NARRADORA
-
Era uma vez uma floresta onde viviam muitos animais diferentes, e todos se
davam bem. Adoravam fazer muitas festas, e reuniam-se muitas vezes para longas,
e quentes noites de Verão, ao luar, em campos enormes. Uns animais, gostavam de
fazer rir, e vestiam-se de palhaços, com roupas cheias de cores, cabeleiras,
pinturas estranhas. Outros animais, dançavam, outros passavam modelos, outros
eram cabeleireiros e preparam ao pormenor os pêlos dos animais que iam às festas.
Havia também os cozinheiros, os bailarinos, as bailarinas e os músicos, e os
fotógrafos. Era sempre uma grande animação com todos a cantar, a rir, a dançar
felizes, e a brincar. Mas no meio desta alegria toda, havia uma cigarra
pequenita, que era muito envergonhada! Quase só falava com os seus pais e
irmãos, e família, mas com as outras pessoas não falava. Até chegaram a pensar
que ela tinha um problema na voz, na fala ou nas asinhas. Os coleguinhas da
escola e os vizinhos achavam-na muito estranha, e não queriam brincar com ela,
porque ela não falava. Ela bem se esforçava para falar, porque queria mesmo
muito, mas não conseguia. Por isto sentia-se muito sozinha e triste. Uma noite,
a pequenina cigarra olhou para as estrelas e murmurou muito triste:
CIGARRA
–
Óh…queria tanto falar como os outros, cantar como os outros…mas não consigo!
NARRADORA
– Um
mocho que estava pousado na árvore em frente, tossica, a cigarra estremece e
tenta esconder-se e foge. O mocho grita-lhe:
MOCHO –
Menina…volta aqui.
NARRADORA
–
Ensinaram à pequenina cigarra que quando um mocho dá uma ordem é para se
cumprir. E a cigarra, lá voltou para a janela, onde estava a falar com a
estrela, a tremer e muito devagar.
MOCHO – Podes
vir devagar…eu tenho a noite toda…mas tens de vir.
NARRADORA
–
A cigarrinha encolhida para na janela.
MOCHO –
Olha
para mim.
NARRADORA
–
A cigarra treme como uma vara verde à brisa.
MOCHO – Ai…que
paciência…! Aproxima-te, e olha para mim, eu não mordo.
NARRADORA
–
A cigarrinha olha para o mocho muito rápido e a tremer.
MOCHO – O que
foi isso?
NARRADORA
– A
cigarrinha não responde, e fica muito assustada.
MOCHO – Porque
tremes tanto?
NARRADORA
– A
cigarrinha não responde, nem olha para o mocho.
MOCHO – Mas,
estou a falar com uma pedra, ou com um pau?
NARRADORA
–
A cigarrinha fica triste, encolhe-se.
MOCHO
(suspira) – Olha, menina…vais ter de dizer alguma coisa!
NARRADORA
– A
cigarra abana a cabeça para dizer que não.
MOCHO –
Mas
porque não?
CIGARRA
(baixinho) – Não.
MOCHO – Tens
algum problema na voz?
CIGARRA
(baixinho) – Não.
MOCHO – Então
porque não dizes nada?
CIGARRA
(baixinho) – Porque…porque…
MOCHO –
Porque…?
CIGARRA
(nervosa, baixinho) – Porque…não.
MOCHO – Mas
estás a falar agora, e eu ouço-te a falar com os teus familiares…!
CIGARRA
(baixinho) – Ai…
MOCHO – O que
foi? Dói-te alguma coisa?
CIGARRA
(a tremer, baixinho) – Não.
MOCHO –
Então…porque nunca falas?
CIGARRA
(baixinho) – Porque…tenho vergonha.
MOCHO – Como?
CIGARRA
–
Sim.
MOCHO –
Mas…vergonha…de quê?
CIGARRA
(baixinho) – De…falar.
MOCHO – Que disparate…vergonha
de falar, porque razão…?
CIGARRA
(a tremer) – Não sei…só sei que tenho vergonha.
MOCHO – Mas
porquê? Não tens voz como os outros?
CIGARRA
(baixinho) – Acho que sim…mas…ouço vozes tão bonitas…
MOCHO – Ora
essa…a tua também é uma voz bonita…é a tua voz…a voz igual à da tua espécie.
