Na linha do comboio
Acho que nessa tarde, apanhei o maior susto da vida, que tenho memória. Ao chegar perto da estação o meu cão mudou o seu comportamento, ao contrário do que costuma acontecer.
Ficou muito agitado, a ladrar virado para a estação, parado numa parte em que se vê a linha de comboio de fora, a uivar, a ladrar, a olhar para mim, e para a frente e a rodar sobre si próprio. Parecia que queria alertar-me para alguma coisa!
Senti medo que ele fosse atacar alguém, ou que alguma coisa de mal estivesse para acontecer. De repente, sai disparado da minha beira e mete no túnel de acesso à estação, a esse espaço visível a ladrar completamente possuído.
Fui atrás dele, e qual não é o meu espanto, ao ver uma pessoa sentada na encruzilhada das linhas, vestido de preto, parecia um rapaz. O meu cão saltou quase em voo para a linha de comboio, e empurrou o rapaz para o chão, espetou-lhe os dentes na camisola e arrastou-o para um lugar seguro onde a linha estava em manutenção.
O rapaz parecia anestesiado, porque deixou que o meu cão o arrastasse, que continuava a ladrar. Ouvi a voz informativa da estação a anunciar a linha em manutenção onde estava o meu cão, a saída de um comboio e a entrada de outro.
Fiquei ansiosa, meti pelo túnel de acesso à outra linha e o meu cão ladrava para o rapaz, começou a lambê-lo, o rapaz estava lavado em lágrimas, completamente entregue à tristeza.
Acariciei o meu cão, o rapaz tinha uma respiração ofegante, inclinou-se num impulso para a linha de comboio outra vez, mas desta vez, eu consegui reagir, ainda não sei como. O meu cão agarrou-o pelas calças e eu disse-lhe:
- Mas o que é que tu vais fazer? É muito perigoso!
- Eu não quero estar aqui, não quero viver, não posso. Quero desfazer-me...para ver se nasço de novo, diferente.
- O quê? Senta-te aqui, à minha beira, vamos conversar um pouco. Eu estou aqui, o meu cão também.
O rapaz parecia anestesiado, porque deixou que o meu cão o arrastasse, que continuava a ladrar. Ouvi a voz informativa da estação a anunciar a linha em manutenção onde estava o meu cão, a saída de um comboio e a entrada de outro.
Fiquei ansiosa, meti pelo túnel de acesso à outra linha e o meu cão ladrava para o rapaz, começou a lambê-lo, o rapaz estava lavado em lágrimas, completamente entregue à tristeza.
Acariciei o meu cão, o rapaz tinha uma respiração ofegante, inclinou-se num impulso para a linha de comboio outra vez, mas desta vez, eu consegui reagir, ainda não sei como. O meu cão agarrou-o pelas calças e eu disse-lhe:
- Mas o que é que tu vais fazer? É muito perigoso!
- Eu não quero estar aqui, não quero viver, não posso. Quero desfazer-me...para ver se nasço de novo, diferente.
- O quê? Senta-te aqui, à minha beira, vamos conversar um pouco. Eu estou aqui, o meu cão também.
O meu cão ladra, como que a confirmar, e põe a pata em cima do ombro dele. Acariciei o meu cão, e disse:
- Já percebi que não estás nada bem, mas não estás sozinho.
Passam os dois comboios, num grande barulho, encolhi-me, tapei os ouvidos e o rapaz tremeu da cabeça aos pés, num choro sem fim. O meu cão ladra outra vez e encosta a cabeça ao ombro do rapaz.
- Ninguém quer que eu esteja aqui. Nem eu quero! O teu cão não tinha nada que me empurrar, nem trazer-me para aqui. Era agora que eu ia ter paz! Queria morrer e nascer diferente.
- Ainda bem que o meu cão te empurrou! Ele sabe o que faz (ladra).
- Ninguém quer que eu esteja aqui. Nem eu quero! O teu cão não tinha nada que me empurrar, nem trazer-me para aqui. Era agora que eu ia ter paz! Queria morrer e nascer diferente.
