Era uma vez um jovem artista, que colecionava lágrimas de pessoas. Por onde andava, sem que as pessoas percebessem, recolhia as lágrimas e guardava-as nos bolsos até chegar a casa. De vez em quando, pedia às pessoas que lhe dessem as suas lágrimas, quando não queria ser demasiado atrevido.
Geralmente, o jovem não dizia que era para construir obras de arte em vidro, e muitas vezes, ouvia «nãos», palavras agressivas, de pessoas que achavam que era louco, ou que tinha segundas intenções com esse pedido, e escorraçavam-no.
Outras pessoas eram simpáticas, mesmo sem perceber para que é que ele queria as lágrimas, deixavam-no recolhê-las, coisa que fazia com carinho. Agradecia muito, e quando regressava a casa, dividia as lágrimas por frascos, de acordo com as emoções que as fizeram cair.
Umas iam para o frasco da tristeza, de cor escura, quando choravam de dor, solidão, ilusões e desilusões, amores não correspondidos, fracassos, zangas. Outras para um frasco vermelho, se eram provocadas por raiva, irritação, frustrações e saudades. Para um frasco de várias cores, iam as lágrimas de felicidade, alegria, risos, conquistas, reencontros, boas notícias, saúde, e gargalhadas.
As suas lágrimas preferidas eram as dos frascos de várias cores, e era com elas que construía as mais bonitas e verdadeiras obras de arte, em vidro: estátuas com as expressões faciais das emoções, jarras, flores e outras com formas geométricas. Outras vezes, misturava os vários tipos de lágrimas.
Para algumas obras, metia as lágrimas numa máquina que as transformava em plasticina e massa mole, às quais o jovem juntava as cores que queria, e misturava tudo, como se estivesse a brincar. Outras metia numa espécie de micro ondas, para não ficarem muito duras, nem muito moles, salpicava com tintas e usava muitos materiais diferentes para construir o que imaginava, até algodão.
Certo dia, tentou vender muitas das suas peças, para ganhar espaço e algum sustento. Todos ficaram encantados, mas para surpresa sua, as mais vendidas foram aquelas feitas de lágrimas de tristeza. As mais coloridas ficaram para trás.
Uns dias depois, tentou vender só as de cores alegres, e não conseguiu. Lembrou-se de convidar um amigo palhaço, para trabalhar com ele. Explicou-lhe o tipo de trabalho, e o amigo aceitou de imediato. No dia seguinte, lá foram os dois, o seu amigo palhaço atraiu muita gente com a sua simpatia e brincadeiras, venderam tudo.
Para agradecer, o artista recolheu muitas lágrimas das pessoas que muito se riram com o palhaço, sem elas perceberem, durante vários dias seguidos. Com essas lágrimas construiu uma obra de arte, grande, dois amigos a dar um abraço e um sorriso aberto, toda colorida, para agradecer ao seu amigo a amizade que os unia há muitos anos, e a ajuda que este lhe estava a dar.
O amigo ficou sem palavras, e concretizou o abraço, agradeceu, e muito orgulhoso continuou a trabalhar com o artista. O problema foi que, com tanto sucesso, o artista tornou-se uma pessoa distante, fria, vaidosa. O seu amigo palhaço, ficou tão triste, que recolheu todas as suas lágrimas e ofereceu-as ao artista.
O artista recebeu-as, e quase não lhe deu atenção, só estava centrado nas suas obras grandes. Quando utilizou as lágrimas que o amigo lhe deu, todas as suas obras estalaram, partiram, derreteram. O artista não percebeu porque é que tal aconteceu, e foi a casa do amigo, muito irritado tirar a situação a limpo.
Gritou com o amigo, chamou-lhe falso, vigarista, interesseiro, e outras coisas feias. O amigo ouviu até ao fim, triste.
- Já acabaste? - perguntou o amigo palhaço
- Já. Ainda queres mais? - pergunta o artista zangado
- Agora vou falar eu…As lágrimas que te dei, mostram o que aconteceu às tuas obras! São o espelho de como me sinto, desde que a fama de subiu à cabeça. De coração partido, estalado, estilhaçado. Estou desiludido e magoado contigo. Desde que te tornaste conhecido, esqueceste que eu existo, que somos amigos desde crianças, que crescemos juntos, e que estivemos do mesmo lado, sempre que um de nós precisou, nos piores momentos. Esqueceste-te que vendeste muito desde que eu trabalhei contigo, mais uma vez estive ao teu lado, a chamar as pessoas para as tuas obras. Desde que és famoso, só pensas nas tuas obras, na tua fama, no dinheiro, e quem está à tua volta, deixa de existir. Desde que cresceste, diminuíste como pessoa, desapareceste como amigo. Não falas mais comigo, nem com quem gosta de ti. Fiquei muito desiludido contigo! Se as tuas obras se desfizeram com as lágrimas que te ofereci, com aquelas que chorei por causa da tua indiferença, foi para te mostrar como eu fiquei e como estou. Só assim é que te lembraste de mim.
O artista fica em silêncio.
- Desculpa! Acho que tens razão.
Vira costas e sai. Vai para casa, pensa muito na situação e fica triste. Passadas umas horas, volta a casa do amigo, depois de também muito chorar.
- Será que mereço uma segunda oportunidade? Eu sei que errei, magoei-te, desiludi-te, fui injusto contigo, egoísta...mas será que me podes perdoar e voltar a ser meu amigo?
- Estás a dizer isso só porque precisas de mim, ou de coração? - pergunta o amigo palhaço
- Estou a falar de coração.
Os dois olham-se fixamente, e num impulso trocam um abraço longo, choram os dois de alegria, e o artista recolhe as lágrimas dos dois.
- Obrigado, amigo. Queres ver como estou a falar de coração?
Constrói uma obra com as lágrimas dos dois, e até ensina o amigo a sua arte. A obra não se destrói, pelo contrário, parece feita de cristal brilhante.
- Vês?!
Os dois passam a trabalhar em conjunto, na recolha de lágrimas, e na construção de obras que vendem, dividindo os lucros pelos dois. O mais importante, foi continuar a amizade que quase se destruiu como as obras feitas com as lágrimas do coração partido, por causa de ganância e atenção excessiva às obras, à grandeza, ao dinheiro e à fama.
Às vezes é o que acontece com as amizades de hoje em dia. Há valores que falam mais alto, e partem o vidro mais bonito de cada um, estatelam o nosso interior, fazem-nos colecionar lágrimas em frascos de cores escuras, em vez de construirmos lindas obras de vidro com as nossas lágrimas dos frascos de várias cores, onde se inclui a amizade.
FIMLara Rocha
22/Agosto/2020
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