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quarta-feira, 24 de abril de 2013

CAROLINA E OS LIVROS


NARRADORA – Era uma vez uma menina que vivia numa grande cidade, onde tudo era a correr…Até o sol parecia que corria…aparecia e logo a seguir desaparecia. Os pais entravam em casa, e não paravam o dia todo…nem em casa, nem na rua…o movimento de carros era de loucos…a alta velocidade, tudo a buzinar, estavam capazes de se passarem a ferro…as pessoas mal se olhavam, e discutiam por tudo e por nada. Que barafunda. Carolina ficava nervosa com todo aquele movimento, e barulhos irritantes…quando achava que finalmente tinha os pais para si, nem que fosse por uns minutos, estes gritavam com ela, e diziam que tinham muito que fazer, não podiam brincar com ela…nas refeições falavam aos gritos uns com os outros, conversas estranhas, que ela não entendia, mas deviam ser sérias, pois eles gritavam e barafustavam…prometiam sempre que amanhã brincavam com a menina, mas esse amanhã nunca chegava. Só ficava feliz quando ia para os Avós, pois pelo menos eles ouviam todas as novidades que ela tinha para contar, e brincavam com ela. Um dia, Carolina estava com a Avó a passear no jardim da cidade, e as duas conversaram:
CAROLINA – Óh Avó…onde é que estes grandes vão com tanta pressa?
AVÓ – Olha…não sei…devem ir para casa, ou para o trabalho, ou para as compras…! Porquê?
CAROLINA – Eles vão com tanta pressa…! Não vêem nada do que está à volta deles pois não?
AVÓ – Infelizmente não. Mas tu vês não vês?
CAROLINA – Só quando vou contigo, porque os meus pais também andam sempre a correr. Porque é que eles correm tanto, Avó?
AVÓ – Têm sempre muitas coisas a fazer.
CAROLINA – E o tempo quem é?
AVÓ – O tempo…não é uma pessoa…é…o relógio…as horas…os minutos, os segundos…a noite…o dia…o mês…o dia de semana…
CAROLINA – Porque é que estão sempre a falar nele?
AVÓ – Porque todos correm contra ele…
CAROLINA – Mas se ele não é uma pessoa…porque é que correm contra ele?
AVÓ – Os adultos têm sempre muitas coisas para fazer.
CAROLINA – E porque é que fazem tantas coisas? Podiam fazer menos.
AVÓ – Pois…devia ser…mas…é muito complicado…
CAROLINA – E eu… não faço parte dessas coisas que eles têm para fazer?
AVÓ – Tu não és uma coisa, és uma menina…
CAROLINA – Sim, Avó, mas os meus pais tratam-me como se eu fosse uma coisa.
AVÓ – Como assim…?
CAROLINA – Sim…estão sempre a correr…dentro de casa, e fora de casa…eu peço-lhes para brincar comigo, dizem sempre…amanhã…amanhã…mas esse amanhã nunca é amanhã! Nunca podem. E estão sempre aos gritos um com o outro, e comigo…fazem de conta que não estou à mesa, nem em casa.
AVÓ – Óh, querida…não é possível, eles tratarem-te como uma coisa. Eles são muito ocupados, mas amam-te.
CAROLINA – Não acredito nisso, Avó.
AVÓ – É verdade!
CAROLINA – Tu, sim…tu amas-me! Tu tens tempo para mim…brincas comigo…não dizes…amanhã…e esse amanhã nunca chega. Fico muito triste quando eles fazem isso.
AVÓ – Os teus pais trabalham muito, para te dar tudo o que precisas, e amam-te muito, mesmo não tendo tempo. Não é que eles queiram…é porque não podem mesmo.
CAROLINA – Não entendo, Avó. Vocês, grandes, são muito estranhos…! Não se compreendem. Os meus amigos dizem o mesmo. É muito triste, Avó, os pais não terem tempo para nós…eu acho que tinham, ou podiam ter.
AVÓ – Tens razão, mas não penses que eles não te amam! Lembra-te que estão a trabalhar muito, para te dar boas condições de vida!
CAROLINA – Mas Avó…eu já tenho tudo. Só quero o carinho e a presença deles…só quero que brinquem comigo, um bocadinho por dia, porque passamos muitos minutos separados, depois…eu tenho saudades deles.