- Ainda bem que o meu cão te empurrou! Ele sabe o que faz (ladra).
- Está a confirmar! (ladra outra vez)
Os dois rimos, apesar do riso do rapaz ser tímido.
- A tua vida é preciosa. Sou psicóloga, se quiseres podes conversar comigo.
O rapaz olhou para mim, com um olhar como nunca tinha visto, vazio, cheio de lágrimas. Sentou-se ao meu lado.
- Tens uma cara tão bonita! - disse eu
- Achas? Também não me serve de nada ter uma cara bonita, ninguém quer saber.
- Porque é que queres morrer e nascer diferente?
- Porque sou homossexual.
- Sou humilhado, rejeitado, gozado, a minha mãe juntou-se com um homem de quem não gosto, e expulsou-me. Estou a vier na casa de um primo, que vive sozinho, o meu pai nem me conhece. Eu não quero ser homossexual, não gosto, não posso. Se continuar a ser homossexual, vou ficar sozinho. Disse à minha mãe que sou homossexual, ela reagiu muito mal, insultou-me, bateu-me, mandou-me rezar. Sinto a falta dela, e de amigos.
Deixei que ele exteriorizasse tudo o que sentia. O meu cão parecia estar a perceber tudo, e sensibilizado com a história dele. Ouvi-o atentamente, e acho que ele também sentiu que estava a ouvi-lo.
O rapaz olhou para mim, com um olhar como nunca tinha visto, vazio, cheio de lágrimas. Sentou-se ao meu lado.
- Tens uma cara tão bonita! - disse eu
- Achas? Também não me serve de nada ter uma cara bonita, ninguém quer saber.
- Porque é que queres morrer e nascer diferente?
- Porque sou homossexual.
- Sou humilhado, rejeitado, gozado, a minha mãe juntou-se com um homem de quem não gosto, e expulsou-me. Estou a vier na casa de um primo, que vive sozinho, o meu pai nem me conhece. Eu não quero ser homossexual, não gosto, não posso. Se continuar a ser homossexual, vou ficar sozinho. Disse à minha mãe que sou homossexual, ela reagiu muito mal, insultou-me, bateu-me, mandou-me rezar. Sinto a falta dela, e de amigos.
Deixei que ele exteriorizasse tudo o que sentia. O meu cão parecia estar a perceber tudo, e sensibilizado com a história dele. Ouvi-o atentamente, e acho que ele também sentiu que estava a ouvi-lo.
Depois de me contar vários episódios de agressão, humilhação por parte dos colegas, insultos, rejeições e abandonos por parte de amigos, disse-lhe:
- Ninguém tem nada a ver com a tua escolha sexual. É a ti que diz respeito. Tens direito a ter a tua privacidade, tu é que escolhes quem queres amar, com quem queres ter prazer, ser feliz e partilhar a tua vida, os outros não têm direito de se pronunciar, só tem de respeitar a tua escolha. E com certeza vais encontrar muitos e muitas outras pessoas com a mesma escolha, que te vão aceitar como és. Eu tenho muitos amigos e amigas que fizeram essa escolha! Respeito-os e eles a mim, temos uma amizade fraterna, muito especial, muito bonita, sincera, dedicada. Não tens de acabar com a tua vida, nem mudar a tua escolha e ser infeliz, só por causa dos outros, do que os outros acham que devias ou tinhas que ser. Era só o que faltava! E se gostares de mim, tenho a certeza que vais ganhar várias dezenas de amigos, e parceiros. Só tens de te sentir orgulhoso pela tua escolha, e vivê-la. Ele olhou-me, a soluçar. Limpa as lágrimas.
- Fogo...nunca me tinham dito uma coisa dessas…! Posso pedir-te uma coisa?
- Só se forem duas ou mais! - Disse-lhe eu.
Ele sorri timidamente.
- Posso...dar-te um abraço?
Abri-lhe um grande sorriso.
