Foto de Lara Rocha
Era uma vez uma senhora com
alguma idade que vivia sozinha, embora a sua família estivesse perto, mas não
se encontrava muitas vezes porque cada um tinha a sua vida. A senhora
lamentava-se, tinha pena que tudo fosse a correr, ficava muito triste com a pressa
com que se vivia, e com a falta de tempo.
Ela tinha algumas amigas, da
sua idade, que às vezes dormiam na sua casa, e conviviam muito, mas sentia-se
incompleta. Não pensava na velhice, nem nas capacidades que já não eram as
mesmas que em jovem, lutava e fazia tudo o que podia, tinha muita ocupação de
dia, só à noite ficava mais triste.
Uma noite gelada, de
tempestade, a senhora acendeu a lareira, e nesse dia estava mais triste, sem
saber muito bem porquê. Sentou-se no cadeirão com o pijama vestido e enrolada
em várias mantas, televisão ligada, e ficou a olhar para a lareira.
De repente, uma chama
cresceu, enrolou-se, e dela saiu um pequenino palhacinho, espreguiçou-se,
sorriu e a senhora ficou assustada:
- Ai, quem és tu? Como é que apareceste aqui? Saíste
daí?
- Olá! Há quanto tempo não nos víamos… estás
igual… quer dizer…um bocado maior, ou fui eu que minguei? – Diz o palhaço com
um grande sorriso
- Ei…espera aí…eu acho que te estou a conhecer…
e…parece que também me conheces…
- Sim, já nos conhecemos há muitos anos! Quando
tu ainda eras uma criança.
- Estás-me a chamar velha?
- Não! Estou só a dizer que já vai há muitos
anos, que nos vimos a primeira vez.
- Sim, pois é…o tempo passa e nem damos por
ela.
- É verdade.
- Mas como é que estás aí?
- Eu sempre estive aqui…estou em muitos lados,
e volto para o mesmo sítio. Aqui estou bem.
- Pois, estás quentinho…
- Isso mesmo. E tu, estás com frio?
- Sim, hoje está muito frio, o tempo está feio
lá fora…sabe bem a lareira.
- Óh sim. É maravilhosa.
- Mas o que fazes aqui?
- Vim visitar-te…fazer-te companhia…rever o
teu sorriso.
A
senhora sorri
- Obrigada…
- Lembras-te que adoravas palhaços?
- Sim. E ainda adoro…ainda continuas a ser
palhaço?
- Continuo, mas já não é a mesma coisa.
- Porquê?
- Dantes, na tua infância, e idade adulta as
pessoas ainda reparavam em mim, riam, e aplaudiam, brincavam comigo, ficavam
com brilhos diferentes nos olhos…era tão bom… agora…passam a correr, nem para
mim olham, vão a olhar para umas coisas quadradas, que os teus filhos e netos
devem ter…
- Áh, sim…os telemóveis e tabletes ou lá como
se chama aquilo. Como é que sabes que eu tenho filhos e netos?
- Eu já os vi aqui…
- Mas eu nunca te vi antes.
- Sempre estive aqui. Mas nunca apareci, porque
as crianças já não se riem, vêem-me e assustam-se… chamam-me nomes feios…
- A sério?
- É. A coisa não está bem.
- Realmente isso é muito mau.
- Já não há trabalhos como antes…agora tudo é
diferente.
- Sim, tens razão.
- A magia já não existe!
- Óh…também estás triste?
- Sim…quer dizer…não, eu não vim ter contigo
para ficar triste, porque triste estás tu. Óh, desculpa, eu não queria falar-te
de coisas tristes.
- Não faz mal. Já não nos víamos há muito
tempo, por isso é normal querermos saber um do outro, neste reencontro.
- Agora estou mais feliz, de ver o teu sorriso
e o brilho nos teus olhos, como antes!
- Pensei que estavas sempre feliz.
- Não!
- Pelo menos na minha infância, eu achava que
os palhaços nunca ficavam tristes.
O
palhaço ri de uma forma tão engraçada que contagia a senhora que também se ri.
- Que gargalhada maravilhosa! Obrigado. Há quanto
tempo não ouvia uma gargalhada destas, vinda do coração, da criança que há em
ti. E esse sorriso que ilumina tudo à tua volta…que lindo! – Diz o palhaço
cheio de ternura a sorrir
- Para mim, a magia continua a existir! E nunca
te agradeci antes, mas…obrigada por existires e pelo teu trabalho! – Diz a
senhora a sorrir
- Óh, que lindo isso que disseste! E vê-se no
sorriso, no olhar…obrigado, minha querida!
Os dois trocam um abraço carinhoso, e escapam
umas lágrimas entre sorrisos.
- Pega uma manta, senta-te aí nesse almofadão
ao meu lado, e vamos conversar. Queres um chá?
- Com muito gosto.
A
senhora vai buscar chá quente enquanto o palhaço se instala e aconchega entre
duas mantas que a senhora lhe deu. Entretanto, quando ela chega, saem da
lareira outros palhacinhos que a senhora conhece bem.