AVÓ – Claro, filha…é natural…eles também têm muitas saudades tuas.
CAROLINA – Então porque é que eles não deixam o trabalho por um bocadinho para estarem comigo, a brincar, ou a ouvir o que eu quero contar-lhes, sobre o meu dia, sobre o que aprendi na escola, sobre o que vi…eu começo a contar-lhes, e eles não me ouvem…mandam-me calar, ou comer, aos gritos, só falam um com o outro…parece que estão sempre zangados…!
AVÓ – Não ligues, filha…são coisas dos adultos.
CAROLINA – Eu não quero que eles trabalhem tanto…só quero que estejam comigo, e que me dêem carinho, colo…que me leiam uma história.
AVÓ – Eles não fazem por mal…!
CAROLINA – Daqui a pouco mudo para a tua casa, Avó…tu tens sempre tempo para mim, para me contar histórias que adoro…e que me fazem rir…e tens tempo para me dar carinho…para ouvir o que eu conto. Os meus pais até dizem que eu sou muito chata, que não me calo. Mas eu faço isso, para eles me ouvirem, a para se lembrarem que estou ali…que sou filha deles, nascida do amor deles…mas eu não vejo amor nenhum neles.
AVÓ – Porque é que dizes isso?
CAROLINA – Eles dizem que quando se ama, não se grita, nem se zanga um com o outro…mas eles estão sempre a gritar e zangados um com o outro…!
AVÓ – Isso é impressão tua…! Eles só estão um bocadinho chateados com o trabalho deles…
CAROLINA – E sou eu que os faço ficar chateados?
AVÓ – Não. Claro que não.
CAROLINA – Eu gostava que eles fossem como os meus livros!
AVÓ (ri) – Gostavas que os teus pais fossem livros?
CAROLINA (sorri) – Sim, porque assim, tinham sempre tempo para mim, eu podia brincar com eles, sempre que quisesse, e podia levá-los comigo para a escola…e podia…fazer-lhes festinhas a toda a hora…e…assim…eles também já não me chamavam chata, e brincavam sempre comigo.
AVÓ (ri) – Sim, querida…podes imaginar o que quiseres.
CAROLINA – Tu não gostavas, Avó?
AVÓ (ri) – De quê?
CAROLINA – Que algumas pessoas fossem como os livros para ti.
AVÓ (ri) – Sim…até seria engraçado!
CAROLINA – A ti, não precisava de te transformar em livro, porque tu já és um livro…! Lindo…cheio de imagens bonitas, cheio de palavras que são músicas…e também és um livro cheio de personagens bondosas, carinhosas, simpáticas, meigas, divertidas…
AVÓ (ri, deliciada) – Ai, que linda princesa…! Obrigada, querida…só mesmo tu.
CAROLINA (sorri) – É verdade, Avó…tu és mesmo um livro muito bom, e muito bonito! (p.c) Só sei uma coisa…não quero crescer, nunca.
AVÓ (ri) – Mas vais crescer…e é bom sinal.
CAROLINA – Não quero!
AVÓ (sorri) – Podes ser sempre um livro de histórias infantis, no teu coração, mesmo em grande…
CAROLINA – Quero ser sempre uma biblioteca de livros lindos, como tu, Avó!
AVÓ (sorri, feliz e orgulhosa) – E podes ser. É muito bom!
CAROLINA – Tu ainda sonhas, Avó?
AVÓ (sorri) – Claro que sim. Porque não haveria de sonhar…? Sonho muito, e gosto muito…até de olhos abertos…! Sonho como tu sonhas…!
CAROLINA (sorridente) – A sério?
AVÓ (sorridente) – Claro…e quando te leio as histórias, também sonho.
CAROLINA (sorri surpresa) – Pensei que os grandes não sonhavam!
AVÓ (sorridente) – Sonham…alguns…
CAROLINA – Mas eles dizem sempre que nunca têm tempo para nada…e têm tempo para sonhar?
AVÓ (sorri) – Olha, para isso…acho que sim…pelo menos à noite.
CAROLINA – Mas eles não lêem…como é que podem sonhar?
AVÓ – Sim, é verdade…o ler faz-nos sonhar…mas eles também lêem…
CAROLINA – Os meus pais não lêem...por isso, acho que também não sonham.