- Claro que sim! Dois…
Trocamos um longo abraço, ele desatou num choro, e eu quis passar vida para ele, através do abraço. Acho que consegui, porque abraçou-me com muita força, e chorou encostado a mim, eu sentia o coração dele a bater rapidamente, e acariciei-lhe as costas e a cabeça.
- Ninguém tem nada a ver com a tua escolha sexual. É a ti que diz respeito. Tens direito a ter a tua privacidade, tu é que escolhes quem queres amar, com quem queres ter prazer, ser feliz e partilhar a tua vida, os outros não têm direito de se pronunciar, só tem de respeitar a tua escolha. E com certeza vais encontrar muitos e muitas outras pessoas com a mesma escolha, que te vão aceitar como és. Eu tenho muitos amigos e amigas que fizeram essa escolha! Respeito-os e eles a mim, temos uma amizade fraterna, muito especial, muito bonita, sincera, dedicada. Não tens de acabar com a tua vida, nem mudar a tua escolha e ser infeliz, só por causa dos outros, do que os outros acham que devias ou tinhas que ser. Era só o que faltava! E se gostares de mim, tenho a certeza que vais ganhar várias dezenas de amigos, e parceiros. Só tens de te sentir orgulhoso pela tua escolha, e vivê-la. Ele olhou-me, a soluçar. Limpa as lágrimas.
- Fogo...nunca me tinham dito uma coisa dessas…! Posso pedir-te uma coisa?
- Só se forem duas ou mais! - Disse-lhe eu.
Ele sorri timidamente.
- Posso...dar-te um abraço?
Abri-lhe um grande sorriso.
- Claro que sim! Dois…
Trocamos um longo abraço, ele desatou num choro, e eu quis passar vida para ele, através do abraço. Acho que consegui, porque abraçou-me com muita força, e chorou encostado a mim, eu sentia o coração dele a bater rapidamente, e acariciei-lhe as costas e a cabeça.
O meu cão lambeu-o e deitou a sua cabeça nas pernas dele. Ele sorriu, fez festas ao meu cão. Abraçou-me novamente.
- Não consigo largar-te! Desculpa. - diz ele
Eu ri-me.
- Eu não me queixei, pois não…?
Rimo-nos.
- Nem nos conhecemos, e eu já estou aqui cheio de coisas contigo…
- Mas podemos conhecer-nos, e podes ter a certeza que tens em mim uma amiga para o resto da tua vida! Que grande asneira que tu ias fazer.
Ele sorri.
- Acho que tens razão! Já gosto de ti. És linda, és um anjo, não?
- Não, sou uma pessoa como tu, boa e às vezes má.
Rimo-nos.
- Vens comigo, passear mais um pouco o meu cão, e conversamos mais? - convidei-o
- Ok… se queres que te faça companhia.
- Com certeza!
- Devo-te a vida. Obrigada.
Abraça-me novamente. Dei-lhe um beijo na cara e ele retribui. Fez mais festas ao meu cão, e disse-lhe:
- Obrigado, bicho. Foste o maior.
O meu cão ladra-lhe, e lambe-o. Rimos.
- Este cão é demais… - diz ele
- É.
Levantamo-nos, o meu cão ladrou e acompanhou-nos, sempre ao lado dele. Eu e ele fomos abraçados, e conversamos bastante, fora da estação, rimos, e percebemos que vivíamos muito perto um do outro.
- Não consigo largar-te! Desculpa. - diz ele
Eu ri-me.
- Eu não me queixei, pois não…?
Rimo-nos.
- Nem nos conhecemos, e eu já estou aqui cheio de coisas contigo…
- Mas podemos conhecer-nos, e podes ter a certeza que tens em mim uma amiga para o resto da tua vida! Que grande asneira que tu ias fazer.
Ele sorri.
- Acho que tens razão! Já gosto de ti. És linda, és um anjo, não?
- Não, sou uma pessoa como tu, boa e às vezes má.
Rimo-nos.