CIGARRA
–
Mas eu não sei cantar como os outros, e vão todos gozar-me. Não sou como os
outros…
MOCHO – Nisso,
tens razão…não és como os outros…nós somos todos diferentes, nenhum é igual ao
outro. Ainda bem!
CIGARRA
–
Mas os da minha espécie…são como eu…
MOCHO –
O
que vos cobre…a vossa pele…é toda igual, mas como animais…todos são
diferentes…! Felizmente! Mas todos vivem bem uns com os outros, porque sabem
que são diferentes em algumas coisas.
CIGARRA
–
Somos assim tão diferentes…pois, eu canto mal, eles cantam bem!
MOCHO – O quê?
(ri) Lá porque são da mesma espécie, achas que todos cantam bem?
CIGARRA
–
Sim…!
MOCHO
(ri) – Ainda não ouviste, uns e outros da tua espécie…! Quando
ouvires com atenção, vais ver que tudo isso são ideias da tua cabeça, sem pés
nem cabeça.
CIGARRA
–
As ideias têm pés e cabeça…?
MOCHO
(ri) – Sim. Mas porque tens medo?
CIGARRA
–
Ahh…Áhhh…porque…porque…
MOCHO – Claro,
não tens justificação!
CIGARRA
–
Porque…eles vão…gozar-me.
MOCHO – Que
disparate. Vão agora gozar-te porquê?
CIGARRA
–
Porque…o meu pai disse que eu não canto nada.
MOCHO – E tu
já cantaste com eles, ou para eles?
CIGARRA – Sim.
MOCHO – O teu
pai deve achar que é um tenor…(ri) com todo o respeito…é a voz dele, mas há vozes
muito mais bonitas. Por exemplo a tua.
CIGARRA
–
Como é que sabes, nunca me ouviste cantar? Uma vez que cantei, todos me
gozaram…
MOCHO – São
coisas da tua cabeça…nada é real. E tinhas ensaiado?
CIGARRA
–
O que é isso?
MOCHO –
Cantaste muitas vezes, com alma, com amor, com alegria, com emoção…antes de
cantares?
CIGARRA
–
Não. Cantei na hora…juntamente com os outros.
MOCHO – Minha
querida…não há nada que saia bem, sem fazer mal muitas, e muitas vezes…!
CIGARRA
–
Mas…
MOCHO – Nunca
te disseram que tinhas de cantar muitas, e muitas vezes antes de cantares com
os outros…? E tinhas de te engasgar, e tinhas de ganhar tosse…e ficar rouca…ou
com a garganta a doer?
CIGARRA
–
Ui, que horror…!
MOCHO –
Disseram-te?
CIGARRA
– Não!
MOCHO –
Falharam.
CIGARRA
–
Mas os grandes nunca falham.
MOCHO
(gargalhadas) – Ora essa…?! Nunca falham? Nunca outra ouvi.
CIGARRA
–
Pois…eles cantaram logo que foram para o palco.
MOCHO
(ri) – E tu sabes quantas vezes eles passaram por tudo o que te
disse, até conseguirem cantar assim?
CIGARRA
–
Nenhuma…eles já cantam tão bem, desde sempre.
MOCHO –
Errado! Tu é que não os viste, nem ouviste…e eles já se esqueceram do que
passaram até chegar onde estão agora.
CIGARRA
–
A sério?
MOCHO – Sim,
claro.
CIGARRA
–
E tu viste?
MOCHO – Vi,
claro que sim. Eu vejo tudo, e ouço tudo.
CIGARRA
–
Mas…então porque é que dizem que eu canto mal?
MOCHO – Ora aí
está! Lá porque são grandes, não quer dizer que saibam tudo…nem que saibam
cantar na hora…eles é que têm vergonha de te dizer que também começaram por
cantar muito mal, e depois ensaiaram muito, ficaram muitas vezes sem voz de
cantar tão mal…e muitas outras coisas.
CIGARRA
–
Porque é que eles dizem que eu canto mal?
MOCHO – Só te
ouviram uma vez?
CIGARRA
–
Sim…não cantei mais, porque disseram-me que cantei muito mal, e fiquei cheia de
vergonha.
MOCHO – E só
porque te disseram uma vez…é porque cantas realmente mal?
CIGARRA
–
Sim…os adultos é que sabem
MOCHO – Não
acredites nisso! Os adultos também já foram crianças, também já não souberam
nada…e também já cantaram horrivelmente mal. Mas eram felizes com certeza.
