemos conhecimento de explosão.
PESCADOR 8 – A minha mulher diz que ouviu um barulho que parecia uma
invasão de morcegos. Eu pensei que ela estava a delirar, porque não vi morcegos
nenhuns.
PESCADOR 9 – Eu ouvi uma ventania forte, mas nada abanou.
PESCADOR – Alguma coisa se passa…será uma epidemia de loucura, que nos
está a afectar a todos…?
PESCADORES – Esperamos que não.
PESCADOR 1 – É tudo muito estranho.
PESCADORES – É verdade.
PESCADOR – O que vamos fazer? Investigar.
PESCADORES – Como?
PESCADOR 2 – Não há um único sinal.
PESCADOR 4 – Agora todos ouvimos uma espécie de canto de sereias
diferentes.
PESCADOR 6 – Ai, se forem sereias jeitosas, até as como.
PESCADORES – És sempre o mesmo.
PESCADOR 6 – O quê? Vão deixar escapar uma peixota jeitosa…? (ri)
(Todos riem)
PESCADOR 9 – Quem está a delirar és tu.
PESCADOR – Vamos meter-nos ao mar…e…ver o que encontramos.
NARRADORA – Todos os pescadores se fazem ao mar, de barco, com
lanternas, binóculos, e bóias. Nem um único sinal, até que chegam a uma gruta
entre duas rochas, e…surpresa. Encontram um piano velho, descascado, partido em
vários sítios, e com as teclas todas. Os pescadores voltam a terra, e pegam num
barco de carga maior. Seguem para a gruta, e todos juntos, ajudam a carregar o
piano para o barco. As mulheres e os filhos estão em terra em pânico, ansiosos
por notícias, e a rezar. Os pescadores atracam, e pousam o piano em cima da
areia, longe da água. As esposas e os filhos correm para eles, e respiram de
alívio.
MULHER 1 – Então…encontraram alguma coisa?
PESCADOR – Isto.
MULHERES E CRIANÇAS – Um piano?
PESCADORES – Sim! Um piano.
TODOS – Ááááhhh…!
MULHER 2 – Onde estava?
PESCADOR 2 – Numa gruta ali adiante.
MULHER 4 – Mas…e as vozes?
(Faz-se
silêncio. Um pescador toca numa tecla, e não sai som)
PESCADOR 5 – Não vem daqui.
CRIANÇA – São as vozes do mar!
(Todos riem)
MULHER 6 (ri) – Santa inocência…!
MULHER 8 (ri) – Tanta imaginação.
MULHER 1 – O mar não fala.
CRIANÇAS – Fala!
MULHER 2 – Deixemo-los sonhar…coitadinhos.
PESCADOR 4 – Esse mistério talvez nunca o descubramos.
MULHER 6 – Mas o que vão fazer com este piano?
PESCADOR – Concertá-lo.
PESCADORES – Isso.
PESCADOR 3 – De dia. Agora não se vê nada…e precisamos de descansar.
TODOS – Sim.
NARRADORA – Todos regressam ás suas casas, e volta a música, os cantos
das sereias, os trovões, as invasões de morcegos, as ventanias, as mulheres a
gritar e a chorar, o homem a pedir socorro…todos vão às janelas e vêem o piano
cheio de luz, com as teclas a mexer sozinhas. Nem querem acreditar no que estão
a ver! Saem todos de casa, e vão mais perto, boquiabertos, maravilhados,
encantados. Ficam sentados na areia a ouvir as melodias do piano que toca
sozinho e dá luz. Todos aplaudem.
PIANO (sorri) – Obrigado!
CRIANÇA 2 (sorri) – Tu falas?
PIANO (sorri) – Sim, sou a casa de algumas das vozes do mar.
MULHER 1 (sorri) – Que lindo!
MULHER 4 – Então…?
PIANO – Tudo o que vocês ouviram…vinha de mim!
PESCADOR 2 (sorri) – Maravilhoso.
PESCADOR 5 – Quem te deixou ali?
PIANO – Não sei.
PESCADOR 6 – Já estás aqui há muito tempo?
PIANO – Sim…acho que sim. Perdi a noção de tempo.
PESCADOR 8 – Mas…
PIANO – Muito obrigado por terem ouvido as vozes do mar. Salvaram-me!
Canto e toco para quebrar a solidão!
PESCADOR 5 – Vamos restaurar-te!
NARRADORA – Todos fazem perguntas ao piano, e este responde, toca lindas
músicas, todos aplaudem, dança, e riem, até o sol nascer. E a partir desse dia,
todos os dias e noites, o piano é restaurado, com a ajuda de todos, e com
carinho. Para agradecer, ele toca lindas músicas. As noites passam a ser muito
mais divertidas, e musicais. Afinal…não havia almas penadas, nem mulheres a
chorar, ou a gritar, nem homens a pedir socorro, nem cantos de sereias…era
apenas um piano abandonado que tocava as suas teclas sozinho, como as pessoas
quando mexem os seus dedos, para não enferrujar, para combater a solidão…e para
pedir ajuda. Mistério desfeito.
FIM
Lálá
(9/Novembro/2013)
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