- Áh! Olha os meus palhacinhos também aqui
estão! – Diz a senhora a rir
- Olá! – Dizem todos a sorrir e aos saltinhos
Eram
uns palhacinhos que a senhora tinha desenhado na sua infância, todos coloridos,
brincalhões, que faziam malabarismos e brincadeiras, e por magia
transformaram-se em palhacinhos verdadeiros. A senhora serve chá para eles
também, e eles instalam-se noutro almofadão, cobertos. Conversam uns com os
outros, entre muitas brincadeiras e gargalhadas, falam de tudo, contam
histórias, e estão felizes por se encontrarem. Umas horas mais tarde, os
palhacinhos adormecem, e a senhora também.
Enquanto
ela e os palhacinhos dormem, na lareira acontece a dança das deusas chamas, que
acordam a senhora com a música, usam lindos vestidos vermelhos, amarelos e cor-de-laranja,
que se entrecruzam e misturam, rebolam, entrelaçam-se, parece que se desmontam
todas. A senhora delicia-se, completamente rendida aos encantos daqueles
movimentos, e músicas, que aplaude no fim com um grande sorriso. As chamas
agradecem e adormecem.
A
lareira está agora com um borralho pequenino, e a senhora volta a ficar um
pouco triste, sem perder o brilho no olhar. E de repente, do borralho
levantam-se artistas de circo que fazem um espectáculo mágico para a senhora,
com muita variedade, e na parede da lareira, ela vê personagens da sua
infância, retalhos de histórias que a sua imaginação ditava, e ela escrevia, os
seus brinquedos, os seus bonecos, as suas brincadeiras, os seus medos…
Os palhacinhos acordam
bafejados pelos suspiros de saudade que os tocaram suavemente vindos da
lareira. Era um código secreto de comunicação de alarme, que combinaram entre
eles.
Da lareira sai uma fada que
resmunga:
- Ei…vamos lá pintar esta lareira da saudade
com outras cores, já estou encharcada de lágrimas, cheia de frio. Quero o meu
bairro cheio de cor, calor, alegria, chamas, sorrisos, risos, brincadeira.
A
senhora ri:
- Também vives aí?
- Sim. – Diz a fada
- Já te conheço. – Repara a senhora
- Pois já…na tua infância eu era uma das tuas
melhores amigas…e posso continuar a ser. Como estás crescida, linda… - diz a
fada a sorrir
- Óh, que simpática, estou velha, queres tu
dizer…! – Comenta a senhora a rir
- Não gosto nada dessa palavra! – Resmungam a
fada e os palhacinhos
- E eu abandonei-te? - Pergunta a senhora
- Abandonaste, mas já estamos habituadas a que
estas coisas aconteçam, mesmo assim, é sempre bom quando nos reencontramos. As nossas
amigas já com filhos, e netos…e ainda se lembram de nós. É muito bom. –
Responde a fada
- Eu falei de ti à minha neta. – Lembra a
senhora
- Eu sei! Brinquei muitas vezes com ela, falei
muitas vezes com ela, ouvi-a muitas vezes, como fazia contigo. Ela ficava feliz…e
eu também. – Diz a fada a sorrir
- Sim, ela bem dizia que tinha falado contigo,
e brincado contigo, mas pensei que fosse imaginação dela, e que ela te tinha
criado com o que eu lhe dizia sobre ti. – Comenta a senhora
- Não. Aconteceu mesmo. – Confirma a fada
- Será que ela se lembra disso? – Pergunta a
senhora pensativa
- Talvez…se ela vier para esta lareira da
saudade. – Responde a fada
- Talvez não precise de vir para a lareira da
saudade…ela é capaz de se lembrar. – Defende a senhora
- Não tenho a certeza. Ela é doutra geração,
onde acho que a magia desapareceu! – Pensa alto a fada
- É. Só existem máquinas. – Diz a senhora
- Eu sou assim, sei que faço muita gente
feliz. Mas tenho saudades dos tempos antigos, como aqueles em que brincava
contigo. – Diz a fada
- Ei…chega de falar em saudades…vamos mas é
reavivar esta lareira, enchê-la de calor, alegria e brincadeira, magia…como tu
disseste…se não, daqui a pouco estamos aqui todos a chorar. – Aconselha um
palhacinho
- Isso! – Concordam todos
- Mas chorar também é bom…e chora-se por
coisas boas…como saudades de coisas boas ou felizes, como a infância. – Repara
a senhora
- É verdade! – Dizem todos
Todos
dão umas gargalhadas sonoras e com vontade, a cada gargalhada, as chamas da
lareira tornam-se mais altas, e tudo volta a ficar um ambiente animado, com
muitas brincadeiras, danças, músicas, habilidades, palmas, risos, e alegria,
até de manhã. Nem se lembraram mais da tempestade, e dormiram a manhã toda na
sala quente, confortavelmente instalados nos almofadões macios, cobertos com
mantas e sacos camas.
Essas
personagens nunca mais largaram a senhora, passaram a viver na casa dela, eram
excelentes companhias, que adoravam o riso dela, e o brilho nos olhos, tinham
longas e animadas conversas, brincavam, ajudavam-na, e às vezes apareciam
outras muito simpáticas para se juntar à festa.
FIM
Lara Rocha
(19/Janeiro/2017)
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