AVÓ – Lêem coisas mais complicadas…dos trabalhos deles…
CAROLINA – Mas acho que não sonham…ou então…são sonhos maus, não?
AVÓ (ri) – É…não devem sonhos muito bonitos, não! Deixa-os lá.
CAROLINA – Achas que eles são felizes, Avó?
AVÓ (ri) – Acho que…sim…talvez! E tu?
CAROLINA – Eu acho que eles não são felizes.
AVÓ – Porquê?
CAROLINA – Porque não sonham, e porque não lêem…e…porque…não têm tempo…e porque…não brincam comigo… (p.c) Acho que com tudo isso, não são felizes. Estão sempre com caras tristes…e zangados…é porque não estão felizes.
AVÓ (sorri) – És capaz de ter razão.
CAROLINA – E tu, Avó…és feliz?
AVÓ (sorri) – Sim, muito, e tu?
CAROLINA – Eu…umas vezes sim, outras vezes não. Queria ser sempre feliz…mas não sou sempre feliz.
AVÓ – Quando é que não és feliz?
CAROLINA – Quando os meus pais não me ligam. E sou feliz quando estou contigo, quando leio, quando ouço as tuas histórias…quando tenho o teu carinho e do Avô…
AVÓ (sorri) – Certo, mas não divides…os teus pais amam-te! Vais ver que daqui a uns tempos, as coisas melhoram.
CAROLINA – Espero bem que sim, Avó…eu peço sempre ao meu anjinho da guarda…mas acho que ele ainda não conseguiu fazer isso.
AVÓ (sorri) – O anjinho da guarda, não está na cabeça dos teus pais…! Mas ele vai dar um jeitinho, vais ver!
CAROLINA – Acho que sim…Olha Avó…o que está ali.
NARRADORA – As duas dirigem-se para um saco encostado a uma árvore.
CAROLINA – O que tem este saco?
AVÓ – Deve ter lixo…
CAROLINA – Espera…estou a ver aqui…uma folha colorida…
AVÓ – Deve ser um papel riscado.
(Carolina abre o saco)
CAROLINA – São livros…Avó!
AVÓ – Livros…?
CAROLINA – Sim. Olha quantos.
AVÓ – E vão para o lixo?
CAROLINA – Parece que sim.
AVÓ – Olha…vamos levá-los.
CAROLINA (feliz) – Siiiimmmm…vamos.
NARRADORA – A Carolina e a Avó levam o saco cheio de livros que iam para o lixo, para casa. Abrem o saco no terraço, e tiram os livros. As duas ficam espantadas e maravilhadas com as ilustrações, as cores, as palavras…limpam o pó, folha por folha, com cuidado e delicadamente.
CAROLINA – Porque é que iam para o lixo?
AVÓ – Não sei…
CAROLINA – Não estão estragados.
AVÓ – Pois não! E se estivessem estragados, também se arranjavam.
CAROLINA – Pois.
NARRADORA – A Avó e a Carolina lêem os pequenos livros, encantadas com as histórias, riem muito, lêem em diálogo, e divertem-se muito, juntas com os livros. Carolina, desde esse dia, tornou-se uma amiga inseparável dos livros, que lia em casa, e com a Avó. Enquanto lia, sentia-se acompanhada pelas personagens, interagia, dialogava e brincava com elas, e pelo menos aí, o tempo parava, ou andava mais devagar, as pessoas das histórias eram simpáticas, educadas, carinhosas, paravam e falavam umas com as outras…havia tempo para tudo!

Actividade:
E vocês? Gostam de ler?
O que gostam mais de ler?
Lêem muitas vezes?
Os vossos pais, avós ou irmãos e amigos lêem-vos histórias?
Muitas, ou poucas vezes?
Que outras pessoas vos lêem histórias?
Gostam mais de ler, ou de ouvir histórias? Porquê?
Acham que é bom ler? Porquê?
Acham que é importante ler? Porquê?
Acham que os livros podem mesmo ser nossos amigos? Porquê?
Gostavam de ser um livro? Porquê?
Se fossem um livro, como seriam? Que personagens existiria dentro de vocês?
O que fariam se encontrassem livros, como a Carolina?
Acham que na nossa sociedade poderia haver tempo para tudo? Principalmente…tempo para as amizades, para conviver…e para o carinho, e para o amor? E para o respeito por todos?