- Vens comigo, passear mais um pouco o meu cão, e conversamos mais? - convidei-o
- Ok… se queres que te faça companhia.
- Com certeza!
- Devo-te a vida. Obrigada.
Abraça-me novamente. Dei-lhe um beijo na cara e ele retribui. Fez mais festas ao meu cão, e disse-lhe:
- Obrigado, bicho. Foste o maior.
O meu cão ladra-lhe, e lambe-o. Rimos.
- Este cão é demais… - diz ele
- É.
Levantamo-nos, o meu cão ladrou e acompanhou-nos, sempre ao lado dele. Eu e ele fomos abraçados, e conversamos bastante, fora da estação, rimos, e percebemos que vivíamos muito perto um do outro.
Trocamos contactos, e combinamos falar-nos nesse mesmo dia pelo Facebook. No fim de jantar lá estava ele, conversamos quase três horas, e ele quis ver-me pela câmara. O sorriso dele já era outro.
Depois desse dia, sugeri-lhe que tivesse acompanhamento psicológico, e encaminhei-o para outro amigo, psicólogo, que trabalhava na área da sexualidade. Comecei a apresentar-lhe vários amigos homossexuais, com quem passou a conviver, a sair, a conversar, a divertir-se.
Sempre que eu e ele nos encontramos, trocamos aqueles abraços sinceros, fortes, fraternos, disse-me desde logo que eu era a família dele, e falamo-nos todos os dias, várias vezes por dia, pelas redes sociais, por telefone, e mensagens. O meu amigo psicólogo deu-lhe uma preciosa ajuda, a melhorar a sua auto-estima, e a viver bem com a sua escolha sexual.
Depois desse dia, sugeri-lhe que tivesse acompanhamento psicológico, e encaminhei-o para outro amigo, psicólogo, que trabalhava na área da sexualidade. Comecei a apresentar-lhe vários amigos homossexuais, com quem passou a conviver, a sair, a conversar, a divertir-se.
Sempre que eu e ele nos encontramos, trocamos aqueles abraços sinceros, fortes, fraternos, disse-me desde logo que eu era a família dele, e falamo-nos todos os dias, várias vezes por dia, pelas redes sociais, por telefone, e mensagens. O meu amigo psicólogo deu-lhe uma preciosa ajuda, a melhorar a sua auto-estima, e a viver bem com a sua escolha sexual.
Depois do susto, ganhei um amigo para o resto da vida, um irmão como ele às vezes diz, carinhoso, atencioso, dedicado. Ele agradece-me constantemente de o ter salvo, e de vez em quando oferece-me flores, chocolates, postais. Há respeito entre nós.
FIM
Lara Rocha
18/06/2020
FIM
Lara Rocha
18/06/2020
Uauuu. Fiquei pregada ao ecrã.
ResponderEliminarCarregou bem no caso, pai ausente, mãe xenófoba, padrasto indesejado, humilhação, rejeição, agressões por parte de pseudo amigos e colegas, sem dúvida uma saída do armário muito difícil para o seu novo amigo. Infelizmente nos dias de hoje ainda continua a existir muita discriminação para com a população LGBT e apesar da vasta informação ao dispor de um clique, o menino estava de todo perdido com a sua identidade.
A Doutora Lara esteve muito bem no momento em que o tratou como ser humano e não como coisa, acção reforçada quando aceita o contacto físico através dos abraços e do beijo. Pela primeira vez (como ele verbalizou e bem) o menino sentiu-se uma criança/adolescente/jovem adulto/adulto com Voz.
Como excelente profissional que é, e devido ao vínculo criado com o menino, direccionou-o para um colega seu de psicologia na especialidade mais adequada (sexualidade) e assim manteve a vossa amizade intacta. Com um bom acompanhamento e a integração num meio com que se identifica (que lhe era desconhecido até à data), o menino voltou a ter identidade.
Obrigada pela partilha.
Muito obrigada! :) infelizmente é verdade. São fatores de risco e muito comuns
ResponderEliminar! Ainda há muita falta de respeito.