CIGARRA
–
Sim, e eu também era feliz se cantasse bem, se apreciassem a minha voz.
MOCHO – Como
queres que apreciem a tua voz, se não falas, nem cantas?
CIGARRA
–
Tenho medo que eles não gostem.
MOCHO – Que
disparate. Tens de experimentar.
CIGARRA
–
Huuummm…acho que não.
MOCHO – É uma
ordem minha…tu vais cantar.
CIGARRA
(a tremer) – Ai…não…que vergonha.
MOCHO –
Vais
desobedecer-me?
CIGARRA
–
Não.
MOCHO –
Então
vais cantar.
CIGARRA
–
Não.
MOCHO –
Vais
desobedecer-me?
CIGARRA
–
Não.
MOCHO – Então
vais cantar.
CIGARRA
–
Mas eu não sei cantar.
MOCHO –
Que
disparate. Claro que sabes cantar.
NARRADORA
–
O mocho, pacientemente, leva a cigarra para a beira do rio, onde não tem
ninguém, e ensina-a a cantar, a aquecer e a afinar a voz, a respirar, e outros
truques muito importantes. Passado uns dias, depois de muitos ensaios, e
enganos, o Mocho sempre incentivou a cigarra, sempre valorizou os seus
pequeninos progressos, tudo o que ela errava e fazia bem a seguir, o mocho
elogiava, aplaudia, dizia palavras agradáveis. Muitas vezes cantaram os dois
juntos. A cigarra ficou muito mais feliz, muito mais vaidoso, e orgulhosa, e
muito mais aberta, mais segura, e mais faladora. Durante vários dias e noites,
a cigarra pequenina ensaiou com o mocho. Numa noite de festa, em que todos
estavam felizes e a cantar, acontece uma coisa muito estranha…e
misteriosa…levanta-se uma grande ventania e todos os que cantavam, perdem a
fala, depois de muito tossir com a poeira do vento, e do frio. A única que não
foi afectada, foi a cigarrinha. O mocho grita à cigarrinha:
MOCHO
(grita) – Vai…é a tua vez. Mostra o que vales…! O palco é teu…
CIGARRA
(assustada) – Ai…não…!
MOCHO
(grita) – Vai…todos perderam a fala, restas tu! É agora a tua
oportunidade! Força…mostra o que está guardado por trás da tua vergonha e do
teu medo. Estivemos a ensaiar…lembras-te?
CIGARRA
–
Sim.
MOCHO
(grita) – Vai…! Força!
CIGARRA
–
Ai…ai, ai…!
MOCHO – Vai,
sem medo! Respira…fecha e olhos, e canta. Vá lá…!
CIGARRA
– Cantas
comigo?
MOCHO –
Sim.
Começa.
NARRADORA
– E
na confusão, onde todos estavam nervosos, muito aflitos por terem perdido a voz
e por estarem a tossir, a cigarrinha fecha os olhos, e canta com toda a
força…surge uma voz doce…tão linda…que todos fazem silêncio, incrédulos ao ver
que era a pequenina cigarra tão tímida, e calada, que quase ninguém conhecia…o
mocho acompanha, e todos ficam arrepiados de emoção ao ouvir aquele dueto tão
lindo. Os pais da cigarrinha estão maravilhados, e parece que todos ficam
hipnotizados por aquela beleza. No fim, todos batem muitas palmas de pé,
sorriem felizes, e a partir desse dia, a doce cigarrinha não teve mais medo de
falar, nem vergonha, tornou-se muito respeitada, e muito solicitada para
cantar.
CIGARRA
(feliz) – Muito obrigada, estrelas, por realizarem o meu desejo. E
muito obrigada mocho, por tudo o que me ensinaste.
MOCHO
(sorri) – Ora essa, filha…não fiz nada! E isto é só o começo…muito
mais haverá.
NARRADORA
–
E a cigarrinha nunca mais parou, e nunca mais se sentiu sozinha, passou a viver
rodeada de amigos, e a ser muito faladora. Os seus pais têm um grande orgulho
nela, e passam a cantar juntos nas festas. Às vezes acontecem-nos coisas
estranhas, para mostrarmos quem somos, sem fingirmos, e para mostrar coisas
boas que temos. Somos assim, como somos, todos diferentes, mas todos podemos
ser amigos.
FIM
Lara Rocha
(3/Junho/2013)
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