Acham que a nossa sociedade e o nosso mundo estão bem assim?
Gostavam de viver numa sociedade e num mundo diferente?
Como seria essa sociedade/ esse mundo? Escreve uma composição ou faz um desenho.
Gostavam de poder mandar na sociedade?
Se pudessem mandar, o que mudariam? O que fariam? Porquê? Escrevam ou façam um desenho.


FIM
Lálá
23/Abril/2013



quarta-feira, 17 de abril de 2013

Onde está o Gonçalo?



NARRADORA – Era uma vez um menino que andava sempre muito triste. Ele tinha tudo o que se pode desejar, e pedir para se ser feliz…tinha pais, tinha irmãos, casa, alimento, roupa, conforto, amor, carinho e brinquedos…mas faltava-lhe qualquer coisa, para se sentir completo. Tinha tudo, mas não tinha muitos amigos, porque era um menino mais pequenino que os outros da sua idade, e todos os se afastavam dele, gozavam-no, humilhavam-no, e faziam-lhe maldades. Ele, como era muito bom menino, não se defendia, embora ficasse muito triste, e chorasse muito, tinha dias que não queria ir para a escola. Mas sabem uma coisa? Ele era pequenino no tamanho, mas tinha um grande coração, só que não lhe davam oportunidade de o mostrar…sim, é verdade, toda a gente precisa de oportunidades para mostrar o seu coração, porque só vemos o que está por fora…aquilo que os olhos vêem, e não damos importância ao que está dentro, porque dá muito trabalho, conhecer uma pessoa por dentro, principalmente aquelas que se mostram mais devagarinho. O Gonçalo não gostava de ir para a escola porque tinha muita vergonha de ser tão pequenino, mas não tinha outra solução: ia mesmo, pois os pais obrigavam-no a isso…não era por mal, pois eles sabiam que o menino tinha vergonha, e obrigavam-no a ir para ver se perdia a vergonha, e se começava a gostar de ser pequenino. Os seus pais sabiam que ele era pequenino, mas era muito bom menino, e queriam que ele fosse para a escola para mostrar isso aos outros que o gozavam. O menino passava os intervalos sozinho, triste, outras vezes, a falar com os professores. Sempre que o Gonçalo fazia queixa dos colegas, os professores diziam para ele não ligar, pois nada do que os outros diziam sobre si, era verdade…mesmo assim, o menino não gostava e sofria. Um dia, na sua escola, num intervalo encontrou um jardim, onde havia um túnel de flores formado por uma rede que as segurava. As flores eram lindas, grandes, e cheias de cor. Por baixo da rede havia areia da praia. O Gonçalo empurrou a rede e abriu uma portinha pequenina feita de rede, que ninguém conhecia…a não ser o jardineiro que cuidava daquele espaço. O que haverá para lá daquela portinha?
GONÇALO – Uma portinha aqui? Nunca tinha visto, e já passeio por aqui muitas vezes…!
CORO DE FLORES – Olá menino!
GONÇALO (estremece) – As flores falam?
CORO DE FLORES (riem) – Sim!
FLOR 1 – Falamos para quem nos consegue ouvir!
GONÇALO – Não sabia que as flores falavam.
CORO DE FLORES (sorriem) – Sim, falamos!
FLOR 2 – Mas nem toda a gente nos ouve!
GONÇALO (surpreso) – Porquê?
FLOR 3 – Porque falamos baixinho…
FLOR 4 – Porque somos delicadas…
FLOR 5 – Porque toda a gente acha que as flores só falam nas histórias.
FLOR 6 – Pois…ou que somos da imaginação das crianças.
FLOR 7 – É um perfeito disparate!
CORO DE FLORES – Pois é!
FLOR 8 – Nós falamos…e muito…somos seres vivos. 
GONÇALO – E porque é que nem toda a gente vos ouve?
CORO DE FLORES – Sensibilidade!
FLOR 1 – Isso mesmo!
FLOR 2 – Nem toda a gente tem sensibilidade para lidar connosco.
FLOR 3 – Nem delicadeza!
FLOR 4 – Acham que só existimos para enfeitar os jardins, e as jarras ou janelas.
CORES DE FLORES – Pois é!
FLOR 5 – Somos muito mais do que flores.
CORO DE FLORES – Muito mais!
GONÇALO – Como assim?
FLOR 6 – Olha, antes de sermos assim como nos estás a ver, como umas bolinhas…que ficamos lá em baixo…
GONÇALO – Umas bolinhas?
CORO DE FLORES – Sim…umas bolinhas.
GONÇALO – De que tamanho?
CORO DE FLORES – Pequeninas.
GONÇALO – Do tamanho de bolas de futebol?
CORO DE FLORES – Não!
FLOR 1 – Nem cabíamos lá debaixo se fossemos do tamanho de bolas de futebol.
FLOR 2 – Somos muito mais pequeninas do que uma bola de futebol…!
GONÇALO – Vocês sabem o que é uma bola de futebol?
CORO DE FLORES Sim.
FLOR 3 – Já levamos com algumas em cima.
GONÇALO – Ai, deve ter doido.
CORO DE FLORES – Sim, muito.
FLOR 4 – Ficamos todas de lado, mas somos fortes, e voltamos a levantar-nos.
FLOR 5 – O Quico dá uma ajuda.
FLOR 6 – E não somos tão redondas como estás a pensar…não somos como bolas de futebol…!
GONÇALO – Então…? São do tamanho de berlindes?
CORO DE FLORES – Sim.
GONÇALO – E estão lá em baixo?
CORO DE FLORES – Sim!
GONÇALO – Onde?
CORO DE FLORES – No solo…
FLOR 7 – Aqui, debaixo.
FLOR 8 – Mais ou menos perto da terra.  
GONÇALO – É muito escuro não é?
CORO DE FLORES – É.
FLOR 1 – Mas rapidamente vimos para a luz.
GONÇALO – E não têm medo?
CORO DE FLORES – Não!
GONÇALO – Eu tenho muito medo do escuro!
CORO DE FLORES – Nós não!
GONÇALO – E depois?
FLOR 7 - Depois…somos tapadas com terra…
FLOR 8 - Depois…levamos com água…
FLOR 1 – Com vento…
FLOR 2 – Com chuva…
FLOR 3 – E às vezes com bichos irritantes…!
FLOR 4 – Depois…com coisas que põem na terra…para crescermos.
FLOR 5 – Depois…começamos a crescer e aí sim…saímos cá para fora.
FLOR 6 – Como nós demoramos um bocadinho a sair…muita gente desiste, e abandona-nos!
FLOR 7 – Mas nós continuamos a lutar, e procuramos alimento.
CORO DE FLORES – Pois.
FLOR 8 – Depois às vezes, temos a sorte de encontrar bons corações que sabem esperar por nós, que nos dão atenção, que falam connosco…!
GONÇALO – Quem?
CORO DE FLORES – Jardineiros!
GONÇALO – E quem é esse?
FLOR 1 – É aquele senhor…o Quico.
GONÇALO – Áh! E ele fala convosco?
CORO DE FLORES – Fala.
GONÇALO – E vocês respondem-lhe?
CORO DE FLORES – Quase sempre.
GONÇALO – Porque é que não respondem sempre?
CORO DE FLORES Porque…
FLOR 2 – Porque às vezes ele não quer respostas…!
CORO DE FLORES – Pois!
FLOR 3 – Só quer ser ouvido.
FLOR 4 – E só quer falar.
GONÇALO – E o que é que ele fala convosco?
CORO DE FLORES – Muitas coisas!
GONÇALO – Que coisas?
FLOR 5 – Coisas da vida dele…aqui da escola, e de casa.
GONÇALO – Mas a mim sempre me disseram que devemos sempre responder a quem nos pergunta alguma coisa!
CORO DE FLORES – Está mal.
FLOR 6 – Às vezes só se fala para o coração não doer tanto. Não precisamos que nos respondam sempre.
FLOR 7 – É como vocês…quando falam com os bonecos, ou com o anjo da guarda…pelo menos foi o que o Quico disse!
CORO DE FLORES – Sim!
GONÇALO – Estou a perceber. Vocês sempre estiveram aqui?
CORO DE FLORES (riem) – Sim.
FLOR 8 – Não chegamos há muito, mas já estiveram aqui outras…!
GONÇALO – Eu não vos vi aqui antes.
FLOR 1 – Devias ir distraído…há muita gente que não nos vê.
FLOR 2 – Ou se nos vêem é para nos fazer mal.
CORO DE FLORES – Pois é!
GONÇALO – Tem aqui uma portinha!
CORO DE FLORES – Tem.
GONÇALO – Será que eu consigo passar por aqui?
CORO DE FLORES – Tenta!
GONÇALO – Eu sou tão pequeno…de certeza que passo!
CORO DE FLORES – Experimenta!
GONÇALO – O que há para além desta portinha?
CORO DE FLORES – Verás!
GONÇALO – O que é isso?
FLOR 3 – Entra e vais ver o que há.
GONÇALO (sorri) – Áh!
NARRADORA – Gonçalo entra, e fica feliz por conseguir entrar numa porta tão pequena…parece que foi feita à medida dele, só para passar. Do outro lado da porta há um sítio muito bonito...é uma autêntica sala de estar, com livros, luz natural, e as árvores que se vêem ao longe. Toca a campainha a anunciar que o intervalo acabou. Gonçalo ficou tão encantado com aquele sítio que nem se lembrou que tinha acabado de ser chamado para as aulas.
GONÇALO – Tantos livros! Adoro estar rodeado de livros!
CORO DE FLORES – Menino…
FLOR 1 – Eu sei que é um sítio onde apetece mesmo estar, mas tens de ir para a sala, não?
GONÇALO – Não quero ir!
CORO DE FLORES – Mas…tens de ir…
GONÇALO – Não! Eu detesto aqueles meninos…
CORO DE FLORES – Então…?
GONÇALO – Eles são maus comigo! Eu não quero vir para a escola, os meus pais é que me obrigam! Mas eu não gosto deles. São muito maus comigo…
CORO DE FLORES – Porquê?
GONÇALO – Por eu ser tão pequeno.
CORO DE FLORES – Que maldade.
FLOR 2 – Mas o que é que tem seres tão pequeno?
FLOR 3 – Ainda vais crescer mais, certamente…!
FLOR 4 – E se não cresceres, o importante é que sejas boa pessoa.
CORO DE FLORES – Claro!
FLOR 5 – De que é que vale seres tão grande, se não tens nada para os outros…?
GONÇALO – Eles gozam-me, deixam-me muito envergonhado.
CORO DE FLORES – Não entendo!
GONÇALO – É. Eles estão sempre a dizer que sou pequeno, a chamar-me nomes, e a dizer que sou um bebé…e coisas ainda mais feias.
CORO DE FLORES – Que feios.
FLOR 6 – Mas são mesmo más estas criaturas.
GONÇALO – Eu não quero ir…
FLOR 7 – Mas vai, e enfrenta-os…mostra-lhes que não lhes ligas, e que o que eles dizem é mentira.
GONÇALO – Eu sei que sou muito pequeno.
FLOR 8 – Mas tens um coração grande, de certeza!
GONÇALO – Não…
CORO DE FLORES – Tens.
FLOR 1 – És grande, porque és um bom menino, e isso é que interessa.
FLOR 2 – Não te incomodes com o que eles dizem.
FLOR 3 – Tu podes ser pequenino, mas chegas onde todos chegam!
FLOR 4 – Olha que é bom ser-se pequenino…!
GONÇALO – Não. É muito mau ser-se tão pequeno.
CORO DE FLORES – Olha que é bom.
GONÇALO 5 – És gozado por todos.
FLOR 5 – Mas tu passas nesta portinha, e eles não…!
FLOR 6 – Tu podes ver as coisas bonitas que há por trás desta redinha, e eles não!
FLOR 7 – Tu és pequenino, mas não gozas com ninguém, nem fazes maldades aos outros…e eles são mais altos, mas fazem mal a muita gente! Já pensaste nisso?
CORO DE FLORES – Pois é!
FLOR 8 – Além disso…podem pegar em ti ao colo, mas neles não…e o colo é sempre bom, não é?
CORO DE FLORES (sorriem) – Pois é!
GONÇALO (sorri) – Sim, é verdade.
FLOR 1 – Tu podes chegar onde há entradas mais baixas para ir buscar qualquer coisa, mas eles não…certo?
CORO DE FLORES – Certo…pois é!
(Aparece Quico)
QUICO – O que estás aqui a fazer, rapaz? Já devias estar na aula.
GONÇALO – Eu não quero ir para a aula.
QUICO – Ora essa…eu também não queria muita coisa, e tenho…e faço…coisas que não queria nada fazer, mas não tenho outra saída…! Vá…põe-te a andar…aliás…tu não devias estar aqui, devias estar na primeira classe, não? Xôôô…para a sala…deixa as flores em paz.
NARRADORA – Gonçalo vira as costas, muito triste e vai para a sala, envergonhado, a correr.
CORO DE FLORES – Coitadinho!
FLOR 1 – Não devias ter falado assim com ele.
FLOR 2 – Ele tem muita vergonha de ser assim tão pequenino.
FLOR 3 – O menino diz que toda a gente o gozo, e lhe chama nomes feios, por ele ser assim tão pequenino….
FLOR 4 – É um bom menino.
QUICO – Óh, ele deve estar é estragadinho com o mimo.
FLOR 5 – Que maldade….
NARRADORA – O menino entra na sala, e as flores ficam a falar com o Quico. No intervalo seguinte, o Gonçalo volta ao mesmo sítio, e entra pela portinha. Fica lá a ver os livros, e a conversar com as flores. O menino gosta tanto daquele espaço e da companhia das flores, que nem dá pelas horas passarem, e falta á aula. A professora pergunta pelo menino, muito preocupada, e ninguém sabe dele. Procura pela escola toda, e não encontra, até que o Quico vê a portinha aberta, e espreita.
QUICO – Está aqui, senhora professora. Anda cá para fora, moço….a tua professora está à tua procura.
GONÇALO (muito aflito) – Óh não…
PROFESSORA – Gonçalo…sai daí…!
NARRADORA – Gonçalo sai contrariado, e triste. A professora tem uma longa conversa com ele, e ele conta-lhe que todos os meninos o gozam por ser tão pequenino, e que fica muito triste por isso. Ainda por cima, no recreio, ninguém quer jogar com ele. A professora compreende a tristeza do menino, promete ajudá-lo, e dá a aula só para ele. No jardim da sua casa, encontra outro espaço pequeno, onde adora estar, sempre rodeado de livros, quando não quer brincar com os irmãos. No dia seguinte, a professora faz de propósito: põe uma capa atrás do armário da sala, debaixo do armário, um sítio onde ela chega, mas tem a certeza que os meninos não chegam, apenas o Gonçalo chegará, antes dos meninos chegarem. Quando eles chegam, a professor faz de conta que está á procura da capa muito importante, e pede ajuda aos alunos. Todos se oferecem, mas nenhum aluno chega à capa.
PROFESSORA – Gonçalo…tenta tu…se faz favor…que chatice, como é que a capa caiu lá para trás…
NARRADORA - Todos se começam a rir, e a gozar com Gonçalo, mas de repente todos se calam, quando Gonçalo sai de trás do móvel com a capa na mão, sorridente.
GONÇALO (sorridente) – Está aqui, professora!
PROFESSORA (sorridente) – Áhhh…Muito bem. Muito obrigada, Gonçalo. Vá…vamos todos bater palmas ao Gonçalo.
NARRADORA – Todos batem palmas, surpresos.
PROFESSORA – Estão a ver, meninos…? Afinal foi o minorca que lá chegou…! Não foi? De que é que vos vale ser grandes…? Seus malvados…! Só têm tamanho e muita palermice…! Que coisa mais feia…acharem que um menino, lá porque é mais baixo que vocês, não tem valor! Tem muito mais valor que vocês, porque o seu coração é grande, e lindo. Ele é um menino bom…ao contrário de todos vocês que são mais altos…! Ele é pequenino no tamanho, mas chega onde vocês chegam, e chega muito mais longe por ser mais pequeno…porque chega a sítios, onde vocês não chegam. Ele é pequenino e daí…? Vocês nunca foram pequeninos…? Já nasceram assim dessa altura, querem ver…? Ajuda as funcionárias, é delicado, educado, simpático, com toda a gente…prestável… responsável, interessado, atento, muito inteligente…até defende as meninas…nunca vi nenhum de vocês a fazer isso!
MENINAS – É verdade!
PROFESSORA - Acham que ganham alguma coisa em ser altos…? Há adultos mais pequenos que vocês, mas que são enormes…como pessoas…são bons com os outros, não põem os outros de lado só porque são mais altos, ou mais baixos, ou mais gordinhos ou mais magrinhos…! E porquê? Porque sabem que o valor delas não está no tamanho físico, mas sim, no coração! Lembram-se de termos falado nisso? É provável que não, porque estavam distraídos, a reparar no que os outros têm, e vocês não…em vez de se preocuparem em ser amigos uns dos outros, e em dar coisas boas uns aos outros. Meninos…a escola é de todos…somos todos diferentes uns dos outros…já viram que feios que éramos todos, se fossemos todos altos, ou gordos…ou palitos…? Ainda bem que há variedade…e que somos todos diferentes, porque é assim que aprendemos a ser pessoas, a viver com os outros, a falar uns com os outros, e a aprendermos uns com os outros…cada um com as suas experiências diferentes! Imaginem…já viram o que era, se eu em todas as aulas, apontasse os defeitos de cada um de vocês…? Aquilo que eu não gosto em vocês….se dissesse por exemplo…em vez do vosso nome…aquele…dos óculos, ou dos dentes saídos, ou aquele das orelhas grandes…ou aquele do nariz batatudo, ou…aquele das pernas magras…?! Gostavam de ouvir isso, e que eu vos tratasse assim? (Faz-se silêncio) respondam…! Gostavam? É que se gostarem, eu passo a tratar-vos assim!
TODOS – Não!
PROFESSORA – Bem me parecia. Vocês são todos iguais?
TODOS – Não.
PROFESSORA - E gostavam de ser todos iguais?
TODOS – Não!
PROFESSORA – Pois claro! Então porque é que tratam assim o vosso colega?
MENINO 1 – Porque ele é calado!
PROFESSORA – É calado? Isso não é desculpa! Ele fala quando é preciso… e fala acertadamente! Sabe muito bem quando pode falar e quando não pode!
MENINO 2 – Mas ele não se junta.
PROFESSORA – Que desculpa mais esfarrapada…! Vocês é que o mandam embora…! Não vos ensinaram a juntar todos?
TODOS – Sim, mas…
PROFESSORA – Mas, o quê? Não existe mas…é preciso envolver todos os meninos e meninas…todos! Entenderam?
TODOS – Sim.
PROFESSORA – E sabem o que é todos?
TODOS – Sim!
PROFESSORA – Então não quero ver outra vez o Gonçalo afastado dos meninos. Entendido?
TODOS – Sim, professora.
PROFESSORA - Peçam já desculpa ao vosso amigo…!
TODOS (envergonhados) – Desculpa…
PROFESSORA – Não ouvi nada!
TODOS (envergonhado) – Desculpa…
PROFESSORA – Outra vez! Mais alto.
TODOS (alto) – Desculpa…
PROFESSORA – E agora…vão sentar-se calados…e ai de quem volte a gozar com o Gonçalo pela sua altura, ou outro menino, pelo que quer que seja. Estamos entendidos?
TODOS – Sim, professora.
PROFESSORA – Gonçalo…quadro!
GONÇALO – Mas professora…eu não chego.
PROFESSORA – Pões uma cadeira, ou escreves até onde chegas.
GONÇALO – Mas…assim os meninos não vêem!
PROFESSORA – Não te preocupes com os meninos…vêem…e se não vêem…ouvem, estando calados e atentos, em vez de estarem a olhar para o lado.
NARRADORA – A partir desta aula, o Gonçalo passou a ser respeitado e admirado por todos, que até começaram a achá-lo engraçado, pelo seu despacho, mesmo pequenino. Por ser pequenino, chegava a sítios onde os outros não chegavam, por exemplo, quando a bola ia para sebes ou para sítios onde os mais altos não conseguiam chegar. E assim, todos viram que realmente, o tamanho de fora, que os olhos dos outros vêem não mostra o tamanho da bondade da pessoa, nem as suas qualidades. Pequeninos ou grandes, somos como somos, e todos temos qualidades e defeitos, todos temos valor, e todos precisamos de amigos. Todos temos direito a mostrar o que somos, debaixo da nossa pele, onde está o nosso coração, e todos temos direito a ser respeitados, integrados e valorizados.

FIM
Lálá
(17/Abril